Foto: Didier Lavialle
Kretã Kaingang é uma das maiores lideranças indígenas do Brasil. Filho do lendário Cacique Kaingang Angelo Kretã, há muitos anos ele continua o legado de lutas do pai. É um dos fundadores da Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do Acampamento Terra Livre.
No final de abril, o Acampamento Terra Livre realizou sua 15° edição e levou à Brasília cerca de 3 mil indígenas. Em entrevista ao Parágrafo 2 Kretã fala sobre o Acampamento deste ano e a realidade das políticas indígenas no Brasil hoje. Destaca a paralisação na demarcação de terras, os conflitos gerados pelo “Parecer do Genocídio”, a influência da Bancada Ruralista na Funai e a pré-candidatura de Sônia Guajajara. Confira.
Parágrafo 2: No final de abril, o 15° Acampamento Terra Livre levou cerca de 3 mil indígenas à capital federal. Quais foram as principais reinvindicações levadas à Brasília na edição deste ano?
Kretã: Esse ano houveram dois temas principais. Um foi a questão de termos uma pré- candidata em uma chapa para a presidência da república, que é a Sônia Guajajara. Destacar esse fato no Acampamento foi uma maneira de darmos mais visibilidade a ela. Além disso, também participaram do evento pré-candidatos indígenas aos cargos de deputado e senador. Eles tiveram um momento só pra eles, pra fazer sua apresentação, falar sobre seu trabalho e projetos. O outro tema da edição 2018 foi a questão do parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União. É o que chamamos de “Parecer do genocídio”. Ele paralisou todas as demarcações de terra no Brasil. Além disso, a justiça entrou com pedidos de parecer sobre demarcações em vários estados, houve reintegrações de posse depois que o Parecer 001 começou a vigorar e também a paralisação da Funai, porque agora não se criam mais os Grupos Técnicos Multidisciplinares para delimitação de terras indígenas.
Parágrafo 2: Há quanto tempo estes grupos não são mais criados?
Kretã: Há seis meses, desde que esse Parecer começou a vigorar. E, durante este período, acontecerem muitos ataques em acampamentos, inclusive com morte de indígenas. Portanto, tivemos no Acampamento Terra Livre de 2018 uma mobilização especial voltada a esse Parecer. Conseguimos, inclusive, ter uma reunião com a Ministra Grace Mendonça da Advocacia Geral da União. Foi uma reunião longa, de cerca de seis horas, algo muito estressante. A todo instante, durante esse encontro, as lideranças pediam a revogação do Parecer 001, ou que ao menos a portaria fosse suspensa porque ela não foi discutida com os indígenas. Depois de todas as horas de reunião, depois de todas as discussões e desgastes, ficamos sabendo que o Parecer não foi produzido apenas pela AGU, mas também pela Funai, o Ministério da Justiça e a Casa Civil. E, apenas no final da reunião, depois que pressionamos a Ministra, ela nos disse que não tinha poder para revogar ou suspender porque o Temer já tinha sancionado. Agora só ele pode voltar atrás. Foi uma falta de respeito com as lideranças, ela devia ter dado essa informação no começo da reunião e a gente ia tratar de outros temas. Tomou o tempo das lideranças, dos advogados, do Ministério Público que também estava presente e deu essa informação apenas seis horas depois do início da reunião.
Parágrafo 2: Você acredita que o presidente Michel Temer pode voltar atrás com relação a esse Parecer?
Kretã: Acredito que não. Mas, será criado um grupo formado pelo Ministério Público Federal e quatro advogados, dois indígenas e dois indigenistas, entre eles a Dra. Joênia Wapixana. Esse grupo vai fazer uma revisão nesse Parecer e colocar todos os pontos que ficaram abertos para que haja a possibilidade de um pedido de revisão sobre ele. Depois esse pedido vai para o presidente da república.
Cabe destacar que outra ação importante nessa edição do Acampamento foi a entrega do “Documento do Acampamento Terra Livre” ao Ministério da Justiça. Fizemos um ato simbólico com derramamento de tinta que é alusivo ao sangue dos indígenas derramado por causa da paralisação das demarcações.
