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Emocionado

Emocionado, patético, ridículo. Há uma certa etiqueta na demonstração e reciprocidade de afetos. Entre expectativa e desilusão, expressar emoções é um vício de imaturidade. O controle das paixões é a maior virtude de um homem civilizado. E não há maior prova de civilidade para um povo do que o adequado primado da razão sobre as emoções.

Além de uma demarcada fronteira entre povos superiores para com seus inferiores, a razão e o controle dos afetos distinguem também as elites e classes dominantes das classes populares. A representação de figuras de classes populares é sempre feita na caricatura de pessoas que se entregam as suas emoções, reagem com ira, alegria, compaixão, raiva etc. É característica marcante os afetos, que regem suas ações e reações.

Não cabe aqui passar a contrapelo toda a história da filosofia, desde tempos de Grécia Antiga, para mostrar as diversas considerações sobre a racionalidade como a virtude de homens dignos (um pequeno exemplo é o páthos grego, que dará origem tanto ao patético como as patologias. A paixão é doença. Em contraposição, é do ethos racional que surge a ética, a boa conduta etc).

Mas aqui chegamos no nosso ponto: no samba, sobram os emocionados. Uma leitura comum da expressão dos afetos no samba é a figura do palhaço: compositores negros que expressavam nas músicas desilusões amorosas. Situações que representavam o eu-poético como aquele que a mulher não quer, ou que a mulher deixou, e qualquer coisa que representasse a humilhação do compositor perante a sociedade (poucos são as compositoras, ou compositores cujo eu-poético das canções são femininos – Noel Rosa e Wilson Batista serão os primeiros compositores representarem no eu-poético figuras femininas). Nessas canções eles se humilhavam, ao demonstrar publicamente aquilo que cabia ao conforto da casa.

Músicas como Oh seu Oscar, de Wilson Baptista e Ataulfo Alves (1940), onde um homem trabalhador que chega em casa para encontrar um bilhete da esposa: ela o havia abandonado para viver na orgia (descrição comum para bailes e sambas, sem conotação sexual; nem orgia, nem vadiagem). Ou Apaga o fogo mané, de Adoniram Barbosa (1956), cuja mulher sai para comprar pavio pro lampião, e não volta nunca mais. Esses são dois exemplos, embora mais tardios, da figura do eu-poético como otário abandonado.

Muito embora seja uma leitura coerente (principalmente para o período da Primeira República no Rio de Janeiro), perde-se ainda uma questão importante nesta análise. Ela ainda é a perspectiva ontológica dessa ética que vê na demonstração dos afetos símbolos de fraqueza e humilhação.

Demonstrar os afetos não é se humilhar, mesmo que seja visto como tal por elites consumