Foto principal: Nando Neves
A chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República afetou significativamente a relação do governo federal com a imprensa. Em 2019, o número de casos de ataques a jornalistas chegou a 208, um aumento de 54,07% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 135 ocorrências. A hostilidade ao trabalho da imprensa, no entanto, não se resume apenas à figura do presidente da república. Seus filhos, agentes ativos no atual governo, os ministros de Bolsonaro e também parte dos deputados e senadores da base do atual governo realizam constantes e sistemáticos ataques ao exercício da profissão de jornalista no Brasil.
O caso mais recente aconteceu nesta terça feira (11), e os ataques foram desferidos contra a jornalista da Folha de S. Paulo Patrícia Campos Mello durante CPMI das Fake News. Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário da Yacows, disse que a profissional teria feito insinuações sexuais para conseguir informações para uma reportagem. O caso gerou grande repercussão e profissionais de imprensa, além de entidades de defesa dos trabalhadores de jornalismo, se manifestaram em apoio a Patrícia.
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) divulgou, no dia 16 de janeiro, o Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2019. O levantamento, que é anual e foi divulgado no Sindicato dos Jornalistas no Rio de Janeiro, revela que o presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) foi responsável – sozinho – por 121 ataques (58,17%).
O monitoramento relacionado aos ataques desferidos por Jair Bolsonaro contra os profissionais de imprensa, e que compôs o relatório anual da Fenaj, foi pensado, teve a participação da jornalista paranaense Paula Zarth Padilha. Paula faz parte da Diretoria Executiva da Fenaj e também é da Diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná (SindJor). Ao Parágrafo 2, ela fala sobre como surgiu a ideia de monitorar os ataques realizados pelo presidente; destaca também os prejuízos dessas agressões para o jornalismo e para a produção de informação de qualidade no país, além de abordar outros temas como a Medida Provisória 905 que acaba com a necessidade de registro para se exercer a profissões de jornalista.
Confira a entrevista.
Parágrafo 2: Como surgiu a ideia de criar um monitoramento dos ataques que o Presidente Jair Bolsonaro realiza contra a imprensa?
Paula Zarth Padilha: Fui empossada na Fenaj no mês de agosto de 2019. Já atuava na diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná com questões envolvendo principalmente condições de trabalho destes profissionais no nosso estado. A direção executiva da Fenaj tem um núcleo de deliberações e encaminhamentos que é formado por nove pessoas, e eu sou uma delas. A Federação é uma representação muito importante no Paraná, e é uma outra forma de representação, se aqui no Paraná nós temos dois sindicatos que representam os jornalistas a nível estadual, a Fenaj é uma segunda instância, que representa os jornalistas a nível nacional. Assim, desde agosto de 2019 – não foi desde o início do mandato do presidente Bolsonaro – mas no início do segundo semestre, percebemos que Federação precisava constantemente se posicionar com relação a temas políticos e conjunturais enquanto entidade de representação de trabalhadores do jornalismo por conta de diversos absurdos que começaram a acontecer na atual conjuntura. Na verdade, os ataques aos profissionais de imprensa não partem apenas do presidente, mas existe uma conjuntura fomentada pelo atual governo que culminou em muitos ataques à imprensa e a Fenaj teve que se posicionar defendendo a profissão e a categoria dos jornalistas. E essa constante necessidade de posicionamento nos fez pensar em uma maneira de materializar essa postura hostil. Portanto, o monitoramento relativo aos ataques do presidente Bolsonaro contra a imprensa surgiu de uma necessidade de mostrar que grande parte dos ataques partem dele na intenção de deslegitimar a profissão de jornalista e o jornalismo– aquele de verdade – já que existe hoje uma tentativa de equiparar o trabalho profissional de imprensa à internet, e são coisas muito distintas já que um é um produto de um trabalho profissional e o outro apenas uma plataforma. Assim, por conta dessa demanda, pensamos, enquanto federação de jornalistas, em materializar isso de alguma forma, e ainda que não tenhamos condições de dar materialidade a todas as ocorrências, criamos uma alternativa que tem um rigor científico e que tem uma metodologia e surgiu assim o mapeamento dos ataques desferidos pelo presidente Jair Bolsonaro à imprensa e seus profissionais.
