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Meninos do Parolin – A chacina promovida pela PM que tirou a vida de quatro jovens em 2019

Por José Pires

Foto principal: Emerson Nogueira

Na noite de 27 de setembro de 2019, policiais da Rone (Rondas Ostensivas de Natureza Especial) da Polícia Militar do Paraná mataram quatro jovens em uma ocorrência no Bairro Hauer, na capital do estado. Eduardo Augusto Damas de 21 anos, Elias Leandro Pires Pinto de 17, Felipe Bueno de Almeida de 16 e Gustavo Bueno de Almeida de apenas 14 anos morreram no local. Os policiais alegam legítima defesa. As famílias, a Polícia Civil, o Ministério Público, um testemunho e o vídeo de uma câmera de segurança, no entanto, contestam essa versão.

Os PMs foram denunciados pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) da Polícia Civil e podem responder por homicídio qualificado. Nesta terça-feira (11/05), aconteceu uma audiência para ouvir a mãe de dois dos meninos assassinados. O processo do júri é dividido em duas fases: a pronúncia, na qual o juiz vai decidir se há indícios de homicídio. E depois disso há a fase do júri, que é no plenário e diante dos jurados, quando de novo serão ouvidas as testemunhas e feitas as alegações orais de acusação e defesa.

Conheça a história da chacina:

Um rolezinho na sexta

Era final da tarde de sexta-feira, 27 de setembro de 2019. Os irmãos Felipe e Gustavo Bueno jogavam bola como faziam quase todos os dias. Depois de ajudar a mãe na coleta de reciclados os dois ganhavam o as ruas do bairro Parolin e esgotavam o restante da energia correndo atrás de uma pelota. Na quadra, encontraram Elias Leandro Pires, amigo e frequentador do lugar.

Naquela sexta, o jovem Eduardo Augusto Damas apareceu na quadra onde os jovens jogavam. Estava dirigindo um Tucson, carro da categoria SUV (utilitário esportivo) e convidou Felipe, Gustavo e Elias para dar um rolê.  

Os quatro eram moradores do Parolin. O bairro, com quase 12 mil habitantes, se divide entre a parte baixa e a parte alta. Na alta sobram belas casas, cercadas por muros em ruas onde o asfalto se estende como um tapete. Na baixa, onde os jovens moravam, as ruas são estreitas e margeiam o rio Guaíra. Barracos de madeira se amontoam e os quintais são depósito de materiais recicláveis. Nesta parte, segundo os moradores, a polícia está sempre presente, batendo primeiro e perguntando depois.

Felipe era aventureiro e cheio de vida, como é comum aos meninos de sua idade. Gustavo era comunicativo, muito conhecido e querido na vila. Aos 14 anos não tinha perdido o semblante de criança. Uma foto põe em dúvida sua idade, parece ser ainda mais novo. “Eram dois meninos queridos no bairro. Os dois eram muito conhecidos, todo mundo gostava deles. E suas vidas se resumiam a ajudar a mãe a catar reciclados e jogar bola”, conta Silmara Aparecida Bueno, tia dos dois.

O Tucson, dirigido por Eduardo Damas, era um “piseira” (veículo comprado e não pago, com financiamento em atraso ou mesmo sem documento e com procedência muitas vezes desconhecida). Mas esse tinha também alerta de roubo. Uma das testemunhas do processo afirmou, em depoimento no mês de março deste ano, que Eduardo costumava comprar esse tipo de carro, pagava em média R$ 500 por eles.

Elias, Felipe e Gustavo

Os quatro saíram do Parolin em direção ao Hauer. No entanto, o rolê durou apenas alguns minutos. Eles passaram por uma viatura da Rone que começou uma perseguição. O Tucson empreendeu fuga, furou uma preferencial, foi atingido por outro carro e capotou. A viatura parou e os policiais disparam, segundo a perícia, 36 vezes. Nove tiros atingiram o Tucson, todos de fora para dentro. Os quatro meninos morreram no local.

Silmara Aparecida Bueno foi informada da morte dos sobrinhos pouco tempo depois que aconteceu. “Eu estava em casa dormindo. Vieram me avisar e o bairro todo ficou alvoroçado”, lembra. Os moradores se revoltaram e houve protestos no dia da morte e nos seguintes, os atos foram reprimidos pela PM com balas de borracha e bombas de efeito moral.

