Foto: Moradora da Favela do Parolim caminhando até à favela. Crédito: Raíssa Melo / ANF
Que fosses frio ou quente, mas porque és morno,
Não é frio nem quente, eu te vomitarei da minha boca.
Apocalipse de São João, 3, 15-16
Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia.
As salas de aula estão vazias, tal qual os estômagos dos pobres, ou o sangue dos (anti)corpos que tombam ao chão a cada dia. A economia moderna nos faz desejar morrer de tédio com um pouquinho de alegria, algum prazer imediato e saciado individualmente. Eis os reflexos mais aparentes da economia Liberal em nosso cotidiano. Mas seus estragos foram, e são, historicamente mais profundos. Estamos falando aqui, de um modo de (fazer) pensar e (fazer) agir que privatiza todas as dimensões de nossa existência. Privatiza-nos o direito quando, na reforma trabalhista, o contrato individual passa a ter mais validade que a Lei Trabalhista. Privatiza a violência, entregando a segurança pública nas mãos de empresas de segurança e de milícias armadas. Privatiza a solidariedade através da vulgarização das carteiras de seguros e previdência privada, substituindo a seguridade social. Privatiza a informação, quando intermediada por empresas bilionárias da Califórnia, como Facebook e Google. Privatiza a água, a comida, a moradia, o ar, a vida.
Pensemos a semântica da palavra privatizar. Tornar privado deriva de privar: fazer faltar. Quando um indivíduo ou corporação detém a propriedade privada de um bem que deveria ser público – a água e a educação são ótimos exemplos – isso significa que a sociedade como um todo legitimou que este mesmo indivíduo ou corporação possa privar porções da humanidade do acesso a este bem de acordo com suas vontades e necessidades individuais. Privatizar é sinônimo de privação. Em especial se aquele de quem se priva é pobre.
O mesmo liberalismo, que propõe privatizar, é aquele que caminhou ao lado da escravidão legal, quando seres humanos negros eram privados de seus corpos e de suas obras, já que considerados propriedades de brancos ricos que privaram estes mesmos negros, indígenas e pobres da propriedade privada da terra. O filósofo Silvio de Almeida, argumenta o seguinte:
“A escravidão moderna, de cunho racial e atrelada ao empreendimento colonial é, em grande medida, uma invenção dos liberais. Há uma farta literatura sobre como a base do pensamento liberal permitiu a naturalização da violência colonial, a desumanização de não-europeus e a destruição de formas de vida não compatíveis com a reprodução da sociedades mercantis.”[1]
A consequência é que hoje, segundo a OXFAM os 0,91% dos estabelecimentos rurais do Brasil que possuem mais de mil hectares ocupem 45% de todas as terras agrícolas do país, enquanto estabelecimentos com menos de 10 hectares – 47% do total – ocupem 2,3% destas. Os primeiros, exportam sua produção. Os segundos, produzem 70% dos alimentos que chegam a nossa mesa. O impacto da privatização da terra é privar grande parte do povo pobre de alimentos básicos em períodos de crise. E estes poucos que detém a propriedade da terra, na garantia de seus lucros, podem privar milhões de brasileiros de alimentação básica com sua escolha individual em exportar a um dólar mais alto. E os impactos desse Laissez-Faire (deixar fazer), princípio fundamental para o livre-mercado liberal, gera consequências funestas para o nosso futuro. Vejamos o que diz Josué de Castro, no último capítulo do seu Geopolítica da Fome:
“A verdade é que muitos povos, submetidos à ação dissolvente da fome, se entregaram humildemente ao domínio de forças destrutivas e anti-sociais. Tivemos ocasião de mostrar como o cerco da fome entregou o Japão às garras do fascismo. Também não foi outro o mecanismo que fez triunfar o nazismo da velha Europa durante os chamados anos decisivos de sua História, de 1930 a 1940. Com a fome açoitando os indivíduos, com o seu espectro ameaçador criando o pânico generalizado, foi fácil aos domadores da massa, aos hipnotizadores das multidões (…) transformarem essas massas numa pasta maleável, submissa à sua mão de ferro.”[2]
