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Mortes, corrupção e milícia: o saldo do arrendamento de terras kaingangs no Paraná

Reportagem: José Pires

Edição: Mauri König

Foto principal: Juliana Boff

Esta história começa com um menino de 10 anos estraçalhado por uma colheitadeira no dia 24 de março de 2023. A partir deste episódio, uma investigação do Parágrafo 2 levou a reportagem a descobrir uma série de assassinatos, agressões, mortes misteriosas, corrupção e atuação de grupos de milícia na Terra Indígena Ivaí, que tem uma aldeia de mesmo nome e fica encravada entre os pequenos municípios de Pitanga e Manoel Ribas, no coração do estado do Paraná.

A cronologia regressiva nos leva ao ano de 2005, quando o então cacique da Aldeia começou a arrendar terras indígenas para que não indígenas cultivassem soja e milho. Desde então, um conflito interno afeta toda a comunidade e desafia as várias esferas do poder público.

O arrendamento das terras indígenas tem perpetuado um grupo de lideranças no poder, além de influenciar eleições municipais, enriquecer grandes cooperativas e submeter a comunidade local a uma rotina de violência e pobreza.

Uma realidade que se arrasta por quase duas décadas e transforma indígenas em algozes de seu próprio povo. Uma guerra silenciosa, sem cobertura midiática e com pouca ou nenhuma intervenção do poder público. Uma situação que pode se agravar caso a tese do Marco Temporal, rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro, mas aprovada pelo Senado Federal no mesmo mês, não seja vetada pela presidência da república.

Tinha um menino no meio do caminho

Passava das 19 h do dia 24 de março quando Claudielson Ogsá Brum saiu de casa para ir ao culto de uma igreja evangélica da Aldeia Ivaí. Chovia naquela sexta-feira e o pequeno Kaingang caminhava por uma rua estreita e pouco iluminada. No entanto, ele nunca chegou ao destino. No meio do caminho uma colheitadeira de três toneladas interrompeu seu trajeto, e sua vida.

Na versão dada pelo maquinista à Polícia Militar, e que repercutiu na imprensa, crianças corriam e se acotovelavam atrás da máquina em movimento. Uma delas teria empurrado Claudielson, que foi tragado pelo molinete da colheitadeira. Entretanto, indígenas que presenciaram o acidente contam uma versão diferente.

“A gente estava a poucos metros da máquina, não tinham crianças correndo atrás dela. O motorista não viu o Claudielson, estava escuro e chovia. Ele foi atropelado enquanto ia para a igreja”, diz uma testemunha que pede para não ser identificada. Aliás, o anonimato das fontes será uma prática constante nesta reportagem. Temendo por sua segurança, Indígenas e não indígenas ouvidos ao longo de meses de investigação pediram que suas identidades não fossem reveladas.

A família do pequeno kaingang atropelado é uma das mais pobres da aldeia e vive em uma casa humilde que sequer tem vidros nas janelas. Sua mãe, que não ganha nada com o plantio de soja, perdeu o que tinha de mais valioso por causa da colheita dos outros. Essa dicotomia motiva uma ação movida pelo advogado que representa a família.

Everaldo Carlos dos Santos, o Dr. Magrinho, busca uma compensação para os pais da criança. “Nossa intenção é uma ação de indenização e um acompanhamento da ação penal. A família da criança é muito pobre e vive de artesanato, por isso buscamos uma compensação para essa mãe”, destaca o advogado.

Claudielson é mais uma entre diversas vítimas da violência que foi registrada na aldeia ao longo dos anos. Cinco homicídios, por exemplo, foram cometidos lá desde 2020. Ao menos um deles, segundo os indígenas, teria relação direta com o arrendamento de terras.

A aldeia e o arrendamento

A Terra Indígena Ivaí é composta por 7.306,35 hectares, extensão muito menor do que tinha em sua delimitação original, feita pelo governo do Paraná por meio do Decreto de nº 294 de 17/04/1913. Na época, eram 36.000 hectares.

