Últimas Notícias
Home » indígenas » “Esse ataque é misógino, político e muito violento”, diz Kerexu sobre ocupação do DSEI na Grande Florianópolis

“Esse ataque é misógino, político e muito violento”, diz Kerexu sobre ocupação do DSEI na Grande Florianópolis

No último dia 16, o Parágrafo 2 noticiou que cerca de 80 indígenas estão acampados no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Interior Sul, em São José, na Grande Florianópolis desde o dia 13/01. Eles pedem a saída imediata de Eunice Antunes Kerexu da coordenação do Distrito Sanitário.

As lideranças presentes, que representam comunidades do interior dos estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, reclamam da precarização da saúde nas aldeias e da falta de diálogo com a atual coordenadora.

Informações repassadas ao Parágrafo 2 afirmavam que existe um sucateamento da saúde indígena de diversas aldeias de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul e que no Distrito Sanitário há remédios estocados que deveriam estar nas aldeias, além de materiais sanitários, como caixas d’água e outros que ainda não foram entregues às comunidades.  

Leia a reportagem neste link:

Agora, o Parágrafo 2 traz uma entrevista com Eunice Kerexu que se defende das acusações e afirma que a ocupação do DSEI tem relação com a distribuição de cargos e a insatisfação por mudanças promovidas por ela desde que assumiu o Distrito. Ela também reclama de misoginia por parte de lideranças.

Kerexu está na coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena desde abril de 2024. O órgão, ligado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde (MS), é responsável pela atenção à saúde de 42 mil indígenas de 16 etnias, distribuídos em 200 aldeias em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Eunice, da etnia guarani é a primeira mulher indígena a ocupar o cargo.

Ela é professora, pesquisadora e gestora ambiental. Liderança Guarani, atua nacional e internacionalmente em defesa dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente.  Originária do povo Guarani Mbya de Santa Catarina, vive na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis

Confira a entrevista:

Parágrafo 2:  Há quanto tempo você está à frente do Distrito Sanitário Especial indígena (DSEI) Interior Sul e como tem sido seu trabalho desde então?

Kerexu: Fui nomeada no DSEI no dia 16 de abril de 2024. Antes, eu estava no Ministério dos Povos Indígenas como Secretária de Direitos Territoriais, onde trabalhava com a proteção dos territórios. No Ministério, fui para ficar um ano e trabalhar a estrutura do MPI. Depois retornei para o meu território, pois estávamos fazendo um trabalho para a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. Aí fui convidada pelo secretário Weibe Tapeba para assumir o DSEI porque já haviam vários problemas aqui no Distrito. Assim, aceitei o convite porque sou gestora de formação e também porque fica próximo do meu território e principalmente pelos problemas que temos na saúde indígena no geral.

No início, quando a gente entra em uma estrutura, para entender todo o processo a gente precisa de tempo. Quando entrei no DSEI não conhecia ninguém, dos colaboradores e dos trabalhadores do Distrito. Então fui entendendo as demandas e dando seguimento às ações que já estavam em curso. Sempre destaquei para a equipe para não interromper os trabalhos, para dar continuidade no que estava em andamento, enquanto eu ia me apropriando do espaço. Na verdade, não foi difícil, foi rápido para eu começar a entender todo o processo.

A maior dificuldade, no início, era o fato de que muitas das solicitações dos indígenas (relacionadas à saúde nas aldeias) eram feitas, mas não eram incluídas no sistema, ou seja, muitas coisas eram feitas na correria de “apagar incêndio mesmo”, de atender o que era mais urgente. E nós temos aldeias, por exemplo, que têm tudo, principalmente dos indígenas deste grupo que está ocupando o DSEI hoje, como por exemplo a do Cacique Salvador, aliás ele fazia parte da gestão anterior do DSEI.

Na Aldeia dele, que é uma retomada, tem ponto de atendimento, tem técnico de enfermagem, tem dentista, carro, motorista, não falta nada. Enquanto outras aldeias não têm nada. Nem agente de saúde, nem agente de saneamento, ou seja, não tem nada. Principalmente as aldeias guaranis. Então, fiz um planejamento de trabalho chamando todos os setores para sentarmos e planejar uma redistribuição, para que conseguíssemos contemplar todas as aldeias. E foi nesse sentido que começamos a mexer nesta estrutura.

