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Escola Sem Partido – Fantasia que cega frente aos problemas reais

“Ao medo, sobejam os olhos” (Provérbio)

 

Existe um fenômeno político-ideológico em curso no Brasil, e já bastante consolidado, desde o ano de 2013. Ele se caracteriza pela substituição, na agenda de debates, de problemas reais como desemprego, o aumento da miséria e a falência do Sistema Único de Saúde (SUS), por questões ideológicas pautadas em falácias e carregadas de conservadorismo. Tal fenômeno é uma característica do fortalecimento da extrema direita no país. Essa “guinada à direita” é um acontecimento cíclico que aparece de quando em quando e não acontece apenas aqui. Muitos países hoje são inundados por uma onda radical. Na Alemanha, na Hungria, na Áustria, na Dinamarca, na Suécia, na França, na Itália e nos Estados Unidos partidos e representantes de direita ganharam muito poder nos últimos anos. Vários deles sob a bandeira do discurso de que “imigrante bom é imigrante barrado na fronteira”. No Brasil também temos nosso discurso, muito mais venal, é verdade.

O fato é que por aqui, o radicalismo político, insuflado pelo discurso religioso e pelo mote do combate à corrupção, levou ao poder um presidente de extrema direita. Mas, o debate ideológico que se vende como sanador de todas as mazelas, é bem anterior às eleições de outubro passado. E, como resultado desse debate, ganharam vida iniciativas que pregam a diminuição de direitos, a marginalização das minorias e a censura. Entre elas está o movimento “Escola Sem Partido”. Surgido em 2004, se transformou no projeto de lei 7.180 no ano de 2014. A iniciativa parlamentar é do deputado federal Erivelton Santana (Patriota-BA) e carrega no cerne o retrato mais claro do momento ideológico que vivemos. Esteve em estado de hibernação por um bom tempo e foi despertado poucos dias depois da eleição de Jair Bolsonaro. Hoje aguarda o parecer da Comissão Especial da Câmara.

A principal atribuição do projeto é coibir a “doutrinação ideológica” nas escolas brasileiras. Segundo ele, haveria uma “adestração” veemente dos ideais de esquerda, o que induziria os alunos (tanto do ensino público como do particular) a pensarem sob esse viés. Os professores seriam, segundo o Movimento Escola Sem Partido, instrumentos do ensino para fins políticos e ideológicos.

O projeto de lei, no entanto, é apenas um dos instrumentos que compõe um conjunto de iniciativas que tem como propósito enfraquecer o debate crítico e reflexivo gerado por escolas e universidades. A Reforma do Ensino Médio e o atual projeto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também fazem parte desse processo de enfraquecimento. Ambos defendem a aprendizagem por meio de habilidades e competências, minimizando a formação humana. A partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 1996, o discurso pedagógico fundamentado na ideia da construção curricular com base na interdisciplinaridade em oposição ao currículo organizado a partir do eixo disciplinar (conteúdos e métodos próprios – área de referência), passou a ter força e se impôs nos processos de avaliação em larga escala como é o caso das provas do Enem. A BNCC reconhece apenas a Matemática e a Língua Portuguesa como disciplinas curriculares e transforma as demais em componentes e temas transversais para os estudantes. Nesse cenário, disciplinas como história, filosofia e sociologia perdem força.

Escola sem qual partido?

O projeto Escola Sem Partido é um compêndio de fantasias e contradições. Fantasia por afirmar que a pregação ideológica de esquerda é fato absolutamente recorrente na maioria das salas de aula pelo país. A proposta parlamentar tem, como uma de suas justificativas, 60 relatos de supostas doutrinações ideológicas promovidas por professores em sala de aula. Ou seja, uma fração ínfima diante de uma realidade com 48 milhões de estudantes e mais de 2 milhões de docentes distribuídos em 184 mil escolas pelo país. Criou-se um imaginário popular do professor marxista que incute os ideais comunistas sobre seu bel prazer.

Já entre as contradições se destaca o fato de o projeto pregar uma suposta isenção ideológica, mas ter como base de apoio os preceitos da “família tradicional”, que são um conjunto de ideologias sobre o comportamento social, como destacou o Filósofo e Ex-Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, em entrevista ao Uol no ano de 2016, “esse projeto é um apanhado de doutrinações, pois prega um modelo tradicional pautado por valores tradicionais perpetuados pelas famílias, esse valores são um conjunto de ideologias que muitas vezes reforçam visões preconceituosas”.

O projeto, criado sob o viés da doutrinação política, foi abraçado no Congresso por religiosos conservadores e recebeu uma espécie de “contrabando moral”. A influência da Bancada Evangélica teve como resultado a iniciativa de proibir debates sobre orientação de gênero ou educação sexual nas escolas, conforme ressalta o texto aprovado pela Comissão Especial que analisa a proposta de lei, “a educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual”. A educação sexual, conforme a iniciativa, ficaria sob a responsabilidade da família. Se hoje, com a sexualidade ainda em debate nas escolas, o Brasil tem 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil meninas de 15 a 19 anos, segundo o relatório da Organização Mundial da Saúde, índice este que está acima da média latino-americana, estimada em 65,5, como será quando apenas a família conservadora, que ainda vê o sexo como tabu, for a única portadora da orientação sobre esse tema aos adolescentes?

