É sábado à tarde. O barulho das crianças brincando na rua, na frente de casa, anuncia que estamos no lugar certo. “Numa casa sem portão. Vai ter umas crianças brincando, é ali”, a orientação não parecia tão clara ao telefone. Foi inevitável imaginar Guilherme ordenando aos filhos: “brinquem ali na frente de casa das 10h ao meio dia, o papai tá esperando uns amigos”. Especulações a parte, era fato que a algazarra na frente da casa sem portão foi uma orientação precisa. Se bem que ter dez filhos em casa ajuda um pouco na tarefa. Isso mesmo, o arquiteto Guilherme Meireles tem dez filhos… e nenhum portão.
Um arquiteto que não tem portão em casa? Numa primeira impressão é estranho, o aspecto da casa, que parece estar sempre em reforma, também parece não condizer com a atividade do arquiteto. No entanto, muito mais do que reforçar a máxima que diz que em casa de ferreiro espeto é de pau, a ausência de portões não representa desleixo e sim uma característica, um símbolo do patrono daquela família.
Com as portas sempre abertas, assim como o seu coração, Guilherme recebe todos em sua casa. Certo dia, um vendedor de panelas bateu palmas para oferecer os utensílios justamente no dia de um churrasco – arte que por sinal o arquiteto gaúcho domina muito bem – o pobre ambulante saiu da casa trançando as pernas, com um ar ébrio, e prometeu para si mesmo que naquela casa não voltaria a tentar vender panelas. A receptividade da família contagia. Coisa rara de ser vista hoje em dia.
O cardápio deste sábado era feijoada, preparada por Vera, a bela negra, musa inspiradora e esposa de Guilherme. Vera afirmava a todos que entravam na casa que seria uma “feijoada ligth”, sem gordura. O prato especial destinava-se a amigos especiais. Donos de sebos no centro de Curitiba, um dos melhores restauradores de livros da cidade e outros seres que, de uma forma ou de outra, estavam ligados à sua vida através da palavra escrita.
Guilherme tem um hábito peculiar, compra cerca de 5 livros por dia. Sempre que anda pelas ruas da capital paranaense ou de Almirante Tamandaré, onde mora, carrega consigo uma sacola cheia de livros e gibis. Pedras raras que foram garimpadas com um olhar atento pelos diversos sebos da cidade. Debaixo do braço costuma repousar seu canudo de PVC que abriga plantas e desenhos de seus trabalhos como arquiteto.
Os livros vão para prateleiras, caixas ou pilhas que se espalham pelos três pavimentos de sua casa. Segundo Guilherme, seu acervo pessoal passa dos 10 mil títulos (mil por filho?) que versam pelas mais diversas áreas do conhecimento e do entretenimento os móveis e os moradores da casa.
Este final de semana o arquiteto tinha um propósito muito bem definido e, pode-se dizer, um tanto quanto capcioso ao chamar os donos de sebos à sua casa. Pela primeira vez ia trocar os papeis e fazê-los vasculhar as pilhas de livros e gibis em busca das suas muitas raridades. A felicidade de Guilherme estava estampada em seu sorriso, divertia-se ao ver o espanto de seus amigos debruçados sobre suas pérolas. “Nossa! A Nº1. Isso é raríssimo, vale uma fortuna!”, diziam os mercadores de livros com os olhos arregalados.
Enquanto isso uma pequena Philips 14 polegadas repousa desligada em cima de uma velha máquina de costura, praticamente esquecida, parecendo ouvir os convidados discutirem o mundo sentados no sofá da sala. Nem mesmo a brincadeira das crianças atrapalha o papo. A conversa só é interrompida pelo próprio Guilherme, que sempre recorre aos livros para ilustrar o assunto que está sendo debatido. Em menos de um minuto o anfitrião sai do seu lugar, vasculha alguma prateleira e volta com uns volumes na mão entregando aos convidados, que obviamente traz algo relevante para a discussão. A conversa só foi interrompida novamente por um estrondo, barulho de metal batendo no chão. Era um dos filhos do arquiteto que soltara uma chave de rodas do 3ª pavimento. “Filho, cuidado! Isso pode machucar alguém”, disse Guilherme, com a tranquilidade de um monge budista.
Guilherme olha para seus livros como um banqueiro olha para sua fortuna, para ele é a melhor forma de investimento para seu dinheiro e seu tempo. Ele ainda sonha em montar sua própria biblioteca, especula parceria com a prefeitura. Já escolheu até o lugar: o Parque Tanguá, mas tudo ainda está em tom de negociação. Enquanto isso, faz de sua própria casa uma biblioteca.
As visitas na casa do arquiteto sempre terminam com um presente para os convidados. Depois de algumas horas de conversa Guilherme consegue traçar um pequeno perfil de quem o visita e lhe presenteia com um livro. Sempre com a data e dedicatória, sempre com o convite para uma nova visita.
Ah e a feijoada? Só chegar lá em Almirante Tamandaré e entrar numa casa sem portão com umas crianças brincando na frente para experimentar.
Perfil publicada originalmente em Jornal do Sebo, ed. março/2010