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Entre o Covid e a fome – A Ocupação Dona Cida agoniza

Série: Covid e os esquecidos

Por José Pires

Com colaboração de Diego Torres Batista e Guilherme de Paula Pires 

 

A Rua 03 é, como todas as outras da ocupação, estreita. Mesmo assim, nela, dividem espaço carros estacionados, montes de areia e de pedra brita, e pessoas, muitas pessoas. Sábado é dia de construir. Dar vida a mais um quarto de madeira no fundo do quintal, cobrir com lona a telha rachada, armar as vigas de ferro que, provavelmente, demorarão para serem inundadas pelo concreto. É dia também de fazer um churrasco. Acender o carvão e deixar que a fumaça entre pelas janelas dos vizinhos. Num sábado de sol ninguém fica em casa. Haitianas passeiam equilibrando, no topo da cabeça, bacias abarrotadas de roupas. Nos bares sinuca e rap. A Ocupação Dona Cida segue seu cotidiano. Impelida pelas necessidades de sobrevivência a vila não para, mesmo diante do crescente número de contágios pelo Covid-19. Entretanto, todo murmurinho das vielas esconde um inimigo sorrateiro, sempre presente, porém, muito mais fortalecido agora com as mudanças econômicas trazidas pelo necessário isolamento social.

A Ocupação Dona Cida foi formada no dia 15 de setembro de 2016, num terreno abandonado da Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Se consolidou já naquele ano com as 400 famílias que não tinham onde morar e resistiu a uma reintegração de posse quatro dias depois. “Dona Cida” é um batismo em memória da militante sem teto que faleceu em julho do mesmo ano, após esperar dois anos por uma cirurgia de rim. Na mesma região, separadas por ruas, existem outras três comunidades: A 29 de Março – que foi aterrorizada pela Policia Militar do Paraná entre 06 e 08 de dezembro de 2019, quando centenas de casas foram consumidas por um incêndio criminoso -, a Tiradentes e a Nova Primavera. Todas articuladas pelo Movimento Popular por Moradia (MPM) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Segundo lideranças comunitárias da Ocupação Dona Cida, mais de 90 % dos moradores do lugar vivem da informalidade. Trabalham durante o dia pra receber no final da tarde. São pedreiros, domésticas, vendedores ambulantes, catadores de recicláveis, entre outros. Na Mercearia Vitória, pequeno e único comércio da Rua 03, as prateleiras são uma metáfora da vida no bairro. Nelas, alguns pacotes de macarrão, ladeados por molho de tomate, fazem companhia a pão fatiado e suspiros amarelos. São poucas as opções para os consumidores. Estes, cuja a sina limitou possibilidades ao longo de toda a vida, também não têm recursos pra esvaziar as já quase vazias prateleiras do comércio. Se em tempos “normais” as vendas não são lá grande coisa, em tempos de pandemia, a Mercearia Vitória teve queda de 50% nos negócios. “Nas últimas semanas vendi metade do que costumo vender. Tá difícil, o movimento caiu muito. Esse mês não vou tirar pra pagar o aluguel”, conta Claudemir Antunes, dono da venda e que paga R$ 600 pela locação do lugar e mais R$ 500 pela casa onde vive com a família.

Claudemir Antunes do Mercado e Panificadora Vitória não sabe como vai pagar o aluguel desse mês

A informalidade é patroa ingrata. Esgota o suor do trabalhador num dia, para dispensa-lo no outro. Não há garantias. Em um país com 13 milhões de empregados, cujos direitos trabalhistas foram soterrados pela Reforma Trabalhista de 2017, a intermitência e o subemprego agravam as péssimas condições de vida da camada mais pobre da população. Na Ocupação Dona Cida, assim como na 29 de Março, na Tiradentes e na Nova Primavera, um antigo inimigo, forte e implacável, se mostra mais assustador do que o Novo Coronavírus. A fome, inquilina indesejada, mas que resiste ao despejo, se instala nos armários e geladeiras de cada barraco das ocupações.

A necessidade de isolamento social – medida recomendada pela OMS para que se diminua o risco de disseminação do Covid-19- fez pequenos comércios fecharem, empresas diminuírem o ritmo de trabalho de seus funcionários, reduziu a circulação de pessoas pelas ruas e afetou emprego e renda de milhões. Na Dona Cida, diaristas perderam o ganha pão, pedreiros tiveram que interromper bicos, ambulantes não encontram clientes.

Segundo a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), 5,1 milhões de pessoas sofrem de fome e insegurança alimentar atualmente no Brasil, enquanto, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do último trimestre de 2019 informa que 13,5 milhões de brasileiros vivem em situação de extrema pobreza, ou seja, estão condenados a viver com menos de R$ 145 por mês.

De acordo com o estudo Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, cerca de 305 mil pessoas estavam vivendo abaixo da linha extrema da pobreza no Paraná.

Em Curitiba a miséria se instala nas periferias. Regiões como a Cidade Industrial de Curitiba (CIC), onde residem mais de 170 mil pessoas segundo o Censo do IBGE de 2010, comportam grandes áreas carentes, onde falta infraestrutura básica e sobra violência.

Esquecida pelo poder público a comunidade teme agora sucumbir à fome

Quem tem fome tem pressa

Ofegante, subindo a ladeira de terra embaixo do sol do meio dia, Edna Elaine, a Neia, que há cinco anos mora na Dona Cida, caminha apressada segurando uma prancheta. Nela, está o cadastramento das famílias que foram recentemente prejudicadas ao serem afastadas do trabalho, ou que eram providas pela informalidade e perderam sua renda. Ela, e outros agentes comunitários das ocupações, correm contra o tempo, afinal, quem tem fome tem pressa. “Tem gente hoje aqui na comunidade passando fome. Sem nada pra comer em casa”, diz Neia. A Associação dos Moradores recebeu doações de cestas básicas e o cadastramento das famílias é necessário para haver justiça na distribuição. Os agentes ainda não sabiam de onde viam as doações. Mas sabiam de onde não vinham. “Do poder público não é. Não existem ações da prefeitura ou do estado aqui nas ocupações. Na semana passada procuramos a prefeitura e o Ministério Público e recebemos como resposta que eles não têm nenhuma ação social ou de saúde planejada para essas comunidades”, conta Neia.

O relato de Edna vai ao encontro de todas as outras lideranças e é assentido pelos moradores.  “A prefeitura só vem aqui pra atrapalhar, tentam inclusive dificultar que as comunidades consigam a regularização de luz e água, por exemplo. Já o governo do estado eu nunca vi por aqui”, afirma Johny Magalhães de Oliveira, uma das lideranças da Nova Primavera.

Haitianos

As portas das pequenas casas da Dona Cida ficam voltadas pras estreitas ruas de terra. Não há espaço pra quintal. Na frente de muitas delas haitianos conversam sob o sol. Todos cumprimentam, ninguém nega um bom dia a estranhos. Manejando uma “turquesa” – alicate de torcer arame muito utilizado na construção civil – Onaka Louis arma os ferros que darão sustentação a uma viga de concreto. O haitiano, que vive há quatro anos na comunidade, está há dois meses sem emprego e sua esposa há dois anos. A alimentação dos três filhos é incerta, o que não vacila é a fé de Onaka.  “É muito difícil, só Deus que está me ajudando. Sempre pedi a Deus pra que faça um milagre pra nós, nossa confiança é só nele”, diz.

Desempregado a dois meses, Onaka Louis espera um milagre

Cerca de 40 % dos habitantes das ocupações são haitianos. É o que estima Johny Magalhães. “São muitos. De cada dez pessoas que contabilizamos, ao menos quatro são haitianas. E sempre chegam mais”, diz. Na Tiradentes não é diferente. Lá, os haitianos compartilham suas esperanças e angustias com brasileiros vindos do interior do Paraná e também de outros estados.

