Coluna Filosofia Di vina
Todos têm a primeira vez. Minha primeira dor de dente foi aos 32 anos de idade. No começo parecia suportável, depois do terceiro dia comecei a cogitar formas de suicídio. A insônia costumeira se aproveitou da situação, os pernilongos em coro me acalantavam pelas madrugadas em claro. Me indicaram um pó branco que amortece os dentes, adorei!
Spidufen 600, este é o nome do milagre. Com dezenas de trabalhos e leituras para fazer o spidu me dava o alívio dos deuses, se o paraíso existe ele deve ter fontes de Spidufen 600.
Uns amigos me chamaram para beber, tomei duas doses do pó mágico e tudo ficou leve como uma canção de Neil Young. De repente o mundo volta a ter gosto, cores e as pessoas voltam a ser legais. Nossos problemas, todos eles deveriam ter seu próprio Spidufen. Depois de alguns minutos da ingestão ninguém mais pensaria em dinheiro, solidão, doença ou amores que há muito se foram.
Logo após a segunda cerveja, o efeito do remédio sumiu. Já não consigo mais acompanhar o ritmo das piadas. Na TV Temer debocha, sei que é da minha cárie, a repórter fala sobre a denúncia, mas no movimento das suas mãos eu saco que é sobre mim. Cada batida do coração é sentida no dente. Todos os problemas voltam: a juventude reacionária, os homens de bem, as reformas neoliberais, o desemprego, a solidão e as dívidas. Todos seguram o cabo do martelo que destrói minha noite, meu fim de semana, meu dente e minhas utopias. Martelada a martelada busco minha casa ou uma bala perdida.
No auge da dor delirante que já paralisa meu lado esquerdo tenho uma visão mística: uma carruagem em formato de dente pára no meio do barro e da chuva, dela saltam Antonio Candido e Eduardo Galeano, ambos de branco com colares de dentes nos pescoços e falam “Não há spidufen que resolva a dor, um alívio não é a solução” Galeno acende um cigarro em plena chuva ergue o dedo e diz em tom grave “Em toda história da América Latina matamos nossos dentistas para ficar com os remédios vendidos pelas grandes potências, alívios que nos custam os próprios dentes” e o professor Antonio Candido explica “olhe o caipira, não tem dor de dente ele mesmo os arranca; o homem do campo não tem mais nada a perder”
Acordo sem dor na sala do dentista que me pede segredo por ter dado mais vacaína do que deveria e assim o fez devido a minha insistência, tento dizer que não se preocupe, mas minhas palavras se embaralham e morrem em minha boca antes de virarem som.