Opinião
“Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”. Nelson Rodrigues.
Poucas frases podem refletir o dia de ontem como essa de Nelson Rodrigues. O espetáculo Dantesco do Congresso Nacional que decidiu pela continuidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma Roussef foi algo pra entrar na história.
O Congresso, responsável por legislar sobre as matérias de competência da União, mediante elaboração de emendas constitucionais, de leis complementares e ordinárias, e de outros atos normativos com força de lei, tem muita responsabilidade sobre a situação econômica, de segurança e de saúde do país. No entanto, esses paladinos da moralidade sempre se esquivaram de sua responsabilidade sobre os problemas do Brasil e ontem se superaram. Vomitaram demagogia e tripudiaram diante da milhões de eleitores que acompanharam a sessão por meio da TV. E esse comportamento vil só mostra que a representatividade é a raiz da maioria dos nossos problemas.
Pudemos ver o que há de mais grotesco e patético nos nossos representantes diretos. Um espetáculo de exibicionismo, puxa-saquismo desenfreado e discursos que beiraram a insanidade. Houveram contradições tão marcantes e falas tão absurdas na hora do voto (isso que era necessário dizer apenas “sim” ou “não”) que é impossível refletir sobre alguns discursos, mas vale a pena tentar:
Deus e família
A figura de Deus e as famílias dos deputados permearam toda a sessão. As “Pedaladas Fiscais”, alegações que embasaram o pedido de impeachment, raramente foram lembradas. Já as famílias ganharam homenagens e nomes de filhos, filhas, esposas, noras, sogras, netos e netas foram entoados sob centenas de aplausos. Já as amantes, ou as garotas de programa que costumam visitar a Câmara Federal, como denunciou a imprensa em março desse ano, foram esquecidas.
Mas a família, essa base do homem tradicional, não se resume apenas ao seio do lar. Ela, no caso de muitos deputados, atua também nos gabinetes do Congresso por meio do chamado nepotismo. Em março de 2015, pra que possamos ter uma noção, o Jornal Correio Braziliense encontrou 106 correspondências de nomes entre parlamentares e detentores de cargos comissionados na Câmara. Um viva a família!
Ah, ainda falando em família, a deputada Raquel Muniz (PSD/MG) foi protagonista de um dos votos mais entusiasmados a favor do golpe. O dedicou à sua família e ao marido, prefeito de Montes Claros, que segundo ela é o melhor do Brasil. Hoje pela manhã, no entanto, seu esposo foi preso na operação “Máscara da Sanidade II – Sabotadores da Saúde”. Os dois foram dormir felizes da vida em Brasília. O marido de Raquel acordou e foi em cana.
Já Deus foi joguete em ambos os lados e isso só mostrou que definitivamente não cumprimos nosso papel como estado laico. Na bancada evangélica, que tem 76 deputados, 84% votaram a favor do impeachment e, é claro, 100% bradou em nome de Deus durante o voto. Um fato curioso é que um dos que não usaram o nome de Deus foi o deputado Padre João (PT/MG) que, apesar de não ser da bancada evangélica, é um religioso.
Ah, além de Deus e da família também ganharam homenagem os corretos de seguro e os profissionais da rede ferroviária.
Pela renovação na política
Esse mote foi usado por muitos. Inclusive por aqueles que são filhos, netos e bisnetos de políticos. Diversos descendentes de políticos tradicionais em seus estados foram eleitos deputados federais. É o caso da deputada estadual e filha do ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho, Clarissa Garotinho (PR), Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), filho do Jair Bolsonaro (PP-RJ), Bruno Covas (PSDB), neto do ex-governador Mário Covas, Arthur Bisneto (PSDB), filho do prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, Pedro Cunha Lima (PSDB) filho do senador Cássio Cunha Lima, também do PSDB, Veneziano (PMDB), filho do ex-deputado federal Antônio Vital do Rêgo (já falecido) e da deputada Nilda Gondim (PMDB-PB), e por aí vai.
Além disso há os deputados que já estão na câmara há muito tempo. O recordista é Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), aos 84 anos, ele vai cumprir o seu nono mandato consecutivo na Câmara. Diversos inclusive participaram da sessão que decidiu sobre o impeachment de Collor em 1992.