Tais ataques têm como característica a tentativa de atingir o jornalismo no que ele tem de estruturante, que é o uso e a checagem de dados, de fontes, a apuração. Não podemos dizer que o jornalismo é o portador da “verdade”, mas ele é responsável pela construção de fatos baseado na checagem de informações e de dados.
Quando discutimos o monitoramento reconhecemos que essa metodologia precisava ter um rigor científico na colheita de dados. Mas foi um desafio, pois a Fenaj não tem trabalhadores contratados, ela é uma entidade sindical formada por jornalistas de diversas partes do país que têm seus empregos e também atuações em sindicatos estaduais, além disso a estrutura da Federação é pequena e, assim, quando se pensa em executar um projeto desse porte precisamos sempre considerar tal estrutura. Esse mapeamento foi uma proposta que eu levei para a executiva e que foi uma ideia compartilhada com um colega de São Paulo, o Márcio Garoni, profissional da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) na TV Brasil. Quando apresentamos o projeto já tínhamos o levantamento de janeiro até setembro de 2019. Depois de aprovado decidimos que o lançaríamos no Dia Internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas, lembrado em 2 de novembro, e acrescentamos também os dados de outubro e soltamos uma planilha atualizada com levantamento de 10 meses.
A intenção desse monitoramento é mostrar, por meio de dados completos, que existem sim constantes ataques feitos pelo presidente contra a imprensa na intenção de tirar a credibilidade do trabalho realizado pelos profissionais de jornalismo.
Parágrafo 2: E como foram coletados os dados para esse levantamento?
Paula Zarth Padilha: Os ataques foram coletados nos discursos e entrevistas oficiais que são transcritos no site do Palácio do Planalto e no Twitter oficial do presidente Bolsonaro – e tudo que é publicado lá é republicado em sua página no FaceBook.
Assim, é bom destacar que o número de ataques à imprensa desferidos pelo presidente é muito maior, já que não monitoramos o FaceBook e nem as lives que acontecem nele, e muitas destas ofensivas são desferidas por meio desta rede social. Então, temos a consciência de que o mapeamento não atinge tudo que está acontecendo, porque se pensarmos em toda essa “família presidencial”, já que os filhos do presidente também agem como mandatários, os ministros do governo se portam da mesma maneira do presidente, podemos dizer que a quantidade de ataques é muito maior.
Parágrafo 2: Os ataques desferidos contra jornalistas pelo presidente na saída do Palácio do Planalto não foram computados?
Paula Zarth Padilha: Não. Esse fenômeno de ele falar com jornalistas na saída do Palácio é muito novo. E mesmo havendo ali muitos ataques à imprensa, essas falas não são transcritas pelo Palácio do Planalto e, portanto, não entraram no objeto de pesquisa do nosso projeto. Além disso, como já destaquei, não monitoramos o conteúdo áudio visual, monitoramos sim se ele twitta uma live e se nessa publicação há algum ataque à imprensa.
Parágrafo 2: Que tipo de ações podem ser tomadas agora que estes ataques foram “materializados” por meio do mapeamento da Fenaj?
Paula Zarth Padilha: A Fenaj está discutindo, inclusive com os sindicatos estaduais, para definir quais são as melhores e mais efetivas medidas a serem tomadas. Enquanto representação dos trabalhadores e de defesa do exercício profissional, porque diante destes ataques os profissionais de jornalismo estão sendo tolhidos no exercício de sua função, a Fenaj tem realizado uma série de debates na intenção de definir quais ações jurídicas a instituição tomará.
Parágrafo 2: Qual seria o principal, ou os principais objetivos do presidente ao tentar rotular a imprensa como mentirosa?
Paula Zarth Padilha: É uma tentativa clara e deliberada de descredibilizar o trabalho dos profissionais de imprensa. Uma das narrativas de Bolsonaro é que a produção jornalística da imprensa é mentirosa, é omissa, que falta com a verdade, que é Fake News. A gente não entra no mérito aqui de ataques contra empresas de jornalismo, como os ataques que o presidente faz contra a TV Globo e a Folha de São Paulo, por exemplo, defendemos o exercício profissional, a notícia, o jornalismo e os jornalistas.
O Bolsonaro tomou conhecimento desse levantamento quando a Fenaj divulgou o Relatório da Violência Contra os Jornalistas no último dia 16 de janeiro. Foi nesse momento que ele se manifestou sobre esse relatório e a Fenaj assumiu seu protagonismo numa atividade sindical legítima que trabalham em defesa dos jornalistas e, dentro dessa conjuntura política que vivemos no país, a comunicação e a produção de notícias é cada vez mais importante.
Não podemos dizer que o jornalismo é o portador da “verdade”, mas ele é responsável pela construção de fatos baseado na checagem de informações e de dados
Parágrafo 2: Como você mencionou, os ataques aos profissionais de imprensa são comuns a muitos personagens do atual governo, entre eles os três filhos do presidente. Além deles, há figuras como o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que recentemente publicou dois vídeos atacando o jornalista Marco Antonio Villa, comentarista da JovemPan e colunista da ISTOÉ. Na gravação, o ministro não cita diretamente o nome de Villa, mas o acusa de espalhar mentiras e o chama de “boca de esgoto”. Se tem criado uma cultura contra a imprensa, que quando desagrada é atacada de diversas maneiras. A seu ver, qual é o principal prejuízo para os profissionais de imprensa diante dessa cultura de intimidação contra os jornalistas?
Paula Zarth Padilha: O Relatório da Violência Contra os Jornalistas, como bem lembrou a presidente da Fenaj, Maria José Braga, é produzido há bastante tempo e ele mostra que há muito existe a necessidade de a profissão ser monitorada por ser passível de agressão. Porém, estamos em um momento inédito porque estes ataques são sistematizados. Na minha leitura, as pessoas atacavam o profissional de imprensa por não concordar com uma matéria, uma abordagem ou uma linha editorial, mas agora o que está sendo atacado é a legitimidade do valor de verdade, de apuração, de levantamento de dados, de fatos. A meu ver esse é grande diferencial nos ataques. Ou seja, o jornalismo está sendo atacado na função primordial dele que é a apuração de fatos, de apresentar versões de fatos que promovam a reflexão e que aquela informação siga critérios para que tenha valor de verdade. Então, está sendo questionado todo arcabouço que envolve a produção de notícias. Pra gente, que é profissional de jornalismo, é a nossa capacidade, a nossa profissão e o nosso direito de exerce-la que vem sofrendo uma quantidade enorme de ataques. Quando o presidente diz que não precisa de jornalista para se fazer notícia, que qualquer um pode fazer, existe a clara intenção de tirar do jornalismo profissional a responsabilidade por produzir informação. Hoje vivemos em plana era da liberdade de informação, na qual uma quantidade enorme de sites e blogs produzem conteúdos variados, mas isso é muito diferente do jornalismo profissional e não é possível fazer uma equiparação. No entanto, agora a verdade está sendo disputada por pessoas que muitas vezes não seguem mínimos critérios de apuração e de levantamentos de dados. Na verdade, o que eles querem é legitimar todas as baboseiras que compartilham em grupos de Whatsapp e fazer uso político disso.
Na imprensa contra hegemônica, que é onde eu particularmente atuo, a gente questiona a linha editorial, questionamos o fato da empresa jornalística ter seus interesses comerciais e políticos, mas não questionamos a apuração da notícia e dos fatos, entendemos que aquele processo foi feito. Entretanto, é senso comum entre as pessoas questionarem a produção jornalística como um todo, se desagrada de alguma maneira, pra elas não pode ser considerada notícia, e isso não se resume apenas à divisão política – esquerda X direita – se refere inclusive a questões de saúde como vacinação, tratamentos médicos, dados estatísticos oficiais, até mesmo estudos são questionados. Assim, essa disputa de narrativa é muito prejudicial para o país.
