Coluna Autofagia
Antes de reivindicar o neologismo ignorocracia, fiz, como linguísta, uma pesquisa minuciosa pelos bons dicionários de língua portuguesa brasileira, quanto nos de português europeu, mas nada encontrei sobre o vocábulo que acabara de me assomar. Não satisfeito, busquei em dicionários de línguas neolatinas como o espanhol, francês e italiano. Encontrei. Sim, depois de estar a ponto de desistir e já aceitar os louros da nova palavra, eis que surge em um dicionário de língua espanhola venezuelana o seguinte verbete: ignorocracia – Cualquier forma de gobierno por y para el ignorante.
Após a constatação do verbete, tal como suponha no meu imaginário, a ignorocracia é o governo voltado à ignorância, ao desprezo pelo conhecimento crítico-científico, é o desprezo absoluto pela leitura, pela problematização dos mais variados temas que cercam uma sociedade plural, miscigenada e complexa. A partir desta definição, torna-se impossível não associá-lo ao governo brasileiro, cujo presidente reúne todos os adjetivos explicitados no verbete espanhol. Sejamos justos, um ignorante não se elegeria de outro modo, caso não existisse uma legião de outros ignorantes.
Um governo ignorocrata busca, a todo modo, achar soluções simplistas, fáceis, artificiais. Assim deleita-se nos braços daqueles, assim como ele, que não têm repertório crítico para contestá-lo. Parindo deste pressuposto, este governo tenta cercear de todas as formas as vozes dissidentes de suas práticas famigeradas. Para impedir as críticas pautadas em estudos, cortam-se investimentos em pesquisas, cortam-se verbas para universidades, critica-se e desdenha-se dos cursos voltados as ciências humanas. Seus pares, os ministros, tal como seu líder cego e desprovido de conhecimento, ajudam a disseminar mentiras, investem no criacionismo para manter a população em suas rédeas.
Mesmo com todo seu arsenal de maldades voltados àqueles que pensam fora da caixa, o regime ignorocrata não se sustenta, é efêmero. Em período de crise global, o discurso simplista não mais é suficiente, as pessoas se sentem vulneráveis, têm medo. Neste momento, as críticas, outrora vindas de um grupo específico, vêm de seus pares, seus aliados. É aqui que o castelo começa a ruir. A mídia sobe o tom nas criticas, a repercussão internacional é péssima e começa a questionar como um país que, em um passado recente, ascendia social e economicamente agora toma um caminho perigoso, desviando-se do seu norte promissor.
A ideia de um governo pautado na ignorocracia é, portanto, um atraso irrecuperável à democracia. Governos ignorocratas são, em sua essência, governos autoritários, excludentes, visam a manutenção dos status quo. Neste contexto, mesmo a palavra ignorocracia não constando nos dicionários de língua portuguesa, a pratica deste regime está em evidência em terras tupiniquins. Bolsonaro e seu clã têm fomentado a ignorância, o ódio e a imbecilidade como jamais visto em nossa história. Faz-se necessário combatê-lo, desidratar seu discurso simplista e preconceituoso. Só assim evitaremos a incorporação do vocábulo venezuelano em a nossa língua.
A crise proporcionada pelo Coronavírus trouxe à tona uma discussão que não deveria estar em pauta: a eficiência da ciência. O governo ignorante insiste em uma narrativa pobre de argumentos sobre a utilidade da cientificidade, buscando desconstruir seus métodos e seus resultados. Não surpreende, convenhamos, o único chefe de estado a ir à contramão das recomendações da OMS e seu próprio ministério da saúde, ser ignorocrata assumido, sem modos, sem leitura, vazio. Não obstante, o ignorocrata se deleita em sua ignorância, sente-se bem em sua arrogância. Afinal, o ignorante nunca assumirá sua incapacidade intelectual, sempre atribuirá à incompreensão daqueles que o questionam.