Parágrafo 2: A seu ver, quais foram os maiores retrocessos com relação às políticas indígenas desde que Michel Temer assumiu o posto de presidente da república?
Kretã: Foram muitos. Não houveram mais demarcações de terra. Todas as políticas voltadas aos indígenas sofreram. A educação, por exemplo, foi sucateada por meio do desmonte da Coordenação Escolar Indígena que existia no Ministério da Educação. A Secretaria Especial de Saúde Indígena ainda está sobrevivendo porque ela envolve muito dinheiro, assim, é de interesse do governo que continue funcionando. Tivemos muitos avanços no tocante a políticas indígenas nos governos Lula e Dilma. No entanto, é importante destacar que eles não vieram de graça, tivemos que lutar muito pra conseguir. Lutamos por cada uma delas, tudo foi uma conquista. A Secretaria Especial de Saúde Indígena, por exemplo, foi criada no governo passado. Mas, para conseguir, tivemos que acampar em Brasília, levar cruzes que representaram 900 crianças que morriam todo ano por falta de atendimento em saúde, tivemos que fazer dois anos de Acampamento Terra Livre com foco na Secretaria Especial de Saúde Indígena. Tínhamos um grupo indígena de trabalho no Ministério da Saúde, por exemplo, conseguimos ele por meio de muita luta, muita mobilização e, infelizmente, ele foi extinto também. O Conselho Nacional de Política Indigenista, que conta com indígenas de várias regiões do Brasil e discutia políticas públicas voltadas a povos indígenas, desde que o Temer assumiu não realiza mais reuniões. Fizemos, inclusive, um pedido para a AGU para que o governo faça uma reunião urgente com o CNPI para que os trabalhos sejam retomados.
Parágrafo 2: O Acampamento Terra Livre desse ano conseguiu mandar seu recado?
Kretã: Acredito que sim, principalmente porque estamos em ano eleitoral, todos estão vendo. Esse acampamento teve uma visibilidade muito grande, a mídia estava mais presente, foi um acampamento diferente, no qual não tivemos nenhum conflito. Caminhos lado a lado com a Polícia, eles não nos provocaram e não provocamos eles. Assim, a visibilidade que foi dada ao Acampamento foi boa, positiva. Ficou bem claro que não somos contra o crescimento do país, mas enfatizamos que ele não pode crescer de qualquer maneira, precisamos participar, ser ouvidos com relação a qualquer ação que envolva terras indígenas. Na construção de políticas indígenas nós precisamos participar, porque somos nós que sabemos o que é bom e o que não é para o nosso povo.
O acampamento desse ano foi muito importante. Contou com lideranças de todo o país. As lideranças aqui do Sul, do Nordeste e de outras regiões. Eu estava no grupo de liderança que foi à AGU. Eu e o Cacique Marquinhos, que é uma jovem liderança do Nordeste, encabeçamos a visita.
é importante destacar que eles não vieram de graça, tivemos que lutar muito pra conseguir. Lutamos por cada uma delas, tudo foi uma conquista
Parágrafo 2: Sabemos que as decisões do Governo Temer tem sofrido influência da Bancada Ruralista em questões ligadas ao meio ambiente, ao uso de agrotóxicos, aos investimentos em agricultura familiar. Na questão indígena não é diferente.
Kretã: Não é diferente. Hoje o maior inimigo dos indígenas são os ruralistas. Muitos projetos que prejudicam nossa realidade como a PEC 215 (que retira do Executivo a exclusividade de demarcar Terras Indígenas), o Marco Temporal que mudou o entendimento da Constituição Federal, apontando que as terras indígenas seriam direito destes povos apenas se eles já as ocupassem em 1988 e, agora o Parecer 001. Então, eles são nossos inimigos. O que eles produzem? Soja. Quem come soja? A produção vai para outros países, vai pra Holanda pra alimentar o gado, vai pra Alemanha pra alimentar os porcos, eles produzem a soja transgênica, com vários tipos de veneno, causam grandes prejuízos ambientais, derrubam florestas, contaminam os rios. A atuação deles no Congresso é contra nós, contra tudo o que lutamos.
