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Entre a didática e o automatismo: uma reflexão sobre a didática no processo de ensino-aprendizagem.

“Eu tô  explicando pra te confundir

Eu tô te confundindo que é pra te esclarecer

Tô iluminado pra poder cegar

tô ficando cego pra poder guiar.”

Tom Zé

A profissão de educadorx[1] exige de nós – que estamos em relação e somos, de alguma forma, referência para centenas de seres humanos – uma dedicação de tempo e uma dedicação intelectual que está muito para além dos momentos que passamos dentro de sala de aula. Do preparo das aulas aos diversos momentos que passamos refletindo sobre como mobilizar esta ou aquela turma, muitas vezes deixamos de viver importantes momentos com nossas famílias, amigos, ou mesmo daquelas importantes horas de sono para nos dedicarmos ao processo de aprendizagem que envolve a nós e a nossxs educandxs. Ser educador exige de nós uma constante reflexão e revisão dos métodos pedagógicos  de ensino-aprendizagem e dos exercícios de reflexão que elaboramos em conjunto com estes outros jovens e adultos.

Todos os dias, nos colocamos de frente com uma centena de vivências, experiências, traumas, nossos e dos educandos que se relacionam conosco, com os quais temos que lidar. Cada indivíduo possui uma experiência de vida distinta que rebate com toda sua carga na sala de aula, exigindo de nós uma leitura muito acurada da subjetividade de cada umx delxs para podermos trabalhar com alguma qualidade e resultado. Explico-me melhor. Imagine uma criança a qual os pais são exímios leitores. Esta criança, que cresce rodeada por livros desde muito cedo e que vê circulando em seu cotidiano diversos leitores, tem uma chance muito grande de desenvolver facilidade e gosto precoce pelas letras, apresentando, muito provavelmente, uma facilidade grande com a escrita e a leitura.

Agora imagine uma outra criança, em que seus pais são grandes adoradores de futebol, por exemplo, frequentando estádios, debatendo as mudanças na classificação dos campeonatos, ou ainda jogando e acompanhando pequenos clubes do bairro. É bastante certo que esta criança desenvolva um gosto pelos esportes, adquirindo, muito provavelmente, alguma facilidade com atividades físicas, esportes e nos debates a respeito do tema.

Em sala de aula temos presentes estas duas possibilidades e uma infinidade de outras frequentando , todos os dias, o mesmo espaço. No Brasil, como na maioria dos países do mundo hoje, a educação básica é obrigatória, o que faz com que muitas crianças vão à escola mesmo que sem motivação ou vontade própria de fazê-lo. Ela talvez prefira estar na rua, jogando bola com os amigos, brincando de videogame, ou mesmo lendo uma história em quadrinhos qualquer. Apesar destas diferentes vontades, são colocadas todas – obrigatoriamente, lembremos – todas neste mesmo espaço com um mesmo objetivo: estudar coisas que nós adultos julgamos ser importantes para elas.

Tendo em vista que, como exposto anteriormente, tratam-se de subjetividades diferentes, é inevitável que algumas delas tenham gostos e habilidades distintas umas das outras, mesmo que provenientes de um mesmo bairro ou região. Alguns escrevem, outros pintam, outros falam muito bem, enquanto outros tem a noção de orientação espacial bastante desenvolvida.

Vygotsky[2], autor fundamental para compreendermos o processo de ensino-aprendizagem hoje, chama estas diferentes subjetividades de Zonas de Desenvolvimento Proximal, ou seja, os seres humanos se desenvolvem de acordo com as relações sociais que predominam em seu entorno. Portanto, para que estas crianças desenvolvam o gosto pela ciência e pelo conhecimento, não podemos ignorar nenhuma destas complexidades, mas auxiliar, enquanto mediadorxs que somos, xs

educandxs a desenvolverem suas potencialidades enquanto seres humanos que são, partindo daquilo que lhes é conhecido (conhecimentos espontâneos) para atingir, por fim, os conhecimentos científicos, nosso objetivo.

Este trabalho exige de nós uma sensibilidade muito grande, uma vez que as universidades não nos preparam devidamente para a atividade docente. Não nos preparam não porque não querem, mas porque não podem. Se por um lado em tempos de crise a educação básica e superior são os primeiros setores da sociedade brasileira a sofrer com corte de verba e estrutura, prejudicando enormemente a formação superior de professores que estarão, futuramente, em salas de aula, não podem nos preparar também porque cada sala de aula é única, cada educandx é único, não existindo receitas prontas para lidarmos com esta ou aquela situação específica. Cabe à universidade nos munir de uma carga epistemológica, sociológica e filosófica mínima para que possamos usar mão de conceitos e categorias mínimos que nos possibilitem rever e transformar constantemente nosso trabalho, que está muito para além dos 45 minutos de uma hora-aula.

