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Meu bandido favorito

Por Mário Costa

Este relato pode ser uma confissão de um crime. O relógio despertou às 06h50 e com as remelas no olho fui dormindo ao banheiro. O bolor nas paredes da sala fazia parte da toalha de banho úmida, a piá da cozinha cheia de louça, duas cadeiras e uma topada. Um banho rápido pra acordar, lavar o sovaco, o saco e a bunda, tirar o suor do corpo e o estado de adormecido. Espremi duas laranjas, a granola com leite, pão com margarina, diz que é bom comer frutas e cereais, emagrece, grandes merda contínuo com barriga.

Na garagem o Palio que sai para passear nos finais de semana, dei muita sorte depois de espatifar contra a parede e o seguro cobrir. Lhe dou um afago e sem mais despedidas vou pro trabalho. Você já viu quanto custa andar de carro? O preço da gasolina? Os estacionamentos? Tudo esta caro, andar de ônibus é uma obrigação ao proletário, não um deleite. Não viaja pequeno intelectual de centro-esquerda.  Enfim, atrasei e quase perdi o ônibus. Aquela menina bonita está no ponto, pra quem deseja ser comunicador responder um bom dia é fácil, gaguejo em duas palavras, engulo outras e agradeço por segurar o ônibus com um aceno de cabeça. Não é timidez, é síntese.

O nome dela é Jade e trabalha num banco. Estuda contabilidade, veio da fazenda, tem mais uma irmã, eu acho, não ter certeza é foda. Quando estão as duas no ponto discutem, reclamam que uma ficou demais no banheiro, blábláblá e por isso que estão atrasadas. Fone de ouvido, rádio, noticiário 99.5, 93.9, não, não, é Boechat, 96.1, seu amigo de todas as manhãs. Parecem um casal, uma relação conturbada que transborda, porque se fosse lá em casa alguém teria levantado para as dez, resolvido.

Certa vez fui numa festa moderna, alguém diz. Um lugar você vai paga a entrada, bebida, comida e a pessoa leva um bolo da Dr. Oetker. A mesa tinha 12 meninas, mais dois rapazes e eu que acabará de chegar. Nossa, a minha alegria ao ver aquelas mulheres foi instantânea, as chances eram 12, geralmente são nenhuma, dos sabores no buffet deu vontade de provar todos.

Sentei num canto que daria para observar e tirar as conclusões necessárias para o golpe. Os dois homens se entenderam a mão percorria a coxa e ia encurralando o outro no canto, o flerte não parecia muito à vontade, mas estava rolando. No entanto, 12 é numero par? Eita, porra! Alianças, intimidade, comandas compartilhadas, cabelos curtos pretos e vermelhos, exagero, tinha uma loirinha, mas, putz véi, percebi que as chances eram 2, que educadamente preferi trocar por uma cerveja e a conversa.  O Duran entra no bar com a mesma empolgação pueril, pobre homem, foi boa companhia para a bebida. O fim não foi dos melhores, também segurei várias velas, mas conheci muito sobre relação a dois, Capricho, salto alto e quanto odeiam homens que se intrometem na briga, sabe cume né?

Que trânsito loco. Nossa como este país anda com tanta corrupção? Queria só um terço para pagar os empréstimos e curtir uma praia, mete à mão daqui, dali, às vezes paro de acompanhar as notícias limpar um pouco a cuca, só orando, rezando, tomando passe, não resolve, é muita sujeira, bulinada na geral. Xingar a mãe desses cara é pouco, tem que pegar as treck e bang, bang, mas os políticos são seres mitológicos corta a cabeça e cresce duas, é mãe, filho, sobrinho, neto, por isso que é uma zona.

Dá um desânimo de pensar no meu salário e no estouro que fiz no cartão de crédito. Compras pela internet o mal estar da civilização consumista, tem vendedor que é igual testemunha de Jeová, fica te empurrando o negócio, tem uns que dizem “eu tenho um desse” você fita o cara e a resposta vem forte “nem fodendo vou comprar, além de mal vestido é chato”, boa sorte. Chego atrasado de novo.

Bom dia Senhor, exclamou a chefia, dei com os ombros por educação, liguei o PC e verifiquei as atividades do dia.