Atravessada pelos rios Borboleta e Barra Preta, a Terra Indígena fica nos municípios de Manoel Ribas e Pitanga, na região central do estado. Uma porção de terra que perdeu muito de sua floresta nativa. No lugar da mata, hoje existem imensos campos de cor amarelo-pálido, resultado das lavouras de soja e trigo. Eles contrastam com a terra vermelha que desenha as ruas da Aldeia Ivaí. Nela, casebres de madeira são vizinhos de bares e templos evangélicos. No centro, uma igreja católica que fica em frente ao campo de futebol. No local existe um autofalante, chamado pelos indígenas de “corneta”. É de lá que são dados recados para toda a comunidade e de onde partem também, segundo as fontes ouvidas, ameaças e constrangimentos.

Hoje, vivem na aldeia 1.891 kaingangs. E a terra indígena é a segunda em número de moradores no estado do Paraná, ficando atrás apenas da terra indígena Boa Vista, em Laranjeiras do Sul, que tem 2.794 moradores.

A principal renda dos indígenas vem de programas sociais como o Bolsa Família. Em agosto de 2022, segundo a prefeitura municipal de Manoel Ribas, 549 famílias da aldeia estavam inseridas no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal e 396 recebiam o Auxílio Brasil. A renda é complementada também pela venda de artesanato em outras cidades do estado, incluindo Curitiba. Existem ainda os que trabalham em Manoel Ribas e aqueles que têm seu punhado de terra para plantar ou arrendar.

Os kaingangs, porém, poderiam viver em melhores condições se houvesse uma divisão mais justa dos lucros obtidos pelo arrendamento das terras. É isso que explicam diversos indígenas da região. “Tem muita gente passando fome aqui na aldeia, sem ter renda, sem ter o mínimo de conforto nas suas casas, vivendo de doações. Enquanto isso, têm muitos índios ricos com o dinheiro da soja que deveria ser pra todo mundo”, conta um dos indígenas.

Ele se refere aos recursos administrados pela Associação Comunitária Indígena Ivaí (Aciva), uma entidade criada em 2005 e que é a responsável por administrar o dinheiro de parte do arrendamento. A Aciva surgiu por meio de um grupo de lideranças e é ela que administra boa parte das terras que são arrendadas.

Os dados sobre o tamanho da área arrendada são imprecisos, muito bem guardados pelos administradores da Aciva. São dados inacessíveis a quem se propõe a lançar um olhar mais crítico sobre eles. Mas, pessoas que vivem o dia a dia da comunidade e entendem como as coisas funcionam, afirmaram à reportagem que entre 700 e 900 alqueires são cedidos para o plantio de soja, trigo, milho, entre outras monoculturas.

A Aciva seria responsável pelo lucro que vem de 160 alqueires por ela arrendados para agricultores da região e indígenas da aldeia. Conforme as fontes ouvidas, a associação cobra 45 sacas de soja por alqueire arrendado. Por safra são mais de 7.000 sacas que rendem em média R$ 1 milhão. Dos indígenas que alugam a terra para plantar é cobrado R$ 1.500 por alqueire. Há, ainda, uma taxa para os índios que cultivam a própria terra. Os líderes da aldeia, incluindo o cacique e o vice, também plantam, e suas lavouras seriam as maiores.

Segundo os indígenas ouvidos pela reportagem, os lucros da associação não são revertidos em favor da comunidade, mas usados para enriquecer as lideranças do lugar e políticos da região. “As lideranças estão ricas. Moram em casas boas, andam com bons carros, enquanto as famílias da aldeia estão passando fome, precisando vender artesanato para sobreviver”, diz um dos entrevistados.

A Aciva coordena os arrendamentos na Reserva Ivai, mas o lucro ficaria nas mãos das lideranças. Arte: José Pires

Para as famílias da aldeia a associação oferece alguns serviços, como um ônibus para transportar indígenas que vendem artesanato em outras cidades e o empréstimo de tratores para o cultivo da terra. Mas o lucro, que chegaria à casa de R$ 1 milhão depois de uma boa colheita, seria divido entre a diretoria da Aciva. “Eles dividem o lucro. Guardam boa parte do dinheiro em espécie, usam casas fora da aldeia para isso e depositam cheques nas contas de terceiros”, revela outra fonte.

O Parágrafo 2 conseguiu, no Tabelionato de Manoel Ribas, acesso ao estatuto da fundação e às três últimas atas da Aciva, a última registrada em 2018. No estatuto, datado de abril de 2005, a associação foi registrada como uma entidade civil com personalidade jurídica de direitos privados sem fins lucrativos.

