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Moradia: Fila da Cohapar pode levar 116 anos para chegar ao fim

Reportagem de José Pires

Fotos de Emerson Nogueira

Edição: Paula Zarth

O estado do Paraná tem um déficit habitacional de meio milhão de moradias. Em Curitiba, mais 77 mil famílias estão em busca de um lugar para viver. No entanto, o problema não é apenas a falta de casas, mas também de condições adequadas de habitação. Em alguns municípios mais pobres do estado é possível afirmar que a totalidade da população reside em assentamentos precários, segundo informações do Plano Estadual de Habitação de Interesse Social. De acordo com esse mesmo relatório, em Curitiba, cerca de 20% das famílias moram em favelas, em loteamentos clandestinos ou em ocupações irregulares.

É para fugir dessa realidade que, na busca da moradia digna, famílias buscam o acesso às políticas públicas de habitação. Existem, segundo a Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar), 400.000 famílias inscritas hoje em seus programas de habitação que envolvem a aquisição da casa própria, entrega de títulos de propriedade, entre outros. Destas, 280.000 aguardam para receber a casa própria. Nos dois últimos anos (2020/2021) a Cohapar entregou 4.815 imóveis, entre urbanos e rurais. São em média 2.400 imóveis por ano.

Se esse ritmo de entrega se mantiver (mas ele já foi menor, em 2019 foram entregues 1.281 unidades), a fila da Cohapar pode levar 116 anos para chegar ao fim, isso se nenhuma nova família se cadastrar. Ou seja, a fila por moradia da Cohapar pode acabar apenas no ano 2138.

A falta de moradia (e a demora no acesso às políticas públicas habitacionais existentes) tem reflexo direto no surgimento de ocupações coletivas. E elas se multiplicaram em todo o Paraná durante a pandemia de Coronavírus. Muitas acabaram por meio de reintegrações de posse determinadas pela justiça. Dados da Campanha Despejo Zero revelam que, desde março de 2020, 1.706 famílias foram despejadas no estado.

Conforme estimativa do Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (Nufurb) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), mais de 100 mil pessoas que vivem em ocupações irregulares no estado podem ser alvo de despejo a partir de 30 de junho, por causa do fim dos efeitos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que proibiu o cumprimento de mandados de reintegração de posse durante a pandemia.

O levantamento da Defensoria Pública aponta que, entre março de 2020 e maio de 2022, houve um aumento de 12% nos mandados de reintegração de posse, que já estão nas mãos da Polícia Militar, prontas para serem cumpridas. A maior parte delas (111) nas áreas rurais e 72 em áreas urbanas. Destas, quase metade (31) estão na capital.  

Ocupações resistem e conquistam vitórias

Curitiba soma hoje mais de 360 espaços informais de moradia, nem todas recentes, algumas avançam por décadas, sem consolidar a regularização. O sul da cidade concentra ocupações urbanas superpopulosas. E a mais nova também fica lá. Ela se chama “Povo sem Medo” e surgiu no dia 10 de junho deste ano. Mais de 400 famílias ocuparam um terreno de 1,8 hectares no bairro Campo de Santana. A área pertencia à Construtora Piemonte e há mais de 30 anos estava sem destinação.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foi quem organizou a ocupação. É a segunda organizada na capital paranaense pelo movimento desde o início da pandemia. A outra, que se chama Marielle Franco, fica a cerca de 1 km de distância e surgiu no final de 2020. Lá vivem 350 famílias.

