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Madalena

Coluna Palpitações 

– Sai daí, é minha vez! Caralho! Roubou minha frente.

Madalena gritava e corria em direção à rua enquanto fechava o zíper da calça jeans. A noite estava fria demais para usar minissaia, mesmo para alguém experiente como ela. Tinha ido mijar no canto mais escuro daquele enorme muro que sombreava a calçada. Nesse interim, perdera mais um cliente, algumas de suas colegas eram também suas rivais lutando pelo sustento. Já era quase 3hr da manhã e ela tinha tido apenas dois clientes na noite, que não pagaram mais do que os vinte reais pelo boquete feito no banco do carro. A noite tinha sido longa até ali. No bolso da jaqueta vermelha que trajava, apenas 6 cigarros dentro do maço de Classic. A noite seria ainda mais longa dali para frente. Fumava compulsivamente tentando se distrair e esquecer os rostos, cuspir os gostos, fugir dos outros. Fumava para se concentrar, naquela vida ela precisava estar atenta ao que acontecia ao seu redor. Caminhando pela calçada ela avista dois garotos correndo descalços para a biqueira que ficava dois cruzamentos abaixo. Sentia-se vitoriosa por não ser viciada em crack. Encostou-se no poste de luz amarelada que fica em frente ao hotel pestilento que oferece convênio às pássaras da noite. Acende um cigarro e torce para que a fumaça lhe traga alguém.

 Um carro se aproxima, para, em seguida dá sinal de luz. Ela vai até o carro e põe sua cabeça dentro da janela, seus seios que pareciam fartos eram murchos, porém com o sutiã adequado davam a ela dois enormes atrativos.

            – Oi, gostosão!

            – Quanto é?

            – Trinta mais o quarto.

Negócio fechado. Enquanto subia as escadas até o quarto em que era mensalista no hotelzinho suspeito, ela pensava ter dado sorte de aparecer outro cliente com certa rapidez, pois, o movimento andava fraco por aquelas bandas, a concorrência com outros pontos mais badalados da cidade diminuíra o fluxo de errantes a procura de prazer na Cordilheira.

Deita na cama, abre as pernas, e aquele sujeito com um hálito que denunciava que antes deste fortuito encontro havia estado por longo período nalgum boteco qualquer abraçado em um copo de conhaque deposita sobre ela todo o peso de seu corpo. O peso de sua enorme barriga. O peso de suas angústias.

Enquanto aquele porco ofegava e suava dentro dela, ela fitava atentamente os furos da cortina púrpura que cobriam apenas metade da janela, a outra metade estava desnuda porque o varão havia quebrado em uma noite em que os amores foram mais selvagens. Porém não com ela. Há muito que ela sentia mais emoção mijando do que sendo penetrada. Em épocas mais movimentadas, faltavam quartos para tantos clientes, as garotas mais novas e mais atraentes que trabalhavam por ali chamavam muito mais homens. Contudo, as novatas não tinham as regalias de quartos alugados mensalmente como as marafonas mais antigas na casa, e corriqueiramente tinham que emprestar a alcova das mais velhas menos procuradas.

Madalena continua ali apenas de corpo presente, mas com o pensamento longe. Estava de quatro e sentia seus joelhos doendo por estarem pressionados no vão das ripas do estrado, e aquele colchão surrado já não oferecia conforto algum. O incomodo das articulações fez com pensasse em suas dores, e lembrou da frase de sua vizinha crente: “se não vem por amor, vem pela dor”. Raquel dizia isso todas as vezes que convidava Madalena para ir à igreja, ela afirmava que todas as pessoas um dia se renderiam a Deus, fosse pelo amor, ou fosse pela dor. Os convites eram sempre recusados, algumas vezes educadamente, outras nem tanto. Madalena naquele instante começou pensar em Deus, e viu-o com certa empatia e familiaridade. Refletia sobre o que trazia aqueles homens – e às vezes mulheres – até o hotelzinho suspeito para consumarem seus amores sofridos e prazeres rápidos. Muitos deles vinham por amor, por amor a si mesmo, amor aos prazeres banais, ao prazer de subjugar alguém. Amavam se sentir poderosos sobre a vida de outrem e realizarem com eles seus desejos mais sórdidos e lhe atirarem na cara aquelas notas de dinheiro amassado demonstrando assim o seu pouco valor. Outros, contudo, vinham pela dor, dor de paixões não correspondidas, dor de uma vida fracassada, dor de corno – essa era muito comum, e estes faziam questão de chamar Madalena, que no trabalho era conhecida como Shayene, pelo nome de suas respectivas damas que lhes presentavam a testa com enfeites nada honrosos. Madalena então enxergava Deus como uma grande meretriz, a maior de todas, a rainha da Babilônia que recebia seus pecadores que a procuravam para aliviar suas feridas e chagas desta vida mundana, ou pelo amor ao seu ego podre que precisava de uma justificativa mística e da promessa de uma segunda vida para exercer a bondade. No fim, todos se vendiam mutuamente, era o que pensava.