O item “c” do artigo 2 define que é papel da associação “promover o desenvolvimento integrado da comunidade através da realização de obras e ações com recursos e/ou doações obtidas por promoções, empréstimos e convênios”. Na prática, porém, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, a Aciva é usada para a concentração de renda e enriquecimento de membros da diretoria.

Desde a fundação da Aciva um advogado de Manoel Ribas, Ubirajara Tonelli, seria responsável pelo departamento jurídico da associação e se beneficiaria muito com ela. “O Ubirajara é responsável por encobrir ilegalidades cometidas pelas lideranças. Ele é outro que ficou rico nas costas dos índios, ajuda as lideranças a se safarem e os índios daqui também têm medo dele”, diz um indígena.

Crimes, violência e milícias indígenas

Para manter o poder, ditar as regras na Aldeia Ivaí e concentrar os lucros com o arrendamento das terras, um grupo se vale de violência e influência política. Os mesmos nomes se perpetuam ano após ano na liderança local e reagem com brutalidade sempre que são contestados.

Hoje, o cacique da Aldeia Ivaí é Domingos Zacarias. Seu vice se chama Reinaldo Ninvaia. Os dois, porém, conforme as denúncias encaminhadas ao Parágrafo 2, pouco mandam. Quem dita as regras desde 2005, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, é Dirceu Retanh Pereira Santiago. Ele é indígena, funcionário da prefeitura de Manoel Ribas, um dos fundadores da Aciva, já foi cacique e vereador no município.

Sobre ele pesam diversas acusações. O uso da violência, por exemplo, é uma delas. “O Dirceu é um cara muito perigoso. Ele usa de violência, tem capangas e impõe o medo quando é contrariado”, diz uma fonte. Segundo indígenas e outras fontes consultadas pela reportagem, Dirceu criou, ao longo dos anos, uma espécie de milícia indígena, que impõe sua vontade por meio da violência. Essa acusação, no entanto, não é nova.

Ele foi preso em 13 de dezembro de 2012 na Operação Forte Apache, deflagrada pela Polícia Federal (PF) para o cumprimento de nove mandados de busca e apreensão e um mandado de prisão preventiva, expedidos pela Justiça Federal em Guarapuava e pela Justiça Estadual em Manoel Ribas.

Na época, Dirceu foi acusado de arrendar terras indígenas ilegalmente e enriquecer com isso. A denúncia do Ministério Público Federal o acusava de, em conluio com dois agricultores da região, arrendar 240 alqueires da Reserva Indígena.

Segundo o MP, Dirceu também era suspeito de destituir diversos caciques e praticar os crimes de ameaça, constrangimento ilegal, corrupção, apropriação indébita, bando armado, posse e porte ilegal de arma de fogo, entre outros. O grupo de Dirceu foi investigado também pelo assassinato de dois indígenas na Reserva de Ortigueira, em abril de 2013.

Mesmo preso em 2012 acusado de arrendar terras indígenas, Dirceu continua, segundo as fontes a ganhar com o aluguel das terras. Foto: Reprodução do Facebook.

Entretanto, no dia 14/04/2015 o juiz federal Marcelo Adriano Micheloti absolveu Dirceu e os demais acusados. Na decisão do juiz, eles foram inocentados da prática de extrair e comercializar matéria prima em terras pertencentes à União, que é um crime previsto no artigo 18 do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73).

Antes de ser preso acusado de arrendar terras indígenas, Dirceu tinha sido pivô da expulsão de mais de 100 índios da Aldeia Ivaí. Eles foram expulsos pelo então cacique Ivo Borges Ninvaia porque não teriam votado em Dirceu quando ele foi candidato a vereador em 2009.

Na época, o grupo foi acolhido na aldeia de Faxinal, em Cândido de Abreu e a Coordenação da Fundação Nacional do Índio (Funai) Curitiba e a Coordenação de Guarapuava juntamente com o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção às Comunidades Indígenas (CAOP) do Ministério Público do Paraná (MPP) reuniram-se com as lideranças no sentido de apaziguar o conflito.

Mesmo sendo investigado e preso por arrendamento de terras, violência e ameaça há mais de 10 anos, Dirceu Pereira Santiago, conforme diversas fontes ouvidas pela reportagem, continua, ao lado do grupo que comanda a aldeia e os arrendamentos, a usar de ameaças e extorsões. E esses crimes seriam cometidos não apenas contra os indígenas, mas também contra quem arrenda as terras.