Ricardo Pinto, de 43 anos, pai de Elias, ficou sabendo da morte do filho perto de meia noite daquela sexta. Para ele, o garoto de 17 anos, que tinham cinco irmãos, estava no lugar errado, na hora errada. “Ele era um menino que teve seus problemas com a justiça. Mas estava trabalhando, ajudava o tio que era pedreiro e me ajudava, sou motorista. Estava tomando rumo na vida, mas não teve chances de continuar”, lamenta.

Elias, apesar da pouca idade, era amasiado e já tinha dois filhos. Na semana em que foi assassinado tinha tirado sua carteira de trabalho. O pai conta que ele cumpria uma medida socioeducativa, ia começar a fazer um curso profissionalizante e sonhava em conseguir um trabalho como menor-aprendiz. “Não estou aqui pra dizer que meu filho era santo, mas também não era criminoso. Estava na hora errada, no lugar errado. Teve passagens como adolescente, mas estava mudando. Queria ter sua casa, seu carro, tudo isso trabalhando. Mas não conseguiu. A gente dava muitos conselhos, na periferia sempre vai ter piazada que acha que é fácil ganhar a vida, eu sempre falava pra ele não cair nessa”, desabafa o pai.

A morte dos quatro teve um profundo impacto nas famílias. A mãe de Felipe e Gustavo se mudou do bairro e hoje mora em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. Ela, que tem outros filhos, está totalmente desestruturada, como conta Silmara Bueno. “A família ficou sem chão, sem estrutura. Eram duas crianças que foram executadas sem chance de defesa. Minha filha, que hoje tem 16 anos e se criou com o Felipe e o Gustavo, desenvolveu depressão depois da morte deles. Para quem cometeu o crime foi fácil, para a família que foi destruída ainda é muito difícil”, lamenta.

MP e Gaeco falam em execução

A investigação já terminou. O Gaeco apresentou relatório entendendo que houve excesso na atuação dos policiais, segundo revela Vitor Leme, advogado das famílias das vítimas. “O Ministério Público denunciou os PMs responsáveis e agora estamos na fase de instrução da pronúncia na Vara do Tribunal do Júri”, diz o advogado.

Os quatro policias foram denunciados por homicídio. Na ocorrência estavam o Tenente Igor Deliberador Budne e os soldados Eduardo Henrique dos Santos Arbigaus, Helton Luiz Lacerda e Luiz Fernando Sokoloski.

Em 25 de setembro de 2020 a RPC TV divulgou reportagem com um vídeo (ver abaixo) de uma câmera de segurança próxima ao local da ocorrência. Nele, é possível ver o Tucson furando uma via preferencial e sendo atingido por outro carro. Depois de capotado, o veículo onde os meninos estavam é alvejado dezenas de vezes pelos policiais.

O laudo da perícia aponta que o carro, no qual estavam os jovens, foi atingido por nove tiros, todos vindos de fora para dentro. Outro perito examinou as imagens e confirmou que os rapazes cruzaram a preferencial e que, depois do capotamento, os PMs atiraram, mas que a baixa definição da imagem dificultou a contagem dos disparos.

O perito diz ainda que um dos jovens sai do carro abaixado, e um dos policiais se aproxima e dispara. Em outro trecho da imagem, o perito diz que aparentemente um dos jovens está sentado fora do carro e, após a passagem de um policial, cai no chão.

Ao encontro do que disseram os peritos vai o depoimento de uma das testemunhas, que depôs em março desse ano. Segundo o homem, que é morador do local e acompanhou a ação, “um dos rapazes, depois do acidente, estava deitado no chão com as mãos na cabeça” em clara alusão a um movimento de rendição. Segundo o depoente, depois do fato a PM questionou a existência de câmeras de segurança no local e perguntavam, entre eles, onde estaria uma mochila.

Para o advogado Vitor Leme, a principal defesa dos policiais é tentar manchar a reputação dos quatro jovens que foram assassinados, como se ter cometido algum erro na vida fosse uma justificativa para ser executado pela polícia. “Estamos muito confiantes que as provas dos autos são suficientes para demonstrar que os policiais agiram naquele momento como carrascos, decidindo ceifar a vida de quatro jovens periféricos que não representavam qualquer ameaça. Eu queria complementar que é muito importante não naturalizarmos a ação letal da polícia. Por mais erros que uma pessoa tenha cometido na vida, não há pena de morte no Brasil, e mesmo nos países que tem, ela só acontece após um julgamento justo e com possibilidade de defesa”, enfatiza Leme.

Em 2019, segundo o Gaeco, a Policia Militar do Paraná matou 157 pessoas.

A versão da PM

Os policiais envolvidos na chacina declararam que apenas revidaram à agressão desferida pelos jovens. Segundo eles, ao se aproximarem do carro foram recebidos à bala. A PM afirma que três armas teriam sido encontradas no Tucson.