Parágrafo 2: A saída dos dois últimos presidentes da Funai também teve influência direta da Bancada Ruralista.
Kretã: Sim, os dois foram colocados por eles e retirados também por eles. Quem lidera essa bancada é o deputado Valdir Colatto e o deputado Nilson Leitão, que é o redator da PEC 215. Então, são os inimigos colocando seus representantes para trabalhar em prol das políticas indígenas. Ou seja, nossos inimigos hoje mandam na Funai.
Parágrafo 2: A população indígena vive hoje um dos seus piores momentos em termos de políticas públicas?
Kretã: Sempre foi assim. Nossa luta é constante, nunca paramos, nada vem de graça pra nós.
Parágrafo 2: As demandas da população indígena do Sul são as mesma dos indígenas do restante do país?
Kretã: Não são. Hoje 90 % das terras demarcadas estão dentro da Amazônia, apenas 10 % está entre sudeste, nordeste e sul. A realidade dos indígenas que vivem fora da Amazônia é outra. Nossa principal demanda ainda é a luta pela demarcação de terras. Por mais que a gente discuta outras políticas, a questão da terra ainda é o principal. O próprio Acampamento Terra Livre foi criado em 2003 pelos Kaigangs, os Guaranis e os Xoklêngs. Acampamos em Brasília em 2003 e em 2004 já chamavam o movimento de Abril Indígena. Na época, o Acampamento Terra Livre foi criado porque as demarcações de terra também estavam paralisadas. O Lula tinha entrado na presidência e não se demarcavam mais terras. Hoje, o Acampamento discute vários assuntos e a demarcação de terra não é um dos principais. Portanto, ele representa várias bandeiras da população indígena, infelizmente, não a luta por terras.
Parágrafo 2: O Sul do Brasil, apesar de receber menor atenção midiática, também é uma região de conflitos que envolvem indígenas, com casos de violência e homicídios, inclusive. Como é ser indígena nos três estados do Sul?
Kretã: Sempre digo que no Brasil a única região que se considera europeia é o Sul. Vivemos em uma espécie de “Europa” e dentro dela ainda há muito preconceito, muita discriminação. Nossa realidade, no tocante à negação de nossa terra, é uma espécie de racismo institucional. Os deputados que mais lutam contra os indígenas são do Sul. O deputado Luiz Carlos Heinze, que fez um discurso extremamente racista no qual afirmou que indígenas, quilombolas e homossexuais representam tudo que não presta, é daqui, ele foi o deputado mais votado no Rio Grande do Sul. Isso demonstra que nossa luta não é só pelo território, mas também pelo respeito e contra o racismo.
Parágrafo 2: Ainda sobre política e preconceito, como você vê a figura de Jair Bolsonaro, deputado federal e pré-candidato à presidência da república?
Kretã: A vida pública dele tem mais de 30 anos e nada de efetivo realizado. O seu estado, o Rio de Janeiro, vive um caos na segurança pública e ele não fez nada de concreto pra mudar essa realidade. Ele tem uma vida pública na qual não conseguiu realizar absolutamente nada. Para a população indígena, o Bolsonaro significaria nosso fim.
Porém, te digo que nenhum governo vai olhar pra nós. Sempre foi assim e sempre será. Só vamos conquistar melhorias por meio de muitas lutas.
Parágrafo 2: E quanto à figura na Sônia Guajajara se colocando como pré-candidata em uma chapa que concorrerá à presidência. Representa um grande passo?
Kretã: Com certeza. A figura dela pode dar muita visibilidade às causas indígenas durante a campanha eleitoral. Pode mostrar uma realidade que a maioria das pessoas não conhece. Ainda hoje as pessoas veem os indígenas pela parte exótica da coisa, veem como aquele ser selvagem. Muita gente, por meio da Sonia Guajajara, pode começar a perceber que não somos índios, mas povos. Somos os Kaigangs, os Guaranís, os Xoklengs.