Neste sentido, as desigualdades sociais ampliadas pela implementação de políticas de livre-mercado de cunho liberal abrem caminhos à líderes populistas que se utilizam das carências várias do povo para implementar seus projetos de repressão estatal. Mas não se trata somente de abrir caminhos ao fascismo. Grandes teóricos e economistas liberais andaram lado a lado de regimes repressores ao longo da História. O austríaco Ludwig Von Mises, uma das principais referências dos liberais contemporâneos e que legitimou o facismo de Engelbert Dollfuss na Áustria, afirma em seu livro Liberalismo Segundo a Tradição Clássica, o seguinte:
“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal.”[3]
Mises, no entanto, não foi o único a considerar o liberalismo um mero expediente para implantação do projeto liberal. O também austríaco Friedrich Hayek apoiou explicitamente o nazismo alemão, como sendo o único capaz de colocar ordem ao que chamou de “decadência moral” em que a Alemanha se encontrava na década de 1930, não restando outro caminho que não “ser governada de forma ditatorial” para evitar a ascenção do comunismo[4]. Lembremos também o papel que Vilfredo Pareto desempenhou como economista no governo de Benito Mussolini na Itália, ou os famosos Chicago Boys, grupo de economistas liberais alunos de Milton Friedman desempenharam na economia chilena durante a ditadura do General Augusto Pinochet.
No Brasil, vimos o quão foi importante o papel de Paulo Guedes e de grupos liberais como o MBL (Movimento Brasil Livre) na ascenção de Bolsonaro ao poder. Portanto, as políticas privatistas de cunho liberal, via de regra, flertam e caminham juntas, às vezes como um só, ao facismo. Em verdade, o facismo nada mais é do que a radicalização da tradição liberal e colonial que faz valer uma liberdade de oprimir e explorar do mercado sobre os trabalhadores via terrorismo de Estado.
O livre-mercado só é realmente livre quando se cala o direito de trabalhadores pobres, etnias minorizadas, mulheres e tantos outros setores sociais de frear os impulsos animalescos por lucro das burguesias. Pense bem, o que está sendo proposto como política para o trabalho dos mais pobres? O trabalho por aplicativo, sem direitos trabalhistas, sem sindicatos organizados, férias, décimo-terceiros, descanso semanal, jornadas ou salário mínimo. Todos estes direitos são um entrave ao livre-mercado. A ideologia do individualismo é exaltada e a solidariedade recriminada, conforme pudemos ver nas recentes declarações sobre a população em situação de rua de Bia Dória (“eles gostam de ficar nas ruas”, “é um atrativo”[5]) e Arthur do Val (“O que o padre Júlio Lancelotti faz é destrutivo para a cidade de São Paulo”)[6]. Precisamos, para fins de melhor combater o facismo, compreender o liberalismo como aquilo que ele de fato é: um instrumento do facismo, que degrada sutil e constantemente nosso tecido social.
[1] https://portaldisparada.com.br/cultura-e-ideologia/escravidao-liberalismo-racismo/
[2] CASTRO, Josué. Geopolítica da Fome. Brasiliense. São Paulo. 1959. p. 506-7.
[3] VON MISES, Ludwig. Liberalismo Segundo a Tradição Clássica. São Paulo. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 75 e 76 disponível em: http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/liberalismo.pdf
[4] Ver: HAYEK, Friedrich. O caminho da servidão. Mises Brasil. 6° edição. São Paulo. 2010. p. 47 Disponível em:http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/caminhodaservidao.pdf
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/03/bia-doria-diz-que-nao-se-deve-doar-marmitas-para-moradores-de-rua-porque-eles-gostam-de-ficar-nas-ruas-e-um-atrativo.ghtml
[6] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-31/arthur-do-val-o-centro-de-sao-paulo-nao-e-lugar-para-dar-comida-ao-morador-de-rua.html