Contra corrupção
Ah, eis aí algo pra testar nossos estômagos. Os brados contra a corrupção e a favor de uma “limpeza” no país ecoaram como nunca. No entanto, como se tornou comum inclusive no ideário popular, corrupção só é corrupção quando envolve o PT. Assim, dos 22 deputados federais investigados pela Lava Jato, 16 votaram pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Todos eles fazem parte da “Lista de Janot”: o nome que deu aos inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal a pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Isso significa 72% de votos contra Dilma. Segundo a página Transparência Brasil aliás, 303 dos 513 deputados que votaram são investigados por algum crime. Quem deu o “voto de misericórdia”, aquele que decretou o prosseguimento do processo de impeachment, foi o deputado Bruno Araújo (PSDB) que foi um dos mais de 280 políticos que tiveram seus nomes citados em planilhas da Odebrecht, apreendidas durante a Operação Acarajé, no final de março. Em seu discurso ele disse “me sinto privilegiado e agradeço a Deus por essa oportunidade”. Sobre a hipocrisia do Congresso quem melhor definiu toda a balburdia foi o deputado Chico Lopes (PCdoB/CE):
“Eu achei que vinha pra uma reunião política, mas me enganei, vim pra reunião dos bons maridos, bons pais e dos bons moços. Engraçado que estão todos na lista da Lava Jato.”
Outra reflexão muito interessante sobre a hipocrisia do congresso, foi expressada pelo cantor Serguei em sua página no Facebook: “Parece que estamos vendo tarados pregando a virgindade no meio de uma suruba. Sinistro”.
Sobre a corrupção, é quase desnecessário falar sobre o presidente da Câmara Eduardo Cunha. Ele, que é a maior referência em corrupção no país hoje, segue ileso e frio como sempre. Mas ontem foi achincalhado por muitos parlamentares:
“Cunha, você é um gangster, sua cadeira cheira a enxofre”, disse o deputado Glauber Braga (Psol/RJ)
“Não aceito o corrupto Eduardo Cunha presidindo qualquer processo de impeachment”, disse o deputado Ivan Valente (Psol/SP).
“Em primeiro lugar eu quero dizer que estou constrangido de participar desta farsa, desta eleição indireta, conduzida por um traidor, conspirador, e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos”, disse Jean Wyllys (Psol/RJ) sob intensa vaia.
Bolsonaros: insanidade à parte
Entre todos os discursos alguns foram apenas patéticos, tolos, falsos. Mas, outros foram de extrema incitação ao ódio e a tortura e, como era de se esperar, os mais marcantes foram do Bolsonaro pai e do Bolsonaro filho. Este, por sua vez, uma copiazinha dos ideais fascistas do pai, bradou os militares de 64 e a revogação do Estatuto do Desarmamento. O papai, por sua vez, homenageou Eduardo Cunha e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores torturadores durante o Regime Militar que colocava ratos dentro da vagina de suas torturadas – aliás, ratos não eram os únicos bichos, ele também usava baratas e, em uma sessão, até jacarés foram trazidos para aterrorizar as vítimas. E, claro, a tortura às mulheres ganhava outros níveis de complexidade, com violência sexual e abusos de várias formas. Uma de suas vítimas foi a presidente Dilma que tinha 23 anos na época.
Bolsonaro, que discursou antes de Jean Wyllys, fez provocações a este depois que o deputado do Psol discursou e ganhou uma cusparada como resposta. Salivada que com certeza lavou a alma de muita gente nesse país.
Agora, some a todos esses discursos absurdos e hipócritas muitas vaias, xingamentos, faixas a favor do impeachment, faixas contra Cunha, empurrões, “papagaios de pirata” que não saiam do lado do microfone nem pra urinar, e terá uma noção dos representantes que o Brasil elegeu em 2014.
Pra terminar deixo aqui mais umas pérolas de ontem:
Wladimir Costa (Solidariedade-PA), que votou pelo “Sim” ao impeachment e complementou: “Nós vamos cassar o Brasil!”.
O 1º vice-presidente da Câmara, Waldir Maranhão (PP-MA), que já vinha se declarando contra o impeachment dias antes da sessão, se confundiu no momento de declarar seu voto. “Sim Não”, afirmou, logo corrigindo para apenas “Não” ao processo.