No dia 10 de junho, cerca de 400 famílias ocuparam um terreno no bairro Campo de Santana, no Sul de Curitiba. Foto: Emerson Nogueira

A nova ocupação Povo sem Medo também sofre com a incerteza de uma reintegração de posse, que está suspensa. Agora, conforme explica Adrian Silva, integrante do MTST e coordenador da ocupação, antes de a justiça expedir uma nova ordem de despejo, a prefeitura de Curitiba precisa promover uma série de ações para acolher essas famílias. “O que foi colocado é que para haver reintegração algumas ações precisam ser realizadas pela prefeitura, não é apenas pegar o povo e jogar na rua. O Ministério Público, o Conselho Permanente de Direitos Humanos do Paraná e a Defensoria Pública do estado se manifestaram no processo destacando que é absurdo fazer o despejo sem mediação. Assim, para tirar as pessoas daqui a prefeitura ficou com a responsabilidade de atender algumas prerrogativas, como cadastrar as famílias, ver a necessidade de cada uma, dos idosos, das crianças, das pessoas com deficiência. Além disso, para remover os ocupantes, a prefeitura precisa conseguir moradia digna pra eles”, destaca.

Essa mudança de termos por parte do judiciário ao suspender os efeitos da reintegração de posse na ocupação Povo sem Medo é reflexo de ação da Defensoria Pública. O Defensor Público João Victor Rozatti Longhi, coordenador do Nufurb, explica que a entidade atuou como interlocutora no início de 2022 junto a instituições públicas, como o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) e o governo do estado, entre outras, para propor que o TJ orientasse ou determinasse a todos os juízes que atendessem a algumas regras para emitir reintegrações de posse. “São três regras: se não é possível a mediação, que as pessoas fiquem na terra onde estão morando; se elas não puderem ficar totalmente, que ao menos fiquem parcialmente e, por fim, caso seja acatado o pedido de reintegração de posse, que haja uma metodologia que promova a proteção dos direitos e da dignidade das pessoas, como fez a juíza no caso da ocupação do Campo de Santana. Ela determinou que a reintegração seja condicionada a uma série de ações, como o diálogo com os moradores, o cadastramento das famílias, descobrir se vai haver desabrigamento, saber onde essas pessoas vão ficar”, afirma.

Dados do “Relatório – Panorama dos Conflitos Fundiários no Brasil (2019-2020)” revelam que no Paraná os pedidos liminares em ações possessórias são concedidos na grande maioria dos casos. Dados da pesquisadora Julia Bonnet, mostram que, de 90 casos estudados, 69 mandados de reintegração de posse foram aceitos pela justiça de forma integral e quatro de forma parcial. A análise foi feita pelos pesquisadores Daisy Carolina Tavares Ribeiro e Alison Lopes Ribeiro. Eles revelam também que é baixíssima a adesão do judiciário aos recursos disponíveis para mediação de conflitos, apesar das diversas provisões trazidas pelo próprio Código de Processo Civil de 2015 quanto aos conflitos fundiários coletivos, bem como das diversas normativas de direitos humanos que as recomendam. Em apenas 20% dos casos, segundo o levantamento, foi designada audiência de conciliação ou mediação.

Desemprego e custo de vida empurram famílias para moradias precárias

A crise econômica, agravada pela crise de saúde, tem relação direta no aumento das ocupações coletivas. É o que destaca o Desembargador Fernando Antônio Prazeres, da Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. “Nossa Comissão visita as áreas em conflito e procura manter diálogo com os ocupantes. Sempre indagamos a respeito das causas que motivaram a ocupação e as respostas pouco variam: desemprego, diminuição de renda e a impossibilidade de pagar aluguel. É certo que a pandemia só agravou a situação”, afirma.

A pesquisadora Daisy Carolina Tavares Ribeiro, que também é assessora jurídica da Ong Terra de Direitos, situa que o gasto das famílias curitibanas com aluguel é um dos fatores do inchaço das ocupações que já existem e do surgimento de novas. “Em Curitiba, dentre os componentes do déficit habitacional, o que é mais expressivo é o ônus excessivo com aluguel, que representa 42% do total do déficit”, diz.

O peso do aluguel foi fator determinante para que a venezuelana Carla Nunes, ao lado do esposo e do filho, se juntasse à ocupação no Campo de Santana. A família, que tem renda mensal de cerca de R$ 1.000, pagava R$ 700 por mês em uma casa no bairro Sítio Cercado. “Meu esposo é pedreiro e vive de bicos. Às vezes fica semanas sem conseguir trabalho. Pagar aluguel ficou impossível pra nós. Por isso viemos pra cá”, conta a imigrante.

