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Kaingangs expulsos em Manoel Ribas não podem comemorar o Dia dos Povos Indígenas

Neste 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, acontece uma grande festa na Terra Indígena Ivaí, no município de Manoel Ribas, a cerca de 370 quilômetros de Curitiba. Churrasco, música e apresentações culturais são atrativos para centenas de famílias kaingangs da Aldeia da região e também para moradores de seu entorno.

Entretanto, nem todos os indígenas da Reserva participam dos festejos. Pouco mais de 100 famílias estão proibidas de comemorar o Dia dos Povos Indígenas na Aldeia Ivaí, onde nasceram e cresceram. Na verdade, elas estão proibidas de pisar na Terra Indígena. Há risco também quando circulam pelas ruas de Manoel Ribas ou de Pitanga, cidade vizinha onde fica um trecho da Reserva.

A proibição não é da justiça, nem de agentes do agronegócio (algozes históricos dos povos indígenas). Quem não permite a presença destas famílias são os próprios Kaingangs que vivem na Aldeia Ivaí. São aqueles que foram seus vizinhos e amigos durante décadas. São seus próprios parentes.

Estas famílias foram expulsas da região, mais especificamente de uma aldeia chamada Serrinha que tinha sido criada por elas em 2024. Hoje vivem hoje sob barracos de lona, sem água ou luz em uma localidade no município de Pitanga. Abandonados dependem da ajuda da prefeitura municipal para sobreviver e sonham como uma ação mais efetiva de órgãos como a FUNAI.

Em março de 2024 elas abandonaram a Aldeia Ivaí e migraram para o Sul da Terra Indígena, em Pitanga, onde criaram uma nova aldeia batizada com o nome de “Serrinha”. Esse movimento migratório teve relação direta com a violência imposta pelas lideranças que comandam o arrendamento das terras indígenas desde 2005.  

Na nova aldeia, liderados pelo Cacique Valmir Olivério, construíram casas, conseguiram apoio da prefeitura da cidade de Pitanga, receberam promessas da FUNAI e do Ministério Público Federal sobre dias melhores.

Porém, no dia 04 de janeiro de 2025 aconteceu o episódio mais violento dessa história. Um ataque que marcou o ápice de um conflito que se estende por 20 anos. Centenas de Kaingangs da Aldeia Ivaí invadiram a Serrinha e queimaram casas, carros, feriram sete indígenas e enterraram definitivamente a possibilidade de uma convivência pacífica entre as duas aldeias.

No centro de toda essa violência está a disputa por terras para o arrendamento. A influência de não indígenas ligados ao agronegócio e também de políticos da região tem papel decisivo nesta guerra. Há mais de um ano o Parágrafo 2 acompanha e produz reportagens sobre a situação da Terra Indígena Ivaí. Alertamos, inclusive, por diversas vezes que um conflito armado poderia acontecer. E, infelizmente, estávamos certos. No final deste texto você pode conferir todas as reportagens que publicamos sobre esse conflito.

O arrendamento

A Terra Indígena Ivaí é a segunda maior reserva do Paraná e tem 7.306,35 hectares. Destes, mais de 900 alqueires são arrendados todo ano para que não indígenas plantem soja, trigo, milho, entre outras monoculturas. Uma prática que rende milhões para a Associação Comunitária Indígena Ivaí (Aciva), entidade criada em 2005 e que é a responsável por administrar o dinheiro de parte do arrendamento. A Aciva surgiu por meio de um grupo de lideranças e é ela que administra boa parte das terras que são arrendadas.

Hoje, o cacique da Aldeia Ivaí é Domingos Zacarias. Seu vice se chama Reinaldo Ninvaia. Os dois, porém, conforme as denúncias encaminhadas ao Parágrafo 2, pouco mandam. Quem dita as regras desde 2005, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, é Dirceu Retanh Pereira Santiago. Ele é indígena, funcionário da prefeitura de Manoel Ribas, um dos fundadores da Aciva e já foi cacique e vereador no município.

Sobre ele pesam diversas acusações. O uso da violência, por exemplo, é uma delas. Essa acusação, no entanto, não é nova. Ele foi preso em 13 de dezembro de 2012 na Operação Forte Apache, deflagrada pela Polícia Federal (PF) para o cumprimento de nove mandados de busca e apreensão e um mandado de prisão preventiva, expedidos pela Justiça Federal em Guarapuava e pela Justiça Estadual em Manoel Ribas.

Na época, Dirceu foi acusado de arrendar terras indígenas ilegalmente e enriquecer com isso. A denúncia do Ministério Público Federal o acusava de, em conluio com dois agricultores da região, arrendar 240 alqueires da Reserva.

Dirceu seria também, segundo fontes, o mentor do ataque à aldeia Serrinha em janeiro deste ano.

Valmir Olivério, cacique da Serrinha, lidera hoje a maior oposição ao grupo de lideranças que comanda os arrendamentos na Terra Indígena Ivaí. Ele foi ferido com um tiro na boca durante o ataque de janeiro. Depois da expulsão das famílias da Serrinha, ele tenta viabilizar a volta dos Kaingangs para a aldeia. Valmir esteve em Brasília no mês de fevereiro falando com a presidente da FUNAI Joênia Wapichana.

Também esteve no Ministério Público Federal em Guarapuava, cidade próxima à Terra Indígena e fez reiterados apelos a deputados paranaenses e à Polícia Federal. Mas ouviu apenas promessas vagas. “Não parece que vão nos ajudar. Fomos para Brasília, lá na Funai e no Ministério dos Povos Indígenas, mas até agora as coisas estão na mesma”, conta o cacique.

Valmir e as famílias são vítimas de uma violência imposta por milícias indígenas que se apoderam de terras demarcadas e as alugam para o plantio de monoculturas como a soja. Essa prática, que é ilegal, acontece em outros lugares do Paraná e principalmente no estado do Rio Grande do Sul em terras indígenas como Nonoai e a terra indígena Serrinha, que leva o mesmo emblemático nome da Aldeia destruída em Manoel Ribas.

No estado gaúcho, muitas famílias também foram expulsas de suas terras por se oporem ou discordarem de práticas relacionadas ao arrendamento de terras indígenas para os brancos.

Em Manoel Ribas, a expulsão de uma centena de famílias foi consequência de questionamentos contra as práticas da Associação Comunitária Indígena Ivaí. A Aciva seria responsável pelo lucro que vem de centenas de alqueires por ela arrendados para agricultores da região.

Segundo os indígenas ouvidos pela pelo Parágrafo 2, os lucros da associação não são revertidos em favor da comunidade, mas usados para enriquecer as lideranças do lugar e políticos municipais.

Para as famílias da aldeia a associação oferece alguns serviços, como um ônibus para transportar indígenas que vendem artesanato em outras cidades e o empréstimo de tratores para o cultivo da terra. Mas o lucro, que chegaria à casa de milhões depois de uma boa colheita, seria divido entre a diretoria da Aciva.

O arrendamento de terras indígenas em Manoel Ribas teria, segundo as denúncias encaminhadas ao Parágrafo 2, participação de um servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Alvacir Jesus Sales Ribeiro era chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenação Regional da Funai na cidade de Guarapuava, no interior do Paraná. Ele teria, conforme as denúncias, relação com as lideranças da Aldeia Ivaí e lucrava com o arredamento das terras.

Não é a primeira vez que a Funai é acusada de facilitar o arrendamento de terras na Reserva Ivaí. E não são apenas os indígenas que a acusaram. Nas alegações finais do processo que envolvia arrendamentos de terra na Aldeia, quando Dirceu foi preso ao lado de três agricultores, esses arrendatários confessaram a prática e, segundo eles, apenas a fizeram porque “foram induzidos a erro por funcionário da Funai”. Naquele processo, a Fundação foi intimada a se manifestar, mas se manteve “inerte”.

Na época, o servidor da Funai era Maycon Dione Moura. Ele era coordenador técnico da Fundação em Guarapuava, onde fica a unidade responsável pelas ações na Terra Indígena Ivaí. Moura foi condenado pela justiça com base no Artigo 317 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940 por receber, por conta de sua função, vantagem indevida. Ele teria recebido, entre 2012 e 2013, R$ 9.500 para facilitar o arrendamento das terras indígenas, cometendo o crime de corrupção passiva.

Até 1988 não havia uma previsão constitucional que vetasse o arrendamento de terras indígenas. Essa prática foi sendo disseminada em várias regiões do país, porque quem fazia a negociação, o agenciamento e geria as relações com os arrendatários eram os próprios órgãos indigenistas. Primeiro o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois a Funai. Portanto, essa prática foi se consolidando dentro das políticas indigenistas da época.

A Constituição Federal de 1988 rompeu com a prática do arrendamento ao dizer que as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos povos originários. No entanto, apesar da Constituição, o arrendamento continua. O poder público não encontrou mecanismos para vedar essa prática. Embora o Ministério Público Federal em várias regiões atue no sentido de tentar coibir – existem diversas ações na justiça sobre o tema – e os juízes estabelecem até prazos para que o arrendamento seja extirpado, na prática, porém, ela continua acontecendo.

Nos últimos anos, alguns caciques e lideranças passaram a negociar internamente a terra e se apoderar de todas as áreas produtivas, especialmente nas reservas indígenas. E essas pessoas, ligadas ao cacicado, é que fazem as intermediações do arrendamento com os produtores.

Os arrendamentos compõem um ambiente extremamente conflituoso. Primeiro por razões econômicas, os grupos de poder interno querem se consolidar no domínio da terra, e para isso excluem os demais e não permitem que tenham acesso às lavouras. Isso gera uma série de contestações e revoltas, se refletindo em violência. Aqueles que se rebelam contra o arrendamento costumam ser perseguidos, há muitos registros de espancamento, tortura, encarceramento e assassinatos. Muitas famílias são expulsas das reservas como aconteceu em Manoel Ribas.

Mesmo diante da visível inoperância da FUNAI, do Ministério Público Federal, do Ministério dos Povos Indígenas e da Polícia Federal, o cacique Valmir Olivério acredita que vai voltar para a Serrinha. “Nossos advogados estão trabalhando nisso e estamos confiantes que vamos conseguir voltar. Vai ser difícil, muito triste retornar e lembrar que perdemos tudo, nossas casas, nossos carros, nossas roupas, nossos móveis… Mas vamos recomeçar”, diz ele.

Leia as reportagens que o Parágrafo 2 tem publicado sobre os conflitos gerados pelo arrendamento das terras indígenas em Manoel Ribas:

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About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.

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