08h00: ler emails

08h15: ler o horóscopo do UOL, do IG, Terra e Folha de São Paulo

08h19: Horóscopo do mês e do amor

08h21: Wikipédia

O que significa Vilipendiar? Google ah, achei.

08h40: tomar café

09h32: Ler as notícias

09h35: entrar no Kibeloco

09h50: Tomar água

10h00: Fechar Side Pocket

12h00: Almoço.

Até agora pode parecer que a minha vida é feita de vadiagem, isto não é mais crime, mas ainda sou culpado. A opinião clara é que careço de emoções. Não tenho perspectivas de crescimento profissional, puxar o saco nunca foi a onda, no meu trabalho é assim: sorrir e bajular.

O trabalho parece o governo, o chefe = presidente, o vice = o subchefe, o presidente do senado = o sub do subchefe pode ser o subchefe e quer derrubar o chefe, porém jura que não, o coordenador = câmara dos deputados e os mini-estérios (sentido figurado da palavra, vai que não entende) dos atestados, dos aposentados, dos que fazem, dos que reclamam, dos que dispersam o assunto “tudo está bom”, daqueles que querem vazar, mas não largam a teta, as minorias étnicas, de gênero e religiosas fazendo estripulia, os jogadores e os críticos do sistema.

Não tenho namorada, aos trintas anos me sinto um velho a espera da morte, desses trinta passei vinte e três estudando. Deixei algumas festas por dinheiro, alguns empregos por festas, alguns amores por desleixo. Calma, não sinta pena. Estas atitudes foram conscientes ou, ao menos, parte delas.

As pessoas convidam para o almoço, indigestão mais uma vez? Prefiro o silêncio de um canto para comer e se encostar a mão no prato leva uma mordida, sorry honey, não estou com saco. Comer o filé do bar falcatrua da esquina é meio sujo, tem umas teias, porém é razoável e ainda põe um ovo frito no filé por mais R$ 1,00. Tá passando o esporte vou ver os gols.

– Ei, amigo posso sentar?

Porra! O negócio ta vazio. O tiozinho com rabo de cavalo preso por elástico com os fios ralinhos, ralinhos, quem usa brinco nessa idade? Aff! Só faltou a camisa estampada – Senta ai, parceiro.

– E ai torce pra quem?

– Nem curto futebol.

– Isso aqui ontem tava cheio, nossa viatura por tudo quanto é lado, quebraram dois pontos de ônibus.

– É, a rapaziada exagera.

– Os gambé tava loco, desceram o ferro na vileragem.

– Perdeu de novo?

– Vai ser rebaixado, mas precisa disso?

– Putz, futebol é uma merda. A galera fica alucinada enche a cara e vai pro estádio depois sai quebrando tudo e amanhã voltam ao normal. Momento de piração.

– Eu fico indignado na minha época…

Putz, senta que lá vem a história amor a camisa, bebia e não fazia isso, era tudo na paz o mundo esta virado, e não vem esse PF? – Pois é….

– Ontem levaram até o meu carro ficaram os cacos no chão.

– Tinha seguro?

– Pior que não piá, orra! Tô fudido.

– Passei por uma dessas – Piá? Ei tio qual é?

– Você tem carro?

A pior merda do pobre é falar. Você nunca vê um rico dizendo o que tem esconde até na cueca e a maioria fala que foi suor, dos outros. – Tenho um Palio prata bacaninha e tal.

– Não quer vender? Você tem cara de um piá bacana? Mora aonde?

– No Barreirinha, perto da igreja – Piá de novo? Folgado.

– Então, tô procurando um pra comprar tenho uma grana ai, preciso fazer uns lance.

– Ahã.

– Tem namorada?

– Não.

– Completinho?

– É um bom carro.

– Se estiver cuidado, anda bem, gasta pouco.

Falou gênio, pense bem falando igual moleque arrastado, folgado, não, isto não esta acontecendo. Finalmente vem o prato e fica calado, no entanto, logo cessa… Own! Fuck,  “Giron”.

– Giron?

– Este é meu nome, moro aqui em frente ao prédio na João Gualberto nr° 624, toma cerveja?