Não há a pretensão aqui de tipificar a família tradicional como uma instituição que representa valores medievais. No entanto, é inegável que ela perpetuou e perpetua convicções preconceituosas e de viés extremamente machistas.

Mordaça

O texto do projeto Escola Sem Partido prevê que os professores deverão se ater apenas à transmissão de conteúdo. Eles não poderiam fazer uma correlação com a atualidade sob o risco de “estarem doutrinando”.  Em uma discussão em sala, que envolvesse o aumento no número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, por exemplo, os docentes não poderiam fazer uma relação entre miséria e concentração de renda sob a pena infringir o que determinaria a lei.

Haveria mesmo tal possibilidade? Poderia o docente, de forma robótica, mostrar fenômenos históricos e geopolíticos sem usar paralelos que destacam como tais realidades se formaram? De certo que não. Educação é a transmissão de conhecimento rigoroso sobre matéria científica mais a formação de valores universais como aqueles que estão nas Declaração de Direitos Humanos da ONU recepcionados em nossa Constituição. O aluno precisa ser preparado para refletir e compreender sobre o mundo que o cerca. Saber discernir sobre tudo que lhe chega. O que se pretende, por meio do Escola Sem Partido, é incentivar o conformismo.

Além disso, com a aprovação da lei, poderia se desencadear uma temerosa fiscalização das atividades comunicativas dos professores. Estes não poderiam expressar qualquer tipo de opinião pessoal sem que incorressem no crime de promoção de preferências ideológicas. O texto prevê, entre outras medidas, a afixação de cartazes nas escolas com “os deveres do professor”. Entre eles estão a obrigatoriedade de que “ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões teorias e perspectivas recorrentes a respeito”.

O texto incentiva também a denúncia sobre os “doutrinadores”. Um estímulo claro a censura, que pretende limitar a atuação dos professores, condicionando os docentes e punindo a reflexão aprofundada. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal (que deve julgar a inconstitucionalidade do projeto) considere que o Escola Sem Partido fere a Constituição de 1988, o estrago já está feito. Existe uma incitação, inclusive por parte do presidente eleito, para que alunos filmem (mesmo sem o consentimento dos professores), possíveis doutrinações. O resultado disso já se reflete nas escolas, que vivem um clima de perseguição onde professores são vítimas de intimidação e de violência física.

Cortina de fumaça

Toda a pauta da agenda ideológica que se instalou no país é uma “cortina de fumaça” que visa desviar as atenções sobre os problemas reais. No caso do Escola Sem Partido é um engodo que tira o foco das principais demandas da educação. O Censo Escolar 2017 do Ministério da Educação aponta que nas escolas que oferecem ensino fundamental, apenas 41,6% contam com rede de esgoto, e 52,3% têm fossa. Em 6,1% delas, não há sistema de esgotamento sanitário. O Censo também revela que a tecnologia não está acessível aos estudantes em cerca da metade das escolas de ensino fundamental e os números são semelhantes quando se trata de bibliotecas. Além disso, apenas 26,1% das creches e 25,1% das pré-escolas têm dependências adequadas para esses estudantes portadores de deficiência ou para os com mobilidade reduzida. Some-se a isso problemas de falta de merenda e transporte escolar, a evasão, os baixos níveis de desempenho dos alunos e a violência.

Quanto à realidade dos professores esta envolve adoecimento (pesquisa denominada Trabalho Docente na Educação Básica do Brasil revela que depressão, ansiedade, nervosismo e estresse são algumas das principais causas que levam ao afastamentos de professores); violência  (a agressão contra professores do Estado de São Paulo cresceu 189% entre 2017 e 2018 segundo a Secretaria Estadual de Educação); falta de estrutura; jornadas exaustivas; falta de reposição salarial, entre muitas outras mazelas.

Assim, mesmo diante de problemas históricos e que pedem urgente atenção, parte dos representantes públicos do país (existem cerca de 50 iniciativas inspiradas no Escola Sem Partido tramitando em Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais pelo Brasil) preferem concentrar força, tempo e recursos públicos para propor uma solução fantasiosa frente a um problema inexistente. Enquanto isso, demandas reais da educação brasileira, tão caras à vida dos profissionais e ao futuro dos estudantes, passam despercebidas diante de uma cegueira coletiva.

 

Referências

https://exame.abril.com.br/brasil/para-criticos-objetivo-do-escola-sem-partido-e-reescrever-ditadura/

https://www.cartacapital.com.br/politica/como-explicar-no-futuro-o-retrocesso-do-escola-sem-partido

https://educacao.uol.com.br/noticias/2016/07/21/escola-sem-partido-nao-e-serio-e-cortina-de-fumaca-diz-ex-ministro.htm

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1338676

https://periodicos.ufsc.br/index.php/alexandria/article/view/1982-5153.2017v10n2p259/35394

https://paragrafo2.com.br/2018/05/02/proposta-traz-um-enorme-prejuizo-do-ponto-de-vista-da-formacao-humana-e-tambem-tecnico-cientifica-para-os-estudantes-afirma-geraldo-horn/

http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-01/censo-aponta-que-escolas-publicas-ainda-tem-deficiencias-de-infraestrutura

https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/minha-vida/numero-de-professores-com-transtornos-mentais-dobra-no-brasil-diz-pesquisa,1c1408f2772ed27367b34eb56006fef688nq9giq.html

https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/08/casos-de-agressao-a-professores-crescem-189-no-estado-de-sao-paulo.shtml

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.