Ainda por não ter estes registros no sistema – algumas coisas estavam, mas a maioria não – principalmente de vagas, porque o pessoal olha e vê o DSEI como uma cabine de empregos, foi aí que os conflitos começaram. Eu vi aqui no DSEI, por exemplo, que as vagas eram negociadas em alguns lugares. Essas nomeações não eram feitas pensando na saúde dos indígenas e sim em atender interesses individuais. Isso era um vício que partia do DSEI e ia até dentro dos territórios, não vou dizer todas, mas principalmente essas lideranças que estão revoltadas hoje faziam parte deste esquema.

Havia uma empresa conveniada que era responsável pelas contratações. E para essas nomeações não eram levados em consideração critérios técnicos. Então, a partir do momento que eu cheguei e visualizei isso, comecei a falar que precisamos olhar para a saúde indígena de fato. As nomeações são importantes, mas tem que ter currículo e perfil para fazer esse trabalho. E quando essas pessoas forem para o território elas têm realmente que trabalhar. Porque a gente tem muitos casos, que se for investigar, tem muita coisa errada que acontece há bastante tempo.

Então, quando você mexe numa estrutura dessa, é lógico que esses ataques vão acontecer.

Parágrafo 2: Indígenas que ocupam o DSEI desde o dia 13 dizem que pedem sua saída porque existiria, segundo eles, um sucateamento da saúde nas aldeias que piorou sob a tua gestão. Como é coordenar um DSEI, que tipo de limitações você tem? E sobre essa acusação de sucateamento, como você se manifesta?

Xerexu: Nós estamos em um período difícil e eles se aproveitaram desse momento. Em dezembro passado houve uma transição da empresa conveniada que faz a contratação do RH, ela saiu e entrou outra. E nesse momento da saída dessa conveniada é quando a gente conseguiu fazer o filtro, essa filtragem de toda a bagunça que estava. Fomos avaliando colaborador por colaborador e vimos muitas pessoas que não estavam dentro do PDSI (Plano Distrital de Saúde Indígena) que é um plano de trabalho do DSEI. Nesse plano tem um quantitativo de pessoas que trabalham e quais são as funções. E percebemos que muitas delas eram contratadas pela conveniada sem estar dentro do Plano de Trabalho.

Então, quando foi feito essa transição de conveniada, trouxemos para dentro do DSEI os que estavam dentro do plano de trabalho, os que não estavam ficaram sem os cargos. E isso não é culpa do DSEI, ou culpa da coordenadora, é que a outra conveniada, que se chama Sabará, fez esses acordos com os caciques e criou funções que não existem em DSEI nenhum.

Esse foi o ponto que mexemos mesmo nesta estrutura. Fizemos uma avaliação com o Conselho Distrital e enviamos através dos polos-base – e temos 12 deles dentro do nosso Distrito – para que as chefes desses polos fizessem as avaliações com as lideranças e depois nos retornassem. E foram feitas avaliações técnicas, deixamos em aberto, por exemplo, as avaliações dos AIS (Agente Indígena de Saúde) e AISANS (Agente Indígena de Saneamento) para que as lideranças fizessem, por ser indígena e por não ter uma capacitação, uma formação por parte do DSEI, apenas orientação que eram dadas pelo Distrito, portanto, aqui não teria como fazer uma avaliação técnica.

Mas os técnicos do distrito, os médicos, dentistas, enfermeiros, tudo isso passou por uma avalição técnica. E nestas avaliações muitas pessoas não passaram e vão precisar ser substituídas. Assim, quando começaram essas mudanças, começaram também os protestos. Mas essa é uma regra nos 34 DSEIs do Brasil. Mas aqui isso nunca tinha acontecido, foi a primeira vez que estamos trabalhando de acordo com o que um DSEI precisa trabalhar.

Parágrafo 2: Recebemos fotos e vídeos sobre materiais como caixas d’água e pneus que estão no DSEI, além de remédios e alguns dele com a validade vencida. Segundo os indígenas que ocupam o Distrito, esses materiais deveriam estar nas aldeias. Por que aqueles materiais e remédios estão no DSEI?

Kerexu: Teve um vídeo que eles lançaram nas redes sociais fazendo acusação de falta de medicamento e de materiais nas aldeias. A gente teve sim uma entrega de materiais no finalzinho do ano. Chegou todo esse material das demandas que foram trazidas e do que já estava dentro do nosso planejamento. E a intenção era começar a entregar tudo isso agora em janeiro. Eu tinha conversado com o pessoal do saneamento para ver se dava para fazer essas entregas no final do ano, mas como estava muito próximo do recesso a gente não conseguiu.

Com relação a medicamentos vencidos, a gente fez uma nota informando o Ministério da Saúde, porque não temos contrato de descarte, agora que a gente está finalizando um, mas enquanto este contrato não estiver vigorando, precisamos segurar esses medicamentos lá no DSEI porque está dentro dos quesitos sanitários que precisamos respeitar. Além disso, muitas das exigências das lideranças e das comunidades é com relação a se pensar a saúde como aquela que você vai na farmácia e pega um medicamento de tal marca, porém trabalhamos com atendimento básico, é o que a gente tem.

Fazemos uma parceria com os municípios que podem dar atendimento mais especializado, o que DSEI faz é atenção primária, é saúde primária e os outros graus de atendimento vão tanto para os municípios quanto para os hospitais. Por mais que se feche o DSEI e peça que se faça de outra forma não tem como fazer, porque o papel do Distrito é dar esse atendimento básico.

Parágrafo 2: A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) publicou uma nota defendendo a sua permanência na coordenação do DSEI. Essa nota ressalta que “viemos através desta, manifestar total apoio e solidariedade pelos ataques à Coordenadora do DSEI interior Sul, Xerexu Ixapyry. O corpo das mulheres indígenas que ocupam cargos públicos está em constantes impugnações, onde muitas vezes são mobilizadas e articuladas por homens, que visam desmoralizar a capacidade e o profissionalismo que nós mulheres indígenas e lideranças sempre tivemos”.

Outras manifestações, encaminhadas ao Parágrafo 2 vão no mesmo sentido e defendem a sua atuação como coordenadora do Distrito.

Você acredita estar sendo vítima de misoginia?

Kerexu: Quando eu falo desta questão da perseguição, me coloco nesse lugar enquanto mulher. Estou me sentindo muito desrespeitada, porque sou uma liderança nata do meu território, a gente teve nosso território homologado recentemente. No sábado, a gente teve a entrega do registro da terra aqui no Morro dos Cavalos, onde a Ministra dos Povos Indígenas, a presidente da FUNAI, a equipe do Ministério da Justiça participou desta entrega.

Mas a minha luta não é de agora, ela é de muitos anos.  Passei por várias perseguições, inclusive ameaças, ataques onde minha mãe teve a mão decepada por causa da luta que a gente faz. Não sei se isso é um defeito, mas eu costumo trabalhar com muita justiça, sou muito honesta, sou uma pessoa que trabalha com muita honestidade. Eu procuro usar isso para tomar qualquer decisão, e tenho me articulado muito dentro de todos os espaços. Então, para quem me conhece e conhece o meu histórico, percebe que o que está acontecendo no DSEI é uma forma de prejudicar a minha imagem como pessoa e me atacar diretamente enquanto liderança.

Os que lideram a ocupação do DSEI hoje foram as mesmas pessoas que ocuparam a coordenação da FUNAI lá de Passo Fundo, e durante essa ocupação eu já comecei a identificar essas pessoas, principalmente os que estão no comando que são homens e que usam mulheres para fazer esses ataques. E nos bastidores são muitos abusos que acontecem, eles mascaram a ocupação com mulheres, mas por trás existe uma violência muito grande. E a forma como eles falam das mulheres, do corpo das mulheres, de sensualizar as mulheres, de dizerem que eles querem ter posse do nosso corpo. Então existe uma violência muito grande, de assédio sexual, moral, todos os tipos de assédio contra as mulheres. Tenho imagens, áudios, da forma que são chamados os homens para estas mobilizações. Oferecendo essas mulheres que estão dentro destes espaços, para que ali seja um lugar onde eles tenham a liberdade de fazer o que eles querem fazer, e é muito nojento o que eles fazem. Pensei comigo, durante essa ocupação em Passo Fundo, que eles nunca cheguem aqui no DSEI por não vou deixar barato. Então eu já fiz essas denúncias, já formalizei estas denúncias, de todos. Inclusive contra um canal no Youtube que abriu espaço de ataque contra minha pessoa sem conhecer a minha história, sem conhecer todo o processo que está acontecendo.

Parágrafo 2: Existe uma acusação, por parte das lideranças indígenas que ocupam o DSEI, de que é muito difícil dialogar com a tua gestão. Como tem sido sua relação com as aldeias e com as lideranças?

Kerexu: Sobre a alegação de que é muito difícil dialogar comigo, quando não estou nos territórios, estou no DSEI e quando estou lá estou em reunião. Portanto, não consigo atender telefone, e é o tempo todo as pessoas me ligando. Mas no DSEI tenho três assessores, que estão disponíveis para fazer o atendimento de todas as lideranças. Porém, esses assessores trabalham dentro de um planejamento que é atender a demanda de todos, não é negociar cargos. Assim, quando algumas lideranças conversam com esses assessores, não é de acordo com o que querem e aí eles querem falar comigo e tentar negociar suas demandas, independente se elas ferem o Plano de Trabalho do Distrito.

Eu destaquei para todas as lideranças que a nossa prioridade é recebe-las para ouvir as demandas das aldeias. E todas elas são recebidas. São mais de 215 aldeias, já visitei várias delas fazendo levantamentos e tudo mais. Então, essa questão de eu não querer diálogo, significa que não queremos ceder a pressões que conflitem com as reais funções do Distrito Sanitário.  Eu posso sim fazer parcerias, posso dialogar, mas tirar de um lugar e colocar em outro não é meu perfil de trabalho. Então, isso incomoda bastante e são essas questões que dificultam esse diálogo.

Parágrafo 2: Quando publicamos a reportagem sobre a ocupação do DSEI, recebemos mensagens de lideranças indígenas dizendo que a ocupação tem outras motivações também, como disputa por poder político e por cargos no Distrito. Você pode e gostaria de falar sobre isso, explicar essas alegações?

Kerexu: A motivação de tudo isso é por causa de como nossa gestão está trabalhando, formalizando tudo e colocando no sistema do Ministério da Saúde, fazendo prestações de contas, apresentando dados, dando retornos ao MS. Sempre falo para minha equipe que a gente precisa, além das demandas, dar também esse retorno para as comunidades do que está sendo feito e apresentar também para a SESAI que aquela demanda que solicitamos está sendo executada. Trabalhar muito com estes dados e com estes registros foi a forma que aprendi a trabalhar, fui gestora de escolas, trabalhei no Ministério dos Povos Indígenas, e a gente sempre trabalha com metas, com planejamento, com metodologia, com estratégias e essa é a forma de trabalhar de qualquer gestão.

Ou seja, não devo favores a ninguém, não fui indicada por ninguém e não tenho apoio político. A não ser o apoio de mulheres e lideranças indígenas que estavam sempre juntos na luta para todas as construções dessas políticas públicas para indígenas.

Sou uma liderança, mulher indígena, mãe, avó, profissional que zelo pelos direitos humanos, indígenas e trabalhadores. Que é meu direito

E afirmo e reafirmo que esse ataque é misógino,  político e muito violento.

Antes que você saia: Apoie o jornalismo independente. Assine a campanha de financiamento coletivo do Parágrafo 2 e nos ajude a expandir a cobertura de temas ligados aos direitos humanos, moradia, imigrantes, povos indígenas, política, cultura, entre outros: https://www.catarse.me/paragrafo2

Você pode participar também da comunidade do Parágrafo 2 no WhatsApp e receber em primeira mão reportagens sobre direitos dos povos indígenas, imigrantes, liberdade religiosa, política, cultura…

É só clicar nesse link: https://chat.whatsapp.com/FoILCvfG2VW65lJZ4zWGOz

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

*