– Tô com uns problemas. (Traduzindo: beber demais)

– Passa lá um dia desses, hoje é sexta? Trabalha até que horas?

– Valeu, fica pra próxima, obrigado mesmo – fugindo.

Acena para o dono do bar e diz “deixa a do menino, meu amigo”, pelo menos nisso valeu o almoço. Uma exaustão corrói o corpo no busão, nem vou fazer nada vou ficar de boa, como estava cansando, carregava o peso da culpa ou do mundo, que dia de trabalho tinha que arranjar um atestado, falsificar de novo? O pior de ser tratado como criança, é ser tratado como criança no trabalho, o chefe liga para os locais procurando saber aonde foi, mais relatório da tomada, abajur, da privada do banheiro, é um cara bacana, mas não tem o menor  feeling pra coisa ok, ok, ok, faço.

Dizem que o corpo somatiza estas coisas, somam e viram gordura abdominal, não pode ser só cerveja. Vez em quando sinto tremeliques na pálpebra do olho e nos músculo, nos poucos, deve ser espasmos ou estresse, tomava umas pílulas que era pra relaxar, ficava chapado, era bom. Mas, não resolvia.

Durmo de tão cansado com a roupa do corpo, acordo no meio da noite vou à cozinha, tomo água, o portão está aberto? Cadê o carro? Caralho! Não, não, não, ninguém fechou o portão putz e agora, atacou o estômago uma vontade de cagar, achei que ia escorrer pelas pernas o líquido quentinho, uffa! Nossa! Argh! Não sei se choro, grito ou rio, que merda! Delegacia para fazer o B.O preenche esse formulário, assine aqui, qualquer coisa agente liga. Será que não dá para pegar a viatura e procurar? Uma diligência? Acorda, ainda estou dormindo. Que noite de merda, aff!.

O final de semana passou se arrastando nada de interessante para relatar, só que não dormi nada, fiquei desesperado, chorei como uma menina. Segunda, não falo nada no trabalho. Cheio de coisa pra fazer, atrasei o pagamento do cartão veio com juros à fatura. Problema nunca vem sozinho, passei o dia tentando fazer algo e no banheiro com desinteira, pra que melhor, diga? Passado alguns dias as coisas melhoraram um pouco não dá pra brigar, apesar da vontade de mandar tudo pro inferno, hora do almoço vou comer naquele bar.

Almoço gostoso arroz, feijão, refogado de batata, salada e um filet com ovo. Dias sem comer nada sólido hoje estou com fome, vish! Lá vem o tiozinho. O cara se materializou não pode ser ou vem acompanhado do PF, sexta-feira vem este ônibus da novena e caiu de um deles,  tá perdido.

– Beleza, piá?

Aceno de cabeça

– Vazio hoje? A galera come na feirinha ali de cima tem novena.

– É, Giron? (com esquecimento). Já foi lá?

– Não curto muito igreja às vezes acendo uma vela.

– Eu vou de vez em quando, deve ser por isso algumas coisas.

– Tá meio tristão, o que aconteceu? Brigou com a namorada?

– Não tenho.

– Foi mal, desculpe ai…

– Tudo bem – quando você tá fudido o que é mais um dedo?

– Vamô toma aquela bera hoje?

Estava sem grana, com o cartão atrasado, uma cerveja gelada? Putz este cara não deve ser má pessoa. – Pode ser, depois passo lá.

– Vou mostrar o carro que comprei pra você.

Mal podia esperar, mas já que aceitei.

Uma casa velha caindo aos pedaços e um Mustang V8, vermelho tinindo, bato palmas e o tiozinho sai de samba canção “entra ai, viu a máquina”, uma casa suja, imunda, comida por tudo quanto é lado, abriu a geladeira, juro que vi um corpo dentro “toma uma berâ, ta geladassa, vou por uma roupa”. Fiquei de pé para não me contaminar.

– Hei, piá chega ai. Quanto queria no carro mesmo?

Achei estranho a pergunta. – Não estava à venda.

– Putz, daria uns 20 mil.

Nem era um carro tão caro assim a proposta estava acima do valor, ele tinha aquele dinheiro? – Não pretendia vender.

