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Russel Cerilia

Evento debate a Consciência Negra e a realidade de imigrantes haitianos na Região Metropolitana de Curitiba

 

O português de Russel Cerilia é bom. De vez em quando algum termo lhe exige um esforço a mais. A maioria das palavras, porém, são pronunciadas sem muitas dificuldades. Despido de timidez ele vai ao microfone e, discorre durante quase 20 minutos sobre a colonização e a revolução do Haiti. Passa pelo Iluminismo francês, por Toussaint L’Overture, por Dutty Boukman e Jean-Jaques Dessalines, líderes do povo haitiano durante os séculos em que o país esteve sob o jugo da França, até sua independência, comemorada a cada 18 de novembro.

Negro, haitiano, morando no Brasil há pouco mais de dois anos, Russel poderia dar relatos detalhados de quantas vezes viu o racismo de perto. De quantas portas se fecharam por conta da sua cor e da sua nacionalidade. Mas não tem muito tempo para se lamentar. Divide as horas entre o trabalho como soldador, um curso de eletromecânica e, em breve uma graduação em Administração na Universidade Federal do Paraná, será a segunda, já que cursou Economia na sua terra natal. “É muito cansativo, sobram apenas quatro ou cinco horas para dormir e nos finais de semana tem os trabalhos do curso para fazer. Quero mesmo é estudar, é nisso que penso e concentro meus esforços, assim esqueço das dificuldades, às vezes fecho os olhos e os problemas passam”, diz.

Mesmo não sendo o foco principal no discurso de Russel, a desigualdade social entre negros e brancos, a dificuldade dos imigrantes haitianos, o Movimento Negro em Curitiba, a história da luta dos negros no Brasil e outras questões pertinentes foram debatidas no último domingo (22) no bairro Maria Antonieta, em Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. O evento “Povos unidos pela paz”, que celebrou o Dia da Consciência Negra e a integração Brasil/Haiti foi organizado pela vereadora Marcia Ferreira (PMDB) e contou com a participação de professores, um padre, membros da comunidade e, é claro, muitos haitianos.

Brasil em débito com a população negra

João Carlos de Freitas é especialista em música popular brasileira. Escreveu o livro “Colorado: A primeira escola de samba de Curitiba”, onde traça a história do berço do samba curitibano, e conta como se formaram batuqueiros de todos os matizes e alguns dos mais belos enredos já compostos na terra dos pinheirais. Formado em letras criou há alguns anos um pré-vestibular gratuito na Vila Guaíra em Curitiba. O curso já não existe mais, já a alcunha de professor lhe acompanha até hoje.

"O Brasil tem uma dívida enorme com o povo negro"- Prof João Carlos de Freitas

“O Brasil tem uma dívida enorme com o povo negro”- Prof João Carlos de Freitas

Professor João, que compôs a mesa de debate no evento do último domingo, acredita que a dívida que nosso país tem com a população negra ainda é muito grande. “Primeiro que não deveria nem ter havido escravidão, é algo vergonhoso para qualquer sociedade. Mas, quando acabou, os negros, donos de nada, deveriam ter recebido algum tipo de apoio, como terras para plantar, por exemplo. Sem apoio e sem auxílio a miséria apenas migrou da senzala para as favelas”, ressalta. Para ele, o ciclo que se iniciou depois do fim da escravidão, só começou a ser quebrado na primeira gestão do ex presidente Lula. “A maioria dos jovens que morrem no país são negros. A mão de obra dos negros é mais barata do que a dos brancos. Equilibrar essa balança é um desafio. Porém, hoje os negros começam a ter representantes nas universidades. Esse processo, por meio das cotas raciais e de programas que custeiam a faculdade, começou no governo do ex presidente Lula. Ou seja, o que não foi feito em 400 anos, foi feito pelo PT em 12”.

Racismo velado

“Cada vez que alguém olha diferente para um haitiano em um ponto de ônibus ou faz uma piadinha, isso não é xenofobia, mas sim racismo. Por isso eventos como esses são tão importantes, debatem o problema para que uma conscientização possa ser gerada”.

Prof. Paulo Dias

Prof. Paulo Dias

O discurso vem do ativista que veste uma camisa preta com uma estampa de Zumbi dos Palmares. Professor Paulo Dias trabalha na rede estadual de ensino em Pinhais. Ativista de muitas bandeiras tem na causa negra uma identificação profunda. Não apenas pela sua tez, que carrega os genes da mãe África, mas por perceber de perto a seriedade do tema e a necessidade de debate-lo. “É muito importante discutirmos o que acontece com o povo negro. As pessoas percebem que há racismo e discriminação, mas poucos reconhecem isso”, diz o professor que também compôs o debate ao lado de sua esposa, a Dra. Liliana Porto.