O Parágrafo 2 tentou contato com diversos agricultores que cultivam soja e trigo na região. Mas conseguiu falar com apenas um. Ele arrendava terras e prestava serviço para a Aciva. Ele diz que os problemas são graves. “O problema na aldeia é maior do vocês pensam. Tem muita gente envolvida, inclusive advogado, vereador e comerciante”, disse à reportagem.

O agricultor completa que teria documentos comprovando os valores cobrados pelos arrendamentos de terra. “Tenho muitos documentos que provam que desde o tempo que o Dirceu era cacique, já tinham valores sendo cobrados… Eu fui prestador de serviço para a associação, quando foi para me pagar pelas atividades efetuadas, teve reuniões internas, quando o Dirceu e seu grupo faziam ameaças para vários índios”, disse.

Nas mensagens, o agricultor fala sobre ameaças e arrendamentos na Aldeia. Arte: José Pires

A Funai e os arrendamentos

O arrendamento de terras indígenas em Manoel Ribas teria, segundo as denúncias encaminhadas ao Parágrafo 2, participação de um servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Alvacir Jesus Sales Ribeiro era chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenação Regional da Funai na cidade de Guarapuava, no interior do Paraná. Ele teria, conforme as denúncias, relação com as lideranças da Aldeia Ivaí e lucrava com o arredamento das terras.

Os índios afirmam que Alvacir tinha contados importantes no poder judiciário e, por isso, sabia antecipadamente de fiscalizações e também operações policiais que aconteceriam na aldeia. “Ele sabia e avisava as lideranças para que elas sumissem com provas”, diz uma fonte.

Mas não é a primeira vez que a Funai é acusada de facilitar o arrendamento de terras na Reserva Ivaí. E não são apenas os indígenas que a acusaram. Nas alegações finais do processo que envolvia arrendamentos de terra na Aldeia, quando Dirceu foi preso ao lado de três agricultores, esses arrendadores confessaram a prática e, segundo eles, apenas a fizeram porque “foram induzidos a erro por funcionário da Funai”. Naquele processo, a Fundação foi intimada a se manifestar, mas se manteve “inerte”.

Na época, o servidor da Funai era Maycon Dione Moura. Ele era coordenador técnico da Fundação em Guarapuava, onde fica a unidade responsável pelas ações na Terra Indígena Ivaí. Moura foi condenado pela justiça com base no Artigo 317 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940 por receber, por conta de sua função, vantagem indevida. Ele teria recebido, entre 2012 e 2013, R$ 9.500 para facilitar o arrendamento das terras indígenas, cometendo o crime de corrupção passiva. Ele é hoje secretário de Meio Ambiente na prefeitura do município de Cândido de Abreu, também no interior do Paraná.

O Parágrafo 2 entrou duas vezes em contato com a assessoria de imprensa da Funai pedindo uma nota de esclarecimento sobre essa acusação, mas o órgão não respondeu.

Um filme de terror

“Essa aldeia parece um filme de terror. Se a gente contar tudo que aconteceu aqui, as pessoas não acreditam”.  A frase resume bem a série de crimes e violências que aconteceram na terra indígena nos últimos anos. Um cenário de terror que levou as famílias kaingangs a acreditar na ação de uma figura sobrenatural: um lobisomem.

Em 15 de maio de 2022, uma indígena de 21 anos foi estuprada e morta na aldeia. Seu corpo foi encontrado com vários ferimentos, inclusive com sinais de mordida. Na época, o cacique e mais quatro indígenas foram presos, mas libertados pouco depois. Então, a autoria do crime passou a ser atribuída a um suposto lobisomem.

“Na época corria um boato de que a morte dessa moça, que se chamava Edna, teria sido obra de um lobisomem que rondava a região”, conta um dos entrevistados. Um exame de DNA, entretanto, encontrou no corpo da vítima material genético de dois indígenas menores de idade, um de 15 e outro de 16 anos. Eles foram apreendidos pela Polícia Civil em maio de 2023.

Quase metade dos crimes cometidos em Manoel Ribas e Pitanga, nos anos de 2020, 2021 e 2022, foram cometidos na Aldeia Ivai. Arte: José Pires

Segundo o Relatório Estatístico Criminal de Mortes Violentas Intencionais da Secretaria da Segurança Pública do Paraná (Sesp), Manoel Ribas e Pitanga somaram juntos 12 homicídios em 2021, 2022 e 2023, quase metade deles aconteceu na Terra Indígena Ivaí.

Indígenas ouvidos pelo Parágrafo 2 foram categóricos em afirmar que a morte Alcindo Rãnhkág Vernek, de 36 anos, teve relação direta com o arrendamento das terras indígenas. O corpo de Alceu foi encontrado na tarde de 21 de outubro de 2020 com sinais de violência no rio Barra Preta, na divisa de Manoel Ribas com a cidade de Pitanga, próximo à aldeia. “Tinha muita gente de olho nas terras do Alcindo, foi isso que motivou sua morte”, enfatiza um indígena.

Desde o assassinato, corre à boca pequena na aldeia a informação de que Alcindo foi vítima de uma emboscada, levado para a lavoura em plena tarde de sol. Depois de morto, foi jogado em um rio. Uma execução planejada com a certeza de impunidade, já que o silêncio é imposto à força na aldeia. Aqueles que se atrevem a falar podem pagar com a vida.

O corpo de Alcindo foi encontrado com sinais de violência em um rio da região. Foto: Colaboração.

Fonte ligada à Polícia Civil do Paraná comenta com certa indignação que o inquérito sobre a morte de Alcindo Vernek ainda está em aberto. Já a Assessoria de Imprensa da Polícia Civil se limitou a afirmar que todos os crimes registrados na região são investigados. Obviamente, por se tratar de inquérito policial, a Secretaria de Segurança Pública do Paraná não pode fornecer mais informações.

O Parágrafo 2 teve acesso a um documento que revela que em 03/11/2020 foi protocolada uma denúncia no Ministério Público Federal em Guarapuava sobre irregularidades nos arrendamentos de terra na Aldeia Ivaí e sobre o assassinato de Alcindo. No documento, o denunciante destaca que cerca de 650 alqueires de terras eram arrendados para os brancos plantarem e que mais 150 eram arrendados sob a responsabilidade da Aciva.

Sobre a morte de Alcindo, a chamado “termo de declarações” revela que ele “foi assassinado por um arrendatário chamado Aldinei, vulgo Neizinho. Alcindo havia arrendado oito alqueires para Neizinho, porém este plantou em uma área maior que o combinado. Então Alcindo disse para Neizinho sair da terra. Entretanto, Neizinho não aceitou a saída, repassou R$ 7.000 para a Associação Indígena com o objetivo de continuar a utilizar a terra de Alcindo”. Essa denúncia, além de dar nome a um suposto assassino, também menciona Dirceu Pereira Santiago destacando que “Alcindo, por não ceder mais a terra sofreu ameaça de Dirceu que disse que se Alcindo não deixasse mais Neizinho arrendar a terra a Associação iria toma-la de Alcindo e continuar arrendando para Neizinho”.

Denúncia protocolada no MPF traz informações sobre a morte de Alcindo.

Indígenas ouvidos pela reportagem, entretanto, destacam que a morte de Alcindo teve mais elementos do que apenas um desacerto relacionado ao arrendamento. “Estavam de olho nas terras do Alcindo, essa confusão com o Neizinho foi apenas uma desculpa para matarem ele. Armaram para o Alcindo e mataram o coitado”, diz outra fonte.

Cadeia, alcoolismo, suicídios

“Clacolandia”, escrita com essa grafia, é a frase que está pixada no lado de fora da cadeia. As celas ficam no centro da aldeia, próximas ao campo de futebol. A referência da pixação é a cracolândia paulista, movimento itinerante onde milhares de dependentes químicos vagueiam em busca de crack.

Na Aldeia Ivaí, entretanto, a dependência mais severa e recorrente é o álcool. “É uma tristeza, muitos índios daqui são alcoólatras. Eles ficam pedindo dinheiro na cidade para beber. Nossa aldeia está cheia de bares e eles são incentivados pelas lideranças. Antigos caciques não permitiam que os índios bebessem, mas agora é liberado e até adolescentes bebem”, lamenta um indígena.

Hoje é permitida a venda e o consumo de bebidas alcoólicas na aldeia. Mas quem “incomodar”, acaba na cadeia. Pra lá também vão opositores e quem mais desafiar as lideranças.

A cadeia é o destino daqueles que exageram na bebida e também quem questiona as lideranças. Foto: Colaboração.