Terminado o martírio ela estava sentada na cama enquanto sente o cheiro da merda de seu cliente, que tão logo gozou foi direto ao banheiro cagar e vomitar. Não necessariamente nessa ordem. As calças dele estavam no chão do quarto, e no bolso direito continha um maço de Marlboro quase cheio. Madalena não pensou duas vezes antes de afanar os palitos de nicotina.

Na saída do hotel Madalena se depara com Lagarto, que cobrou o soldo da semana que estava atrasado. Se não pagasse ainda hoje ela teria que ir embora da Cordilheira. Ela sabia que a ameaça não se cumpriria, mas o fato dela não ser expulsa do ponto não garantia que sairia incólume, nem a livrava de levar umas porradas. Era preciso pagar. Ela disse que no máximo no turno seguinte já teria dinheiro suficiente. Lagarto era o cafetão da Cordilheira, oferecia segurança para as garotas em troca de um valor que estava ficando difícil de pagar com o movimento tão fraco. Mesmo sendo um valor salgado, Madalena sabia que era importante a proteção de Lagarto. Certa vez um dos bêbados que procuravam os serviços oferecidos na Cordilheira, durante a alta madrugada, enfurecido e com a cara cheia de pó, atacou violentamente a então jovem Madalena. Ele começou com tapas, que foram ficando mais fortes, mas até aí ela estava acostumada, mas dos tapas começaram socos e chutes, até o derradeiro momento em que desferiu contra ela 3 facadas. Uma pegou na virilha, e a deixou manca pelo resto da vida, o que significava uma enorme dificuldade no seu ramo. As outras duas foram no ventre, uma inclusive perfurou o fígado. A fatalidade fez com que ela ficasse internada por 3 meses no Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Desde então ela sempre pagou em dia pela proteção. Por muito pouco ela não morreu nesse episódio, só não conseguia definir se o fato de ter continuado viva tinha sido sorte ou azar.

O incomodo das articulações fez com pensasse em suas dores, e lembrou da frase de sua vizinha crente: “se não vem por amor, vem pela dor”. Raquel dizia isso todas as vezes que convidava Madalena para ir à igreja, ela afirmava que todas as pessoas um dia se renderiam a Deus, fosse pelo amor, ou fosse pela dor.

Voltou para esquina, e se apoiou no mastro que segurava duas placas, uma dizia Rua do Altiplano, e a outra Rua Atacama. Mais a frente ficavam as ruas Chile e Patagônia. Paralelas estavam as ruas Equador e Colômbia. E descendo até a biqueira tinham a Aconcágua e a Santiago. As referências aos países andinos daqueles logradouros concederam a alcunha de Cordilheira à zona de meretrício do baixo centro da cidade. Nessa região estavam todos aqueles marginalizados, sofridos, e escarrados pela sociedade composta de gente de bem. Vagantes que perambulavam no mundo em busca de um pouco mais de vida ou de uma morte prazerosa, tanto fazia o que viesse primeiro.

O dia estava raiando. A solidão da noite dá lugar à angústia da manhã de um novo dia, e o Sol traz a certeza de que aquele fardo irá se repetir novamente, e novamente, e novamente… Madalena acende um cigarro e segue para o ponto de ônibus. Ela se apressa, pois tem que passar na casa de sua comadre buscar a filha de 10 anos, Rafaela. Elvira, a comadre, sai para trabalhar as 7hr, Madalena precisa correr. Depois que desce de ônibus, passa um carro com o som alto e ela ouve um trecho da música que dizia “eu trago comigo os estragos da noite”, ela pensa rapidamente sobre o significado que aquilo tem para ela e repete para si mesma que a vida de sua filha será diferente. Chegando à casa de Elvira, Madalena encontra sua filha em prantos e toda machucada. Rafaela foi estuprada por Sebastião, marido de Elvira, seu padrinho. Madalena ainda sem reação, apenas observa o feixe de luz que entra pela fresta da janela e atravessa a sobra dela e da filha. Ela então percebe que o Sol, inexoravelmente, repete o mesmo percurso todos os dias, de eternidade a eternidade. E repete, também, os destinos.

            Madalena chora.

About Tairon Villi

Historiador, mestrando em história pela UFPR. Organizador do projeto manobra literária. Fez da arte do convencimento alheio seu estilo de vida.