Na mesa composta, se destacava ainda um haitiano de terno cinza com um amicto no pescoço. Padre Agler Cherisier, vive no Brasil há dois anos e trabalha na Pastoral do Imigrante. O sacerdote ressalta que em Curitiba e Região Metropolitana vivem hoje aproximadamente oito mil haitianos. No entanto, segundo ele, esse número deve baixar. “Muitos haitianos estão indo embora para países como o Chile e o Uruguai, porque estão com dificuldades para conseguir emprego aqui”, conta. Para ele, apesar dos problemas, os imigrantes têm recebido amparo por parte do poder público, além da ajuda de muitos voluntários. “Percebemos que as iniciativas no sentido de acolher os imigrantes haitianos e dar suporte a eles é cada vez maior. Além disso, há muitas pessoas ajudando, oferecendo moradia, muitas vezes alugando casas a um preço menor e tudo isso tem feito a diferença”.

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Xenofobia

Em 2013, a vereadora Marcia criou a lei municipal 1480/2013 que institui o Dia da Consciência Negra em Pinhais. E esse ano, na intenção de incluir a realidade da população haitiana que vive no município, depois de uma visita do Padre Agler, decidiu unir o Dia da Consciência Negra em uma integração Brasil/Haiti. O que ela não imaginava, porém, é que o racismo e a xenofobia, temas debatidos durante o encontro, seriam percebidos por ela dias antes, quando foi buscar apoio. Muitas portas se fecharam quando revelou que ajuda seria para um encontro envolvendo haitianos. “Quando fomos buscar doações para realizar o almoço de hoje muitas pessoas diziam que, se fosse para os haitianos elas não iriam doar nada. Sei que isso é porque os haitianos são negros. Se eles fossem brancos de olhos claros, provavelmente a recepção seria outra”, lamenta.

Vereadora Marcia Ferreira

A vereadora Márcia Ferreira percebeu  xenofobia ao buscar donativos para o evento

Marcia Ferreira também reclama do pouco apoio que recebeu da administração municipal. “A Prefeitura de Pinhais, da qual esperávamos mais ajuda, deixou a desejar. Preciso, entretanto, agradecer o Secretário Genésio Siqueira que me cedeu algumas tendas e o pessoal do Centro de Referência em Direitos Humanos de Pinhais, representado aqui pela Sheila. Mas esperávamos a presença do prefeito Luizão, que não apareceu”, diz. Apesar das dificuldades as ajudas vieram e, para ela, há muito o que comemorar. “Mas muitas pessoas nos ajudaram. Uma frutaria aqui do bairro nos deu verduras, muitos amigos contribuíram, tanto nas doações de alimentos, como na organização”.

Apresentações artísticas X São Pedro

IMG_2628Depois do almoço, que foi composto por mollo, que é arroz misturado com feijão (o tradicional baião de dois dos brasileiros), frango frito, salada, maionese e refrigerante, o salão da Igreja Católica do bairro Vila Maria Antonieta, local onde aconteceu o evento, se encheu de atabaques, guitarras, contrabaixos e microfones. No palco 14 haitianos que integram a banda Level Konpa. Camisas de seda, óculos escuros, jeans, colares, pulseiras e outros ornamentos. Quase tudo pronto, até que São Pedro mandou mais uma forte chuva de primavera e a luz acabou. Quase uma hora depois ela ainda não havia voltado e a decepção dos músicos só aumentava.

Entre eles, de blazer e sapato bico fino, conversando com um, com outro, Marckensonn Ralph Stangley Guervich Raymond, ou simplesmente Raymond, tentava organizar as coisas e animar os companheiros enquanto esperava a luz voltar. Há dois anos na banda, ele ressalta que a procura por apresentação do grupo tem crescido. “Nos apresentamos em vários lugares desde que chegamos ao Brasil. Em Curitiba fizemos um show no Dia da Consciência Negra e esperamos que a luz volte e possamos tocar aqui também”. Mas a luz não veio e o grupo decidiu ir embora. Além do show da Level Konpa haveria também uma apresentação de capoeira do Mestre Corró e seus discípulos.

Banda Level Konpa- Foto apresentação em Curitiba

Banda Level Konpa- Foto apresentação em Curitiba

Para a vereadora Marcia, apesar dos problemas climatológicos o evento cumpriu seu papel. “A intenção do evento, além de homenagear o povo negro e os imigrantes haitianos, é discutir os desafios e as dificuldades enfrentadas por eles. Acredito que o dia de hoje foi um marco inicial na nossa cidade que tem recebido um grande número de imigrantes e que precisa se preocupar em acolhe-los da melhor maneira possível”, conclui.

Para quem ficou curioso em conhecer a música da banda de haitianos, segue um vídeo gravado pelo internauta Pablo Contreras, no mês de junho, em Curitiba.

 

 

 

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.