A venezuelana Carla Nunes (sentada) partiu com esposo e filho para a Ocupação Povo sem Medo na esperança de fugir do aluguel. Foto: Emerson Nogueira.

Marcelle Valentim, advogada do MTST, ressalta que ocupar não é apenas um ato voltado à distribuição de terrenos, mas também uma manifestação a longo prazo pelo direito à moradia.  “O MTST entende que ocupar é um direito. Assim, todo o ato de ocupar é realizado em terrenos que não estão cumprindo a função social legalmente prevista, que estão abandonados há anos e/ou com dívidas de impostos. Tudo isso ocorre com o intuito de solicitar o cumprimento da lei orgânica do município e da Constituição Federal. Nossos atos são amparados por análises de profissionais da área jurídica, urbanística, ambiental, e também autoridades políticas”, explica.

A parte orçamentária que cabe nesse latifúndio

A Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) revela que existem hoje cerca de 50 mil famílias cadastradas em seus programas habitacionais. Segundo a Cohab, desde que o prefeito Rafael Greca assumiu a Prefeitura, em 2017, apenas duas mil famílias receberam as chaves da casa própria, entre inscritos na Cohab e moradores transferidos de áreas de risco. Caso esse ritmo de entrega continue, a fila da Cohab deve demorar 25 anos para terminar, ou seja, teria fim no ano de 2047.

A Prefeitura de Curitiba destinou apenas 0,25% do orçamento público para o setor de habitação na capital paranaense entre os anos de 2013 e 2020, de acordo com análise sobre os dados de contratos enviados pela Prefeitura de Curitiba para o Tribunal Estadual de Contas (TCE) feita pela “Campanha UOH!”, iniciativa de monitoramento estatístico sobre moradia que reúne organizações e movimentos sociais.

A previsão orçamentária para a área habitacional para o ano de 2022 não é muito diferente. O projeto encaminhado à Câmara de Vereadores pelo Executivo municipal prevê orçamento destinado para habitação na Lei Orçamentária Anual (LOA) 2022 da ordem de R$33 milhões – valor correspondente a 0,35% do orçamento total. Para ações vinculadas à área de segurança pública, por exemplo, estavam previstos R$176 milhões. Já as ações voltadas para o urbanismo aglutinam o orçamento de 1 bilhão de reais. 

Indagada sobre o orçamento para habitação, a Cohab respondeu, por meio de nota, que além deste orçamento os projetos habitacionais de Curitiba recebem recursos do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS), governo federal, organismos internacionais como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), além de parcerias com a iniciativa privada – nas quais o poder público municipal oferece benefícios fiscais e construtivos para viabilizar um maior de número de unidades de interesse social”.

Foto: Emerson Nogueira.

Regularização Fundiária: uma alternativa morosa

A Regularização Fundiária Urbana (Reurb) é um programa criado por lei federal que busca a regularização de terrenos que apresentam irregularidades fundiárias, urbanísticas ou ambientais. Além dela, existe também a Regularização Fundiária que abrange, além da urbana, a rural e a da Amazônia legal.

Os dois programas são alternativas que os municípios e estados têm de regularizar moradias já existentes, mas que se encontram irregulares, sejam por questões ambientais ou pela falta de documentos. As ocupações coletivas, por exemplo, necessariamente devem passar por esse processo de legalização.

Elisa da Costa Siqueira é Arquiteta e Urbanista, mestranda em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Pesquisadora no Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles. Ela explica que o processo de Regularização Fundiária é muito importante, porém, pode ser moroso. 