Parágrafo 2: O levantamento da Fenaj destaca que 54% é o percentual de aumento de casos de agressão contra jornalistas de 2018 em relação a 2019. No estado do Paraná a realidade também é essa, ou seja, os dados também são alarmantes?
Paula Zarth Padilha: Nós divulgamos recentemente dados que comprovam que o Paraná foi o estado da Região Sul que mais registrou casos de agressões a jornalistas, nosso estado está, inclusive, entre os seis estados que mais registram esse tipo de agressão no país. A nível nacional, esses 54% de aumento está muito ligado aos ataques do presidente Bolsonaro, mas os casos que envolvem agressões no exercício da profissão em várias situações não costumam ter grande variação. Aqui no nosso estado registramos casos como hostilidade a repórter em estádio de futebol, ataques em redes sociais, agressão em manifestação de rua, entre outros. Mas é importante destacar que esses dados são subnotificados, eles não denotam a verdadeira dimensão do que é a violência contra os jornalistas na sua condição de trabalho. O relatório é feito com base nas notificações enviadas pelos sindicatos de todo o Brasil e isso gera o relatório nacional, mas muitos jornalistas infelizmente não vão até os sindicatos para formalizar as denúncias relativas ás agressões sofridas.
Quando o presidente diz que não precisa de jornalista para se fazer notícia, que qualquer um pode fazer, existe a clara intenção de tirar do jornalismo profissional a responsabilidade por produzir informação.
Parágrafo 2: E a Medida Provisória 905, ela é um desdobramento da Reforma Trabalhista que soterrou diversos direitos trabalhistas. A MP acaba com a obrigatoriedade de registro de 14 profissões, dentre elas jornalista e radialista. Agora, uma comissão mista do senado avalia a Medida. Quais as expectativas da Fenaj com relação a ela?
Paula Zarth Padilha: A MP está em vigência desde que foi assinada pelo presidente e sim, é uma extensão da Reforma Trabalhista porque ela implanta a Carteira Verde-Amarela e para a profissão de jornalista, de maneira desastrosa, ela acabou com a exigência do registro profissional. Desde quando o diploma de jornalismo foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, o único resquício de regulamentação da profissão, de exigência de formação, de algum tipo de controle para exercício do jornalismo era o registro profissional que era emitido pelo Ministério do Trabalho. Agora, com essa MP, qualquer pessoa pode se autodeclarar jornalista e sair fazendo jornalismo por aí.
Desde que a Medida Provisória entrou em vigência a Fenaj está fazendo diversas articulações, paralelamente às suas políticas oficiais de defesa do exercício de jornalismo, também existe essa preocupação para a derrubada dessa MP. Portanto, nos unimos à luta de centrais sindicais de outras categorias na intenção de denunciar que há esse desdobramento da Reforma Trabalhista que precariza ainda mais as condições de trabalho no país. Muitas ações foram e estão sendo feitas pela Fenaj contra a MP, nós, por exemplo, articulamos com os sindicatos uma Assembleia Nacional de Jornalistas na segunda quinzena de novembro, os profissionais de jornalismo foram reunidos em praticamente todas as bases do Brasil e essas assembleias foram de articulação da categoria para alertar sobre os riscos para a profissão; fizemos ações midiáticas em redes sociais para engajamento dos profissionais de jornalismo se autodeclararem em defesa do registro como forma de preservação da profissão de jornalista; a Fenaj atua também no congresso, participamos de audiência pública na Câmara dos Deputados, existe uma comissão mista no Senado que está analisando a MP, nesta quinta-feira (13) haverá inclusive mais uma audiência sobre o tema.