Coronavírus

Os moradores das comunidades no CIC se previnem contra o Novo Coronavírus como podem. Faltam álcool em gel e máscaras. Eles evitam aglomerações, mesmo mantendo o mesmo ritmo de vida nos bairros. As orientações sobre os cuidados chegam por meio da TV, da Internet e do trabalho das lideranças.

A ausência da Secretaria Municipal de Saúde é total. Não existem, segundo os moradores e os líderes comunitários, ações da pasta voltadas a essas comunidades, mesmo agora diante da pandemia. “No que diz respeito à saúde realmente não há nenhuma ação da Secretaria da Saúde direcionada diretamente pras comunidades. Nós nos orientamos por meio dos veículos de comunicações como, rádio, tv, e redes sociais.  Pra evitar aglomerações todas as lideranças cancelaram os eventos e estamos todos os dias reforçando sobre a importância de ficarmos em casa dentro do possível”, conta Val, um dos líderes comunitários da Tiradentes.

Não fossem as ações da própria comunidade, a vida nas ocupações seria impossível. Se a fome espreita em cada barraco, a falta de saneamento básico, a falta de água e luz regularizadas e a violência se misturam ao cheiro de chorume vindo de gigantescas montadas de rejeitos no Lixão da Essencis. Sobrevoando acima dos píncaros fétidos, dezenas de urubus compõem a paisagem. Na região, como observa o jornalista Guilherme de Paula Pires, se encontra boa parte do que a capital não quer “o lixão, os presos da Casa de Custódia e os pobres das ocupações”.

O Lixão da Essencis reuni fétidas montanhas de rejeito

Diante de tantas mazelas, no entanto, as comunidades desenvolveram um sentimento de união e solidariedade muito importante para todas as famílias que habitam a região. Diego Torres Batista, liderança comunitária do Sabará, bairro vizinho às ocupações, destaca que as dificuldades enfrentadas pelas pessoas nestas comunidades acabam gerando um sentimento de união popular. “Aqui na Dona Cida a comunidade já sofreu muito, além disso eles têm uma carência muito grande de serviços públicos. Assim, se articulam, se reúnem para discutir os problemas do bairro e participam de manifestações ajudando a fortalecer toda a comunidade”, opina.  

Kauê Avanzi, Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) com a dissertação “Entre foices e engrenagens: crise, mobilidade do trabalho e a contradição urbano-agrário no estado do Paraná”, ressalta que as ocupações na Cidade Industrial de Curitiba e, consequentemente as condições de vida em que se encontram seus moradores, são reflexos da característica urbana do modelo capitalista que é determinante para a exclusão de populações como a da Ocupação Dona Cida. “É necessário refletirmos sobre a cidade que estamos produzindo, as formas que tomaram corpo no tecido urbano. Precisamos debater a crescente violência e a insistente exclusão a qual são relegadas essas populações”, destaca.

Para o advogado e ativista Renato Freitas, é justamente nas comunidades mais carentes que a quarentena tem efeito econômico cruel, pois as pessoas que não possuem capacitação profissional e educação formal, sendo assim jogadas aos ventos incertos da informalidade. “Eles fazem parte das 5 ou 7 mil pessoas que podem morrer, segundo o dono do Madero. E o mais triste é ver que a educação, profissionalização e emprego estão longe da periferia, mas a droga, as armas e o crime é uma realidade próxima e cotidiana. Uma verdadeira armadilha que em épocas como essa agravam o genocídio brasileiro. Devemos combater essa ideia de cordialidade, de democracia racial, de ausência de conflito, já que somos o país mais violento do mundo. Um país que tem como política a desvalorização da vida. Basta ver os pronunciamentos do presidente da República, sempre colocando a economia e o lucro dos empresários acima das possíveis vítimas do Covid -19”, diz.

Neia corre contra o tempo para cadastrar famílias para receber alimentos

Auxílio emergencial

O presidente Jair Bolsonaro prometeu sancionar a o auxílio emergencial mensal de R$ 600 para trabalhadores informais de baixa renda, que será concedido durante a crise gerada pela pandemia de coronavírus. A medida — aprovada na segunda-feira pelo Senado―, vai durar, a princípio, três meses, porém poderá ser prorrogada. De acordo com o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, o benefício deve começar a ser pago a partir da segunda semana de abril. Economistas de vários matizes cobram a celeridade no processo, uma vez que a crise já afeta o rendimento de milhões de brasileiros vulneráveis. Até o fim da noite desta quarta-feira, no entanto, a medida ainda não havia sido sancionada pelo Planalto.