Em uma prova, por exemplo, cada educandx imprime em uma folha de papel tudo aquilo que conseguiu desenvolver em um período de aprendizagem. Nesta prova, não estão somente letras e números impressos em um pedaço de papel. Pensar assim seria reduzir cada ser humano desta relação a seres inertes e sem expressão própria. Em cada prova há um universo a ser desvendado, estão os erros e acertos de nosso trabalho, estão vidas inteiras. Lá, naquela folha de papel, que nem sempre é tão bonita, esta o resumo de nossa relação entre educadorxs e educandxs.

X educandx, no final deste “ciclo”, recebe esta folha com um número, correspondente ao seu desenvolvimento ou não dentro deste período. Como cada umx delxs tem habilidades diferentes, pode ser que nem todxs apresentem os resultados necessários para avançarem à próxima etapa: a estes cabe uma recuperação. Tais educandos, na maioria das vezes, não recebem a contrapartida de onde erraram ou acertaram, mas baseiam-se neste número, nesta nota, sua capacidade para fazer qualquer coisa.

Me explico melhor. É natural que umx estudante que não tenha a habilidade com a escrita devidamente desenvolvida não vá tão bem em uma prova. Pode até ser que tenha compreendido os conceitos trabalhados, mas a dificuldade em expressar-se pela linguagem escrita fez com que atribuíssemos a este indivíduo uma nota baixa, seguida de uma bronca dxs professores, das mães e pais, enfim, de todo mundo. É aí que está o grande perigo. Estx estudante, frustrado diante de sua suposta incapacidade de aprender, gerada por um trabalho não adequado a suas dificuldades, acaba por sentir-se desestimulado com a aprendizagem, desacreditando de si mesmo e gerando um ciclo crescente do que chamamos “indisciplina” (que é na verdade a rebeldia dxs educandxs com os padrões impostos por nós). Em uma mesma turma, com o passar dos anos, pode tornar-se notável o desinteresse generalizado e a falta de sentido que vêem na escola.

Na música Jesus Chorou do grupo de RAP Racionais MC’s há um trecho que diz: “Você sabe o que é frustração? É máquina de fazer vilão.” Sou obrigado aqui a admitir que nós educadores é que produzimos aquilo que chamamos de “maus alunos”. Mas não há porque carregar este fardo sozinhos, há todo um sistema educacional que pode nos levar a isso. Devido as péssimas remunerações que muitas vezes recebemos, acabamos por trabalhar em duas, três, e até quatro escolas para conseguirmos realizar nossa sobrevivência. O resultado disso é que acabamos por não conseguir dar a devida atenção as particularidades dxs educandxs que estão em relação conosco, não desvendando estes milhares de universos que entramos em contato todos os dias e, por consequência de todo este processo, produzindo mais e mais alunxs – e professorxs – frustrados consigo mesmos. Ao ter que dar conta de várias turmas, correção de provas e todas as burocracias que a escola contemporânea nos impõe, negligenciamos as dificuldades e os conceitos que não foram devidamente assimilados por alguns educandxs. Na verdade, acabamos por “passar o problema pra frente”. A questão é que para desenvolver os novos conceitos, precisamos da base construída pelos conceitos trabalhados anteriormente e, estx mesmx educandx que não conseguiu se desenvolver de maneira adequada no ciclo passado não conseguirá, a não ser com um esforço muito grande, obter resultados diferentes no ciclo seguinte. Estamos em um beco sem saída.

Com os prazos curtos que nos são impostos, as deficiências em nossa formação, enfim, todas as faltas que existem no processo de ensino aprendizagem, acabamos por nos esquecer de que os espaços de ensino devem ser, antes de tudo, um espaço de desenvolvimento humano, onde os potenciais de cada indivíduo são exponencialmente desenvolvidos através das relações deste indivíduo com todos os outros presentes neste mesmo espaço. Deve ser um espaço onde todos, inclusive os pretensos educadores aprendem e ensinam. O grande problema é que, talvez, estejamos mais preocupados com notas, papéis e burocracias do que com cada um dos seres humanos com os quais estabelecemos este belo vínculo que é ensinar e aprender.

 

Referências:

MOURA, Marcilene Rosa Leandro; SANCTIS, Ricardo José Orsi de; SCORSOLINE, Ailton Bueno. A Didática como Instrumento de Reflexão e Mediação: Ilusão ou Realidade? UNISO – Universidade de Sorocaba.

VIGOTSKY, Lev Semenovich. A Formação Social da Mente. Vol. 3. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

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[1]     Optei aqui pelo x como uma forma de possibilitar com que todas as orientações de gênero – masculino, feminino, hetero, cis, trans, etc – sejam representados neste texto.

[2]     Vigotski, Lev Semenovich. A formação social da mente. Vol. 3. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.