As péssimas condições de vida dos kaingangs de Manoel Ribas se refletem no nível de alcoolismo da aldeia. Mas, infelizmente a violência, a falta de perspectivas e os conflitos internos também têm se refletido em crimes contra a própria vida. “Aqui tem muito suicídio. A gente vê índios jovens, meninos e meninas tirando a própria vida. Não sabemos o que fazer, eles bebem, não têm trabalho, param de estudar. A vida se torna sem sentido, aí acabam se matando. Isso é muito comum aqui, infelizmente”, conta uma fonte.

Riqueza para uns, miséria para outros

Até 1988 não havia uma previsão constitucional que vetasse o arrendamento de terras indígenas. Essa prática foi sendo disseminada em várias regiões do país, porque quem fazia a negociação, o agenciamento e geria as relações com os arrendatários eram os próprios órgãos indigenistas. Primeiro o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois a Funai. Portanto, essa prática foi se consolidando dentro das políticas indigenistas da época.

Quem explica é Roberto Antônio Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul. Segundo ele, a Constituição Federal de 1988 rompe com a prática do arrendamento ao dizer que as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos povos originários. “E a Constituição vai além, dizendo que este é um direito inalienável, ou seja, impossibilitando qualquer mecanismo, até jurídico, de tornar essas terras disponíveis para terceiros”, pontua o indigenista.

“No entanto, apesar da Constituição, o arrendamento continua. O poder público não encontrou mecanismos para vedar essa prática. Embora o Ministério Público Federal em várias regiões atue no sentido de tentar coibir – existem diversas ações na justiça sobre o tema – e os juízes estabelecem até prazos para que o arrendamento seja extirpado, na prática, porém, ela continua acontecendo”, explica.

A casa onde vivia o pequeno Kaingang é uma das mais pobres da Aldeia. Foto: Colaboração.

Liebgott ressalta que nos últimos anos alguns caciques e lideranças passaram a negociar internamente a terra e se apoderar de todas as áreas produtivas, especialmente nas reservas indígenas. E essas pessoas, ligadas ao cacicado, é que fazem as intermediações do arrendamento com os produtores.

“Como o poder público começou a intervir fortemente para combater essa prática, houve, especialmente aqui no Sul do país, tentativas de negociação com a Funai e esses grupos para criar, no âmbito das comunidades, cooperativas e associações para gerir os arrendamentos. Mas essas cooperativas servem para burlar a lei. Com a atuação delas dá a impressão que o arrendamento deixou de existir e toda a produção seria feita pelos cooperados ou associados. No entanto, os grupos que controlam essas entidades têm relações com não indígenas que controlam os processos de cultivo destas áreas”, diz.

A Funai tentou, nos últimos anos, conforme revela Liebgott, legalizar o arrendamento por meio de parcerias. Existe inclusive uma instrução normativa que permitia a parceria entre organizações indígenas com não indígenas para o cultivas das reservas.

O indigenista enfatiza que os arrendamentos compõem um ambiente extremamente conflituoso. Primeiro por razões econômicas, os grupos de poder interno querem se consolidar no domínio da terra, e para isso excluem os demais e não permitem que tenham acesso às lavouras. Isso gera uma série de contestações e revoltas, se refletindo em violência. Aqueles que se rebelam contra o arrendamento costumam ser perseguidos, há muitos registros de espancamento, tortura, encarceramento e assassinatos. Muitas famílias são expulsas das reservas.

Mas há outras violências embutidas no arrendamento, conforme destaca Roberto. “Essa prática, que concentra as terras em poder das lideranças, gera a exclusão, a marginalização, a fome, a pobreza. Assim, em comunidades indígenas com bom potencial de produtividade econômica, existem famílias que não conseguem plantar um pé de mandioca porque elas não têm terra pra isso. Todo o controle das terras, da produção e dos recursos está na mão de grupos internos e externos, dos poderes inclusive locais”, diz o indigenista.

A relação entre o arrendamento de terras e os grupos políticos de Manoel Ribas, será objeto da segunda reportagem desta série.

A relação entre os grupos de poder internos – que são os caciques e as lideranças – e os grupos externos que se beneficiam do arrendando da terra, devem ser controlados pelo poder público, diz Liebgott. Esse controle deveria ser feito pela própria Funai, pelo MPF acionando a Justiça e pelos órgãos de segurança.

