Conheço Renato pessoalmente, mas não com profundidade. Ainda assim consigo reconhecer nele alguém de minha classe, alguém que partilha de muitas das vivências que tive enquanto alguém que nasce na periferia e consegue furar a bolha que quer nos manter submissos. Renato, assim como eu, nasceu e cresceu nas periferias desse país, e entendeu que para nós não há opção a não ser lutar por mudanças sociais se não quisermos ser hipócritas com o local de onde viemos. Também consigo reconhecer alguém que, assim como muitos de meus amigos negros e periféricos, está sofrendo uma grande injustiça. Mas ele não é o único. Muitos com nossa origem acabam sendo vítimas do poder político, jurídico e policial cotidianamente. Mas o caso de Renato Freitas é emblemático, talvez, porque aqui a política genocida e racista da cidade de Curitiba ocorre aos olhos de todos. O linchamento, mais uma vez, é público.
Renato Freitas é Vereador por Curitiba pelo PT (Partido dos Trabalhadores), e luta para manter seu mandato cassado por protestar contra o genocídio de jovens negros, após a morte do jovem congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro. O protesto ocorreu em frente a Igreja do Rosário, construída por negros que, sendo maioria da população da cidade – que se diz européia – antes da década de 1920, eram impedidos de frequentar a Igreja da Ordem, e decidiram ter seu próprio espaço de culto e de reunião. As duas igrejas – a do Rosário e da Ordem – estão na mesma praça, conhecida como Largo da Ordem, e é talvez a cicatriz mais evidente e vergonhosa do racismo curitibano. Mas os símbolos do racismo estão por toda a cidade, na negação do papel que a população negra teve na construção de Curitiba.
Curitiba foi rota de mineração e, por isso, tem sua construção iniciada por tropeiros, em sua maioria negros, que escoavam ouro e minerais do interior do país e faziam ali uma pausa antes de descer a Serra do Mar rumo ao porto de Paranaguá. A partir da década de 1920 inicia-se um processo de branqueamento da população conduzido pelo Estado, atraindo imigrantes europeus para a região, com a promessa de terra e trabalho. Até que em 1972, graças ao planejamento autoritário conduzido pelo prefeito Jaime Lerner, houve o plano de desfavelamento que retirou, com apoio militar, as favelas próximas ao centro da cidade criando, com o suporte técnico do IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), um anel de parques que isolavam a bela cidade de seus pobres e de seus pretos. Sim, a maioria dos parques da cidade já foram bairros periféricos.
Mais e mais monumentos exaltam a origem européia da cidade, como os murais de Potty Lazzarotto espalhados pela cidade e que fazem questão de lembrar o papel de italianos, poloneses e alemães na identidade curitibana. Os negros foram apagados da história, dos equipamentos urbanos e da identidade curitibana. Agora tentam apagá-los também da câmara dos vereadores, exatamente por protestar contra o racismo.
Na minha atuação como educador popular nas periferias de Curitiba acabei me cruzando com o Renato mais de uma vez. Plantando hortas comunitárias para ajudar no combate à fome durante a pandemia, junto aos movimentos por moradia, à população em situação de rua, caminhando nas quebradas e conversando com gente que o vê como “um de nós”. Eu também vejo um pouco de mim em Renato. Seu mandato é o único na cidade que vejo que realmente tem um contato muito próximo e íntimo com o marginalizados, em uma atuação muito mais próxima do que dizem ser Jesus que aqueles que usam seu nome para persegui-lo. Renato, como poucos, é coerente com o que diz e com o que defende. Ao cassar o mandato de Renato, Curitiba mais uma vez me envergonha. Ao cassar os direitos políticos de Renato, Curitiba constrói mais um monumento ao seu racismo.
Eu e Renato