Nas ocupações, entretanto, a fé de que a ajuda de fato chegará é muito pequena. “Esse auxílio de R$ 600, a gente vai precisar ir no Cras pra fazer essa ficha, mas eles estão fechados e só atendem por telefone. Acho que foi muita coisa pra coisa nenhuma. Acho que a gente não vai conseguir aqui. Tem pessoas aqui chorando porque tem de escolher entre almoçar e jantar”, finaliza com descrença o líder Johny Magalhães.

O que diz a Prefeitura de Curitiba

Questionada pelo Parágrafo 2 sobre as diversas dificuldades nas áreas de saúde e assistência social relatadas por moradores e lideranças das comunidades, a Prefeitura de Curitiba, por meio das Assessorias de Imprensa da Secretaria Municipal de Saúde e da Fundação de Ação Social responderam:

Saúde

As medidas adotadas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para o enfrentamento do novo coronavírus contemplam todas as regiões da cidade, inclusive as comunidades:

– renovação automática por 90 dias das receitas para pacientes que fazem uso de medicação de uso contínuo. Idosos podem solicitar para um familiar retirar seu medicamento na US com a posse de um documento de identidade.

– vacinação contra influenza com prioridade para os idosos, sendo para os acamados a vacina feita em domicílio;

– monitoramento dos Sintomáticos Respiratórios pela equipe da US;

– disponibilização de Call Center para orientação sobre o Coronavirus, tele Saúde e vídeo consultas;

– US Sabará e UPA CIC como referência para atendimentos necessários, possuindo as duas sistemas de atendimento separados para pacientes com sintomas de infecções respiratórias;

– veiculação massiva com materiais impressos, imprensa e meio digital com orientações e formas de prevenção;”.

FAS

“O território que abrange estas quatro comunidades é referenciado ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Corbélia e à Unidade de Atendimento Alto Bela Vista.

 Das famílias que residem no local, 952 recebem benefício de transferência de renda por meio do Bolsa Família e 505 são acompanhadas pelo Programa de Atendimento Integral à Família (PAIF), com uma média de 600 atendimentos individualizados ao mês.

 Cerca de 280 crianças do território são atendidas em grupos do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) vinculados a duas organizações parceiras e aproximadamente 30 pessoas idosas participam de grupo do SCFV na Unidade de Atendimento.

 O Liceu Caic Cândido Portinari também atende maciçamente estas quatro comunidades através de cursos de inserção para o mercado de trabalho.

 A Fundação de Ação Social (FAS) está buscando alternativas para um plano emergencial, o contrato de subsidio alimentar foi renovado e uma campanha de utilidade pública foi iniciada para a arrecadação de alimentos, materiais de higiene e limpeza.

 Para garantir que todas as famílias de beneficiários do Bolsa Família se mantenham asseguradas, estão suspensos por 120 dias os processos de averiguações e revisões cadastrais. Com isso, nenhuma família terá o benefício bloqueado ou cancelado neste período, de acordo com orientação do Ministério da Cidadania.

 Foi adiado também até final do próximo mês de maio, o prazo para recurso das famílias que não cumprem as condicionalidades da saúde e educação do programa. Assim, todas continuam recebendo o benefício normalmente.

 Além disso, os Núcleos Regionais permanecem atendendo as famílias por telefone, com o objetivo de evitar aglomerações e manter a segurança de todos. Durante os atendimentos telefônicos com servidores da FAS, se avaliada a necessidade do atendimento presencial, este irá acontecer em unidades da Fundação que estão funcionando normalmente, como é o caso dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)”.

 O Instituto Democracia Popular realiza uma campanha para arrecadar ajuda aos moradores das ocupações:

 

 

 

 

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.