Mas há também a necessidade de ter uma articulação intersetorial para enfrentar essa prática criminosa no sentido de garantir aos demais o acesso à terra, à renda e à produtividade.

Edição: Bruna Pelegrini.

O arrendamento de terras indígenas sob o governo Bolsonaro

Desde sua eleição em 2018, Jair Bolsonaro comparava as terras indígenas aos “zoológicos” e os povos indígenas que as habitam como “animais em cativeiro”, e declarou a necessidade de integrar os povos indígenas, que estão supostamente em uma “situação inferior”, em um chamado “Brasil real”.

Essa política de “integrar indígenas à sociedade” se refletiu em diversas iniciativas que colocaram em risco aldeias e reservas indígenas, além de aumentar os arrendamentos de terra e acirrar os conflitos entre agronegócio e povos originários.

No primeiro dia de seu governo, Bolsonaro editou a Medida Provisória 870, retirando da Funai a atribuição de demarcar os territórios indígenas, transferindo-a para o Ministério da Agricultura, que passou a ser chefiado por uma liderança do agronegócio brasileiro, a ministra Teresa Cristina.

Sob o governo Bolsonaro, os conflitos indígenas se agravam no país e a Tese do Marco Temporal ressurgiu. Nos quatro anos do governo de extrema direita, o Poder Executivo não apenas ignorou a obrigação constitucional de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários como também atuou, na prática, para flexibilizar este direito.

O Cimi destaca, no Relatório da Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – Edição 2022, que além dos discursos do próprio presidente da República, a postura ofensiva contra os povos originários também ficou registrada no posicionamento recorrente de órgãos como a Advocacia-Geral da União (AGU) e a própria Funai. A atuação desses órgãos em processos judiciais e administrativos foi quase sempre contrária aos direitos dos indígenas e favorável, especialmente, aos interesses econômicos do agronegócio e da mineração.

Em 2022, conforme o levantamento do Cimi, essa postura se refletiu no alto número de casos registrados nas categorias conflitos por direitos territoriais, com 158 registros, e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, com 309 casos que atingiram pelo menos 218 terras indígenas em 25 estados do país.

Se o Marco Temporal se tornar legal, evidentemente vai impactar todos os territórios, ressalta o indigenista. “Como o Marco Temporal agride a constituição, ao se tornar legal ele fragiliza o Artigo 231. Efetivamente, se a tese vingar, ela compromete as demarcações futuras, o usufruto do solo e liberaliza os territórios para especulações, invasões e explorações econômicas. O que vai gerar mais conflitos, mais violência, mais exclusão e mais fome”, diz.

Atuação (ou a falta dela) do poder público nos conflitos da Aldeia Ivaí

O grupo que controla a Aldeia Ivaí por meio da violência parece ter certeza da impunidade. Há inquéritos abertos hoje no Ministério Público Federal que investigam crimes cometidos pelo grupo que domina a reserva. O Parágrafo 2 teve acesso a dois inquéritos já arquivados. Um deles, de 2017, apurava denúncias de desvio de verbas, ameaças e perseguições perpetradas por parte do cacique da Aldeia, além de notícias de arrendamentos das terras.

Um filme de terror: Indígena encontrada embriagada nos arredores da Aldeia. Posteriormente descobriu-se que ela pertencia a outra Terra Indígena. Ela foi hospitalizada e voltou para sua cidade. Foto: Colaboração.

Na época, o procurador Geral da República argumentava que “não cabe ao Estado, seja por intermédio de órgãos do executivo, seja por meio do órgão ministerial, o papel de árbitro de conflitos entre membros de certa coletividade com valores e princípios tão distintos da sociedade envolvente. Ainda mais quando ela se mostra plenamente capaz de resolvê-los de acordo com sua respectiva cosmovisão e por si mesmos, conforme a princípio o caso dos autos parece revelar”.

Ou seja, a decisão do MPF afirmava que os próprios indígenas seriam capazes de resolver seus conflitos e não caberia ao poder público fazer uma mediação. Em palavras mais diretas, significa dizer que os indígenas teriam de resolver por conta própria os problemas causados a eles por terceiros.