Eduardo Miléo é advogado de três dos acusados. Segundo ele, a instrução processual vem demonstrando que os Policiais Militares agiram de forma correta. “O veículo roubado estava em fuga, em alta velocidade por várias quadras, deixando bem claro que o bando criminoso não estava querendo se render. Após a colisão o bando armado investiu contra a equipe policial, que não teve outra alternativa, senão buscar cessar a iminente e injusta agressão”, diz.

Sobre o laudo da perícia, depois da análise do vídeo, ele afirma que a perícia fala de parte de todo o evento, não buscando contextualizar a iminente agressão havida contra os militares estaduais. Diz também que o vídeo tem baixa resolução, mas contextualizado com as provas trazidas pela Defesa Técnica, fica muito claro que os militares agiram dentro da Lei.

o Tenente Igor Deliberador Budne e os soldados Eduardo Henrique dos Santos Arbigaus, Helton Luiz Lacerda e Luiz Fernando Sokoloski.

Sobre o testemunho do morador, que diz que percebeu um jovem em posição de rendição depois do acidente, Eduardo Miléo diz que a testemunha contraditada em juízo demonstrou que não viu essa situação, pois estava distante, e não tinha ângulo de visão. Questionado sobre o fato de que os policiais perguntaram sobre câmeras de segurança na região da ocorrência o advogado alega que a pergunta é procedimento padrão da polícia militar, e visa buscar angariar elementos informativos para as investigações. E nesse caso, demonstrou que a equipe bem agiu diante dos fatos.

Outro advogado defende um dos policiais. É Claudio Dalledone Júnior. Questionado pela reportagem sobre os fatos trazidos pelo vídeo e também pela testemunha ele respondeu apenas: “O caso está sendo instruído e até o momento nada que se alcançou no inquérito foi confirmado em Juizo”.

Protesto

Na manhã desta terça-feira (11), no Tribunal do Juri no bairro Centro Cívico em Curitiba, aconteceu uma audiência para ouvir a mãe de dois dos meninos assassinados. No local, dezenas de pessoas realizaram um ato para demonstrar solidariedade às famílias e retornar uma mobilização e uma divulgação mais ampla do caso “O ato é uma forma de pressão popular para o seguimento do caso e para o afastamento dos policiais que, até últimas informações, seguiam trabalhando nas ruas. É um ato por justiça e solidariedade”, afirmaram os representantes do movimento Rede Nenhuma Vida a Menos, que idealizou o protesto.

A Rede Nenhuma Vida a Menos surgiu um pouco antes do assassinato dos jovens do Parolin. No início de agosto de 2019, houveram diversos assassinatos promovidos pela Polícia no Rio de Janeiro, o que culminou em muitas manifestações como forma de protesto ao frequente abuso, violência e extermínio sobretudo do povo negro e pobre. “Inspirados em mobilizações que aconteceriam em outros locais do país, pessoas de coletivos e movimentos de Curitiba e Região buscaram promover não só um ato pontual como também mobilizações permanentes com essa pauta. De início, houve um ato em Curitiba contra a brutalidade policial e o genocídio do povo negro e, a partir daí, iniciou-se uma série de reuniões abertas para se debater a construção da Rede, que tem como objetivo articular e organizar a proteção e resistência frente aos crescentes casos de violência policial, violação de direitos e ataques contra o povo negro e pobre, buscando facilitar a denúncia e a comunicação entre as ‘comunidades-alvo’, além de realizar ações de propaganda, formação e debates sobre essas pautas”, revelam os organizadores do movimento.

Familiares, amigos e integrantes da Rede Nenhuma Vida a Menos protestaram nesta terça-feira (11). Foto de Guilherme Araki.

No dia 27 de setembro de 2019, data na qual foram assassinados os jovens Gustavo, Felipe, Elias e Eduardo, a Rede estava recém formada e começou a acompanhar o caso. Até o momento, realizou reuniões abertas para apresentação e discussão da pauta e buscou sempre estar presente e contribuir com a organização de atos com as pautas relacionadas. “Estivemos em atos de rua (como a Marcha Contra o Genocídio e Encarceramento Negro e o Ato por Ágatha Felix, por exemplo). Organizamos um cinedebate, um espaço de lançamento de livro e sarau de rap e poesia, inclusive com um pessoal que trava uma luta sobre a mesma pauta lá na Bahia. Também já fizemos panfletagens, rodas de conversa e tivemos participação em eventos de discussões na universidade.

 

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About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.