– Mas, porquê? – Tira da boca uma ponte dentaria e pendura num suporte de penteadeira, a insistência persistia.

– Roubaram no sábado.

– Putz, piá que foda. Você usava muito?

– Para ir para faculdade e mercado.

– Nossa sacanagem, roubaram?

Tá surdo maluco? Mas, fiquei calmo. Incrível, ele era uma pessoa sociável até.

Saímos no carro demos uma volta no quarteirão, falou mais que o homem da cobra (quem é esse cara?) e logo voltamos, tinha que voltar para receber uma entrega.  Agradeci já saindo, mas foi insistente para ficar, assim que entramos um cara estava sentado no sofá fez um comprimento com a mão e apontou para a cozinha, que situação estranha.

– Vamos lá no quarto?

Vai me comer só pode, pagou cerveja, andei de carro, fudeu…

– Passei por uns problema também, tava sem carro, precisei emprestar de um amigo, mas agora vou te pagar.

O que este cara usa? Fui entrando no quarto abre uma bolsa e vai tirando bolos de notas e pondo na minha mão, não entendia nada daquilo ia me dar 20 mil sem mais nem menos.

– Segura ai, piá. Então tinha que fazer uns esquemas ai estava sem carro, fui na sua casa você estava dormindo, peguei o seu emprestado,  ia devolver, mas os cana deram uns tiro, ficou um pouco sujo, mas fique tranquilo agente queimou a carcaça e raspou o chassi. Fique sussê.

Não estava acreditando naquilo, meus olhos estavam arregalados – Como assim?

– Não piá, sou parceiro. Vi que estava precisando de uma grana e você é um cara legal, as notas não estão marcadas o camarada lavou tudo. Então, agente se fala outro dia põe na sacola se precisar te dou mais um pouco, foi mal, tava engasgando a marcha também, agora pode comprar um melhor – tira uma arma da gaveta e carrega – não dá pra vacilar com dinheiro em casa.

Foi me direcionando para saída de forma amigável e apertou a minha mão, a reação foi nula. Tísico, esbranquiçado, pensei que iria meter bala na minha cabeça, cortar em pedaços e por na geladeira, inclusive acho que aquele cara veio buscar isso, o corpo. No portão ouvi um estampido, porra! O cara na cozinha? Sai correndo com a sacola de dinheiro, as minhas digitais estavam no carro e agora o B.O, este dinheiro o cara vai me  fuder, tenho que devolver, o tiro, sabe onde moro, não, não, não. O desespero tomava conta da situação, ficar com o bolo de notas? O celular toca número desconhecido atendo sem perceber.

– Alô?

– Hein piá, faltou um pacote de notas, conta aí, volte ai para te dar.

Porra ele tem meu número. – Putz, tô no ônibus já, deixa pra próxima.

– Oh, piá não vacila com esse dinheiro, compra uma caranga da hora.

Cheguei em casa e respirei por longos períodos, ligo pra polícia? Esse cara não é amador, esta sacola? Ai meu Deus? Rezar não adiantava. Joguei o saco de dinheiro no armário para que ninguém visse, em baixo da cama, cheguei a furar o colchão que estourou uma mola  acertando a cabeça. Vai vir buscar esta grana na minha casa, matou o cara que ia rouba-lo, tirou o dinheiro para ninguém saber, outras pessoas vão vir atrás, é agora? Não vou casar ter filhos, pode castrar e dar para o papagaio, tinha um papagaio? Na cozinha. Um saco de alpiste, um corpo na geladeira, era um corpo, a cerveja estava envenenada, vou levar esse filho da puta pra cadeia, mas o dinheiro como vou explicar? Não tinha como ficar calmo e respirei apático na cama, desmaiei.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

About Mario Luiz Costa Junior

Jornalista e Músico, integrante colaborador do Parágrafo 2. Cronista urbano e repórter de cultura e sociedade, tem como referência os textos literários e jornalísticos de Gabriel Garcia Márquez e Nelson Rodrigues, da lírica de Cartola e da confluência de outras artes, como o cinema, no retrato do cotidiano no enfoque da notícia. Acredita que viver é um ato resiliente no caminho de pedra para a luz.