A urbanista ressalta, entretanto, que a regularização não é lenta em si, mas acaba sendo por outras questões atrasam mais ainda sua efetivação, como a falta de recursos públicos necessários para as indenizações por desapropriação ou para a compra de terrenos para a regularização. “A morosidade pode ainda ser fruto da falta de interesse em realizar a reforma urbana; a falta de recursos e interesse em urbanizar áreas, que acabam sendo urbanizadas pelos próprios ocupantes antes de sua regularização através do sobretrabalho em feriados, folgas e finais de semana; o interesse em manter a população ocupante em uma condição de transitoriedade permanente, em que ao invés de receber seus direitos como cidadãos os recebe como favores políticos pelos quais fica devendo; a priorização do direito à propriedade, independente do cumprimento de sua função social, em detrimento do direito à moradia digna; entre outras questões”, afirma.

Segundo a Cohapar, hoje no Paraná existem 16.296 famílias cadastradas no Reurb. A Companhia entregou, conforme dados encaminhados ao Parágrafo 2, três mil títulos de propriedade registrados em cartório nos dois últimos anos.  

Os programas de regularização acontecem também em diversos municípios do estado. Em Araucária, na Região Metropolitana de Curitiba, existem hoje, segundo Marcelo Gustavo Furman, arquiteto e chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMUR), aproximadamente 3.190 unidades imobiliárias em processo de regularização fundiária por Reurb, sendo 1.600 destas apenas na ocupação conhecida como Jardim Israelense, localizada no bairro Capela Velha. “Se for estimado três pessoas por unidade imobiliária temos algo em torno de 9.570 pessoas em processo de regularização fundiária por Reurb no Município”, ressalta.

Entretanto, em Araucária, nenhum título de propriedade foi entregue até agora. “Nenhum processo de Reurb foi finalizado em Araucária, mas há dois processos em estágio bem avançado, são os casos das ocupações Arvoredo I (250 unidades) e Portelinha I (180 unidades), ambos no bairro Capela Velha”, revela o arquiteto.

Segundo a Cohapar, hoje no Paraná existem 16.296 famílias cadastradas no Reurb. A Companhia entregou, conforme dados encaminhados ao Parágrafo 2, três mil títulos de propriedade registrados em cartório nos dois últimos anos. Foto: Emerson Nogueira.

Na cidade de Piraquara, também na Região Metropolitana, o Programa de Regularização Fundiária teve início em 2007, com processos judiciais atendendo famílias de todo o município. Hoje, como revela a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, cerca de mil processos judiciais de regularização tramitam, com o apoio do Núcleo de Regularização, além de processos administrativos.

Já em Curitiba, segundo a Cohab, foram entregues títulos de propriedade a 1.072 famílias em 2020 e 2021 por meio do Programa de Regularização Fundiária. A Reurb, no entanto, é um programa que não existe na capital, como destaca nota da própria Cohab.

Para Elisa da Costa Siqueira, um outro entrave para que os processos de regularização fundiária sejam menos demorados é que também existe em todo país muito interesse em concentrar as terras nas mãos de poucos proprietários que decidam de que forma e por quem elas devem ser ocupadas de modo a aumentar sua renda, mantendo terrenos vazios para especulação imobiliária e, consequentemente, grande parte da população refém de altas taxas de aluguéis ou parcelas infinitas e impossíveis de serem pagas para se adquirir a casa própria. “Estes proprietários, além de pressionarem o poder público e deterem poder de influência, também pertencem à mesma classe que aqueles que ocupam cargos executivos, legislativos e judiciários, via de regra. Dessa forma, boa parte dos municípios sequer aplicam a lei”.

A arquiteta enfatiza ainda que algumas ações que poderiam agilizar o processo de regularização e acesso a moradias são apontadas pela Dra. Daniele Pontes, professora de Direito Urbanístico e Política Fundiária no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR: para as irregularidades fundiárias, a emissão de títulos de posse, mais rápida que a de propriedade, para posteriormente serem convertidos em títulos de propriedade; para as irregularidades urbanísticas, a demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que fixam menos exigências em relação ao uso e ocupação do solo para facilitar a regularização destas áreas; e, para as intervenções urbanísticas necessárias à urbanização de assentamentos precários, a destinação de recursos públicos à infraestrutura.

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.