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Falso profetismo e os EUA

Coluna: Evangélico à esquerda

Um fenômeno tem se repetido nestes tempos em nossa nação, que talvez seja complexo de se compreender, mas que tem uma razão de ser bastante clara para quem for versado nas tradições religiosas pentecostais: grupos de pessoas orando de joelhos, em frente a quartéis, nas ruas, e em todo tipo de manifestação bolsonarista. Cenas como essa se repetem, ad infinitum, nestas manifestações. Fácil de fazermos chacota, risível pelo absurdo que nos parece. Mas vou defender aqui uma tese de que esse fenômeno precisa ser compreendido, porque é mais perigoso do que possa parecer.

A tradição pentecostal começou na Rua Azuza, nos estados unidos, na virada do século 19 para o 20. Sua principal doutrina é a do batismo no Espírito Santo, um revestimento de poder que capacita o cristão para cumprir a grande comissão de Cristo. Sua principal manifestação é a glossolalia, o falar em línguas. Há disputa sobre o que isso significa, teologicamente, entre os diversos segmentos do cristianismo. Mas na visão pentecostal, esse é o dom mais essencial que manifesta o batismo no Espírito Santo, e olhando para Azuza podemos ter uma compreensão interessante do que isso significou: Charles Parham, um membro da Klu Klux Klan, e Willian Seymour, um homem negro em pleno período de segregação racial, foram unidos por Deus para uma grande obra de união racial dentro da igreja, e de um renovado derramar do Espírito para capacitar a igreja para um novo horizonte. Pessoas do mundo todo vão para a rua Azuza em busca desse novo batismo, voltam pra sua terra ou vão para outros lugares (como o caso de Daniel Berg e Gunnar Vingren, que vieram fundar as Assembleias de Deus no Brasil), mas depois de alguns anos o projeto inicial de Deus já se vê corrompido: o que era para unir brancos e negros volta a ser segregado em pouco tempo. Essa é uma longa história, cheia de detalhes. Mas o que me concerne aqui no momento é a questão da profecia.

O profetismo pentecostal é um dos sinais que acompanha esse revestimento do Espírito, é um dos dons. Nas igrejas, nós convivemos e vemos profecias sendo entregues, e se cumprindo. Pessoas dando testemunho do cumprimento de profecias que vimos sendo entregues. É algo muito presente em nossas igrejas, fenômeno da fé que pode ser de difícil compreensão, mas muito presente nas comunidades. Independente aqui da visão do leitor sobre o tema, vou assumir no meu argumento que é um fenômeno genuíno, que nós experimentamos no exercício da nossa fé nas comunidades. Agora vamos a parte problemática disso, a saber, o falso profetismo.

Nos Estados Unidos, Donald Trump foi o candidato abraçado pelas altas hierarquias cristãs nas últimas eleições. O mesmo fenômeno que se repete aqui com Bolsonaro. Os mesmos absurdos cometidos pela igreja lá se repetem aqui. E a culminância disso foram as falsas profecias proferidas sobre a eleição de lá. Sabemos que Trump não ganhou as eleições, Biden assumiu o governo, mas poucos dos falsos profetas de lá se retrataram sobre o que disseram. E há esse movimento por lá, de um dia X. O dia X é o dia e a circunstância que vai trazer à tona o cumprimento da falsa profecia. Se o dia X chega e nada acontece, simplesmente mudam qual vai ser o dia X e quais vão ser as novas circunstâncias. Isso segue, nos Estados Unidos, até o presente. Ainda há pessoas acreditando, e profetizando em cima disso. Não há nada de Deus nisso: a bíblia fala que se um profeta disser algo que não se cumpra, que não seja mais temido ou tido como profeta. Mas estes homens gananciosos, e detentores hegemônicos da interpretação da palavra por lá, insistem e convencem. Hoje, temos cada dia mais pessoas nos EUA afirmando ser inescapável uma nova guerra civil (e isso é sério, há matérias em grandes jornais tratando disso. A última que li foi no The Guardian, da Inglaterra, tratando do assunto). O movimento que começou para unir negros e brancos, para empoderar as mulheres no cristianismo (a Quadrangular é uma denominação pentecostal surgida no período, fundada por uma mulher), hoje segrega os EUA em duas frentes dispostas a uma guerra civil em nome de falsos profetas, aliados a um político dos mais torpes. Isso está se repetindo aqui no Brasil. O mesmo teor profético foi emitido aqui, o mesmo padrão do dia X está sendo usado aqui, e esse falso profetismo não é enfrentado. Esses pobres tolos, de joelhos nos quartéis, enfrentando chuva, polícia, e passando todo o ridículo risível que temos visto, não passa de massa de manobra para interesses superiores, de líderes mentirosos e inescrupulosos. A essa altura, não adianta Silas Malafaia orar por Lula, ou Edir Macedo na sua sanha por poder, dizer que “perdoa a esquerda”. Eles já criaram um monstro, junto de centenas de falsos profetas de ocasião que, ao invés de vir a público dizer que mentiram ou se equivocaram, sustentam a teoria do dia X. Por isso há tantas fake News sobre intervenção militar, sobre a morte de Lula. Isso é importante para eles para manter a expectativa sobre um dia X onde “a vontade de Deus vai se cumprir”, porque eles não querem dar o braço a torcer e admitir que a vontade de Deus se cumpriu. É a história de Saul e Davi se repetindo. Para quem quiser entender mais isso, até para poder conversar com o proletariado evangélico fanatizado, sugiro a leitura de Samuel e Reis, que tratam da história de Saul e Davi. Os paralelos são gritantes.

Não preciso usar o dom de profecia para dizer que o que acontece nos EUA pode se repetir por aqui. Está claro como o dia. O fenômeno profético nas igrejas é genuíno no que tange a fé, mas esse falso profetismo usado agora é uma realidade que teremos de enfrentar. Há um esforço, desde já no governo Lula, de retomar diálogo com os evangélicos, em figuras como Marina Silva, Benedita, Henrique Vieira, entre outros. Vai ser longa e árdua a tarefa, porque a forma como projetaram o uso político radicalizado dos evangélicos foi eficaz e fez uso de todo um aparato de “evangeliquês” bastante sofisticado, e já testado antes nos EUA. Precisamos saber combater isso com diálogo e paciência, pois especialmente o proletariado evangélico da periferia deveria estar conosco, pela lógica, e não está por conta dessa lavagem cerebral. A fé é a esperança naquilo que não se pode ver e eu tenho muita fé ainda no povo brasileiro.

Rafael Bührer é estudante de Teologia na Faculdade Unida de Vitória/ES, EAD, Marxista-leninista, Cristão, ex-músico independente, recepcionista bilíngue, marido, torcedor do Coritiba e cearense naturalizado.

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