A decisão do MPF é criticada por Fernanda Kaingang, advogada indígena, mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB) e doutoranda em patrimônio cultural e propriedade intelectual pela Universidade de Leiden, da Holanda. Ela enfatiza que o poder público precisa intervir sempre que o conflito derive de problemas trazidos pela sociedade não indígena (arrendamento, por exemplo, que envolve o plantio ilegal em terras indígenas), sempre que haja interesses econômicos externos (como o agronegócio) e sempre que direitos fundamentais inerentes a qualquer ser humano sejam violados.

“Desde quando a violência foi naturalizada e considerada parte das nossas culturas pra justificar a omissão daqueles que deveriam agir? No caso do arrendamento ilegal das terras indígenas, devem ser responsabilizados todos os envolvidos, quem arrenda e os arrendatários, incluindo a Funai e o MPF se tiverem sido omissos ante a obrigação de defender o Usufruto Exclusivo que os povos indígenas têm sobre seus territórios por determinação constitucional”, diz.

Fernanda conhece muito bem a realidade dos arrendamentos de terras indígenas. Ela é do Rio Grande do Sul e lá diversas aldeias, inclusive a dela, sofrem com a violência gerada pelo arrendamento das terras. Em janeiro de 2021, no município de Água Santa (RS), uma escola virou trincheira em uma guerra interna na Reserva Indígena do Carreteiro. A mesma situação aconteceu em outras localidades.

Os confrontos ocorreram em terras indígenas no norte gaúcho. Juntas, elas somam mais de 15 mil hectares. Boa parte ocupada pela agricultura. E o motivo da violência são arrendamentos dessas terras indígenas a agricultores brancos.

“No Rio Grande do Sul os Kaingangs foram protestar em setembro de 2021 em frente ao MPF, em Passo Fundo, e pela omissão das instituições públicas que têm atribuição de defender direitos coletivos dois indígenas foram assassinados em outubro de 2021 na Terra Indígena Serrinha. A omissão tem condenado nosso povo à morte por décadas sem que haja responsabilização pelo desvio de patrimônio público, já que as terras indígenas são bens da União”, conta Fernanda.

Ela está exilada da sua terra há quase dois anos. “Como eu, outras 30 famílias estão exiladas.  Os responsáveis pelo assassinato dos dois indígenas estão em liberdade e o arrendamento continua! Qual a efetividade da lei para proteger direitos coletivos dos povos indígenas se as instituições que deveriam promover a defesa desses direitos assinam termos de ajustamento de conduta para dar continuidade a esse flagelo que foi trazido para dentro das nossas terras pelos prepostos do governo federal?”, indaga.

O que dizem as fontes citadas na reportagem

O Parágrafo 2 procurou o Ministério Público Federal do Paraná com questionamentos sobre as acusações de arrendamentos de terra na Reserva Indígena Ivaí e sobre possíveis inquéritos abertos. O MPF respondeu que os inquéritos são sigilosos e que não pode fornecer informações sobre eles.

O Ministério Público do Paraná também foi procurado por meio de sua Assessoria de Imprensa. O MPP respondeu por meio de nota:

O Ministério Público do Paraná, por meio da Promotoria de Justiça de Manoel Ribas, informa que não tem registro, anônimo ou identificado, a respeito de nenhuma das situações apontadas pela reportagem. A despeito disso, a Promotoria tem em andamento um procedimento administrativo, instaurado de ofício, para verificar as vulnerabilidades vivenciadas pela comunidade indígena indicada, inclusive com visita previamente agendada na localidade para o dia 7 de agosto, juntamente com dois intérpretes (uma feminina e outro masculino), a fim de prestar e receber, da melhor forma possível, as informações necessárias. Esse encontro terá a participação de representantes de outros órgãos públicos, convidados pelo MPPR”.

A reportagem procurou também a Polícia Federal por meio de sua Assessoria, mas não recebeu resposta.

A Funai, como mencionado na reportagem, foi procurada por duas vezes, mas não se manifestou.

Dirceu Pereira Santiago foi procurado, mas se negou a responder as acusações.

O Advogado Ubirajara Tonelli também foi procurado, mas não respondeu.

A reportagem não conseguiu contato com o cacique e o vice da Aldeia, Domingos Zacarias e Reinaldo Ninvaia.

Na próxima reportagem desta série: A atuação de políticos, comerciantes e uma grande cooperativa no arrendamento de terras indígenas na Aldeia Ivaí, em Manoel Ribas.

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About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.

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