Parágrafo 2

Entrevista com Idovino Cassol Jr.

Nos primeiros dias de março, o escritor, ilustrador e professor Idovino Cassol Jr. lançou o livro Supéria na Livraria do Sesc no Paço da Liberdade, em Curitiba/PR. O evento foi mediado pelo professor e colunista do Parágrafo 2 Rafael Pires de Mello. Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Parágrafo 2 – Você poderia contar mais sobre a construção do livro? Me refiro à estrutura do texto, as referencias externas, a questão da homenagem às eras dos quadrinhos no qual seu livro se inspira.

Idovino Cassol Jr. – Primeiramente é uma honra que você – e o Parágrafo2, claro – estejam presentes nesse lançamento. O livro se iniciou com um conto pequeno chamado “Arqui-inimiga” e cerca de um ano depois tomou corpo e se tornou o livro Supéria. Separei ele em duas partes, sendo a primeira parte narrada com os tempos verbais no passado e a parte 2 narrada no presente. Toda a jornada de Supéria acaba por ser uma alegoria para as conhecidas eras dos comics de super-heróis, sendo elas a era de ouro, era de prata, era de bronze, era das trevas e era moderna, cada etapa com suas características internas e externas às histórias em quadrinhos, seja na narrativa das mesmas ou nos bastidores mercadológicos.

Parágrafo 2 – Sua formação em Filosofia está presente na obra, inclusive na introdução, isso fica evidente. Qual é o resultado desta influência onde mais ela aparece?

Idovino Cassol Jr. – Voltei minha pesquisa para a conclusão do curso de filosofia para uma análise dos comics dentro do cenário pós-moderno e o rompimento das certezas, lutas sociais e o reflexo negativo do individualismo no consumidor. Acredito ter adicionado um pouco dessa pesquisa como uma crítica ao longo do livro.

Parágrafo 2 – Alguns leitores classificam o texto com um certo teor ‘pós-moderno’ você concorda com isso ou rechaça? E se não concorda como rebate estas críticas?

Idovino Cassol Jr. – Esse é um problema recorrente. O termo ‘pós-moderno’ afasta-se muitas vezes de seu conceito atual e se torna um artifício pejorativo, dentro da própria esquerda, para rotular algumas situações, tal como dar voz a algumas lutas sociais que não sejam apenas a luta de classes, pois, ao meu ver, para algumas vertentes da esquerda, as lutas identitárias fragmentam e enfraquecem a luta. Nesse ponto, humildemente discordo, pois enquanto o capital não é vencido negros, mulheres e LGBT+ são assassinados por serem o que são, tanto pelo Estado quanto pela população em decorrência dos anos de objetificação, banalização e desumanização destes grupos. Outro motivo por ser rotulado de pós-moderno talvez seja decorrente do formato experimental com algumas quebras do protocolo. Por fim, para mim existe uma ambiguidade ao chamarem o texto como pós-moderno pois não sinto que os conceitos se pareiam. Mas, se seguirmos o conceito acadêmico (e não o xingamento banalizado) eu estou longe de dizer que o socialismo (e Marx) estão defasados. Pelo contrário.

Parágrafo 2 – O narrador é um personagem atuante no texto. Até que ponto o narrador influencia na interpretação do leitor?

Idovino Cassol Jr. – A intenção é a de que o narrador influencie ao máximo, respeitando a carga que o leitor traz, mas mesmo assim sendo um guia e até mesmo um ilusionista ao narrar os fatos; omitindo aqui, dando dicas ali. Acredito que Supéria não poderia ser concebido com um tipo de narrativa diferente pois o narrador integra-se ao elenco mesmo “não existindo”.

Parágrafo 2 – Como Supéria pode ser vista como uma crítica à censura?

Idovino Cassol Jr. – Como eu disse, a personagem principal alça sua jornada através de uma alegoria às eras dos comics. Em dado momento ela passa pelo período em que as histórias em quadrinhos tiveram uma forte perseguição nos EUA. Essa caça às bruxas foi idealizada pelo psiquiatra Fredric Wertham em seu livro A Sedução do Inocente (1956) no qual apontou os comics como um fator de peso na delinquência juvenil. A personagem título, Supéria, ao longo da trama enfrenta a figura autoritária com seus ditames do que está dentro da “moral e bons costumes”. Uma batalha deveras difícil, uma vez que o vilão angariou o apoio popular graças à necessidade do cidadão de ser liderado por uma figura assim; um fanfarrão implantando uma ditadura sob o discurso raso de “acabar com a baderna”.

Parágrafo 2 – O contexto de Supéria é o Brasil?

Idovino Cassol Jr. – Supéria, apesar de ter muitas características dos tais super-heróis norte-americanos nascidos dos comics, traz sim elementos do Brasil. A começar por sua origem, uma homenagem ao Superman aportando em sua nave na Terra ainda bebê. A personagem central chega na Terra vinda de “não sei onde” caindo num assentamento do MST – e criada lá com muito zelo e carinho, tendo ela boas lições de humanidade.

Parágrafo 2 – Como uma heroína como ela, com suas características, seria vista no Brasil atual? Seria aceita, rejeitada?

Idovino Cassol Jr. – Supéria é uma personagem extremamente inteligente. Nascida com uma capacidade mental extraordinária ela consegue lidar com tecnologia e inventar bugigangas como ninguém. O mesmo dom permite a ela compreender o mundo em que vive e compreender as linhas invisíveis que ligam as coisas. Através disso ela tem uma habilidade nata de conjurar feitiços. Essa segunda parte, esse viés místico a personagem omite por ser menos aceito socialmente. Todavia, não seria por isso que ela seria rejeitada no Brasil atual, mas sim pela questão das lutas sociais. A luta contra a injustiça de grupos sociais historicamente oprimidos é vista com um grande desdém. Isso que eu não pontuo a etnia da personagem, deixei livre para o leitor se identificar e coloca-la na posição de acordo com sua vivência pessoal. Não sabe-se se Supéria vai ser mais visada por um segurança de shopping quando estiver passeando sem sua cintilante armadura. Será uma leitura particular de cada um.

Parágrafo 2 – Há algo em comum, enquanto intenção do autor ou mesmo certos pontos, sejam críticos ou biográficos, entre Supéria e seus outros livros ( Um breve relato sobre o uivo e A antologia Zórnia) ?

Idovino Cassol Jr. – É uma boa pergunta. Muitas vezes tento me avaliar para ver se não estou me repetindo pelos livros. o “Uivo” (Um breve relato sobre o uivo) é um livro infanto juvenil, enquanto o Zórnia (A antologia Zórnia) tem um teor mais adulto e pessimista. Em todos eles, mesmo no Uivo, acabo sempre lançando alguma crítica, ainda mais no atual cenário político. Talvez o que ligue esses livros sejam as alfinetadas.

Parágrafo 2 – A origem de Supéria, na terra, é uma origem popular. Uma heroína que surge das camadas mais pobres da população. Ela pode ser vista como uma crítica à personificação de heróis do povo ou alimenta a esperança de que surja alguém do povo que tem “poderes” para salvar o povo? Mesmo que estes poderes sejam habilidades mentais.

Idovino Cassol Jr. – Supéria, apesar de ser uma figura quase divina por sua origem misteriosa, é uma personagem insegura. Insegura o bastante para não mostrar todo seu potencial e salvar o dia com mais eficácia. Como disse anteriormente, a personagem caminha pelas eras do comics e, quando a mesma enfrenta a chamada “era das trevas” sua presença é banalizada e precisa se flexibilizar de acordo com o clamor popular; e o que o povo quer é violência. Supéria acaba não sendo uma figura que o povo precisa por conta de toda insegurança a ela introjetada por vários acontecimentos. Talvez eu tenha descrito a população como fútil e imediatista, caindo muito mais no conto de um super-vilão ditador do que numa super-heroína.

Parágrafo 2 – Durante o texto, há momentos em que o narrador simplesmente se desprende do eixo principal e vai comentar outra coisa, tirando o holofote da protagonista e vai tratar de banalidades que acabam contribuindo com a trama. Esses trejeitos do narrador como se conversasse informalmente é proposital?

Idovino Cassol Jr. – Vejo um narrador como um computador de bordo, uma inteligência artificial daquelas de filmes de ficção científica. Ele está ali para auxiliar, mas não para entregar o ouro. O desvio do foco pode ser influência de algumas leituras as quais me causaram sentimentos bons. Lembro-me de ler Hilda Hilst e no Contos de Escárnio ela resolve largar o texto e nos apresentar uma receita de bolo, para daí voltar ao texto. Tive contato com outros livros, saindo da minha zona de conforto, durante minha estadia na Fundação Cultural de Curitiba onde o mestre Sergio Luiz Ferreira de Freitas mediou várias leituras.

Parágrafo 2 – Antonio Cândido nos ensina que o autor independente da intenção retrata seu contexto e as grandes questões de seu tempo em sua obra. Como Supéria se encaixa nisso? Como ela explicita as grandes questões de nosso tempo?

Idovino Cassol Jr. – O tempo em Supéria age de forma estranha, porém fora do livro, enquanto autor sei que existe uma onda pessimista nos engolfando e sei que nossa voz precisa ser ouvida. Em outros tempos talvez Supéria fosse diferente ou nem existisse. Acredito que o livro surgiu como uma manifestação física daquele nó que fica na garganta e sentimento de impotência diante da atual conjuntura.

Parágrafo 2 – Como autor, você iniciou no mundo dos H.Q. com as três edições de “Armas Vivas & Estragenes”. Como percebe a diferença entre estas linguagens literárias, você que atua em ambos os campos? Qual prefere?

Idovino Cassol Jr. – Quem cuida mais do roteiro das HQs da Equipe Bugio é Paulo (Paulo José Costa), refinando meu roteiro bagunçado para uma linguagem mais palatável. São personagens que estão conosco há décadas e temos muito apego a eles, muito embora eu tenha mais liberdade e rapidez para escrever um livro. Para as HQs eu preciso estar calmo, ou meus desenhos não saem como eu quero, por outro lado, ao escrever um livro eu, na maioria das vezes, estou “emputecido” com algo e isso até dá um combustível. Não consigo escolher um filho preferido, os personagens de Extragenes andam comigo desde a década de 90 e não penso em parar de desenhar. Já os livros, a cada história nova é uma relação diferente, algumas de amor, outras de ódio.

Parágrafo 2 – Qual é a grande ou as grandes dificuldades em produzir literatura no Brasil?

Idovino Cassol Jr. – Livrarias estão fechando, não me admiro se abrir um estande de tiro no lugar. A cultura sofre um desmonte não só em suas estruturas burocráticas, mas também num discurso que nos banaliza. Durante as últimas eleições a quantidade de postagens sobre “nunca precisei de um artista na minha vida” que vi por aí foi absurda. O discurso transformou artistas em vagabundos ou desnecessários. Eu e o Paulo temos como proposta com a Equipe Bugio fazer com que nossos amigos tirem da gaveta seus projetos, agindo como um agente facilitador para edição e publicação de livros. As tiragens são pequenas, mas o grande lance não é enriquecer com isso, mas sim espalhar a arte.

Parágrafo 2 – Para encerrar, quais os próximos projetos da Equipe Bugio?

Idovino Cassol Jr. – A HQ Armas Vivas & Extragenes 4 está em seu estágio final de produção. Ainda em 2020 disponibilizaremos para venda o novo livro Elementar, escrito por Paulo e venho trabalhando num livro infantil com o nome provisório de “O último dia da Morsa”. Supéria ganhará uma continuação, mas não consigo imaginar para quando ficará pronta. O mais próximo de sair no forno, acredito eu, é um livro de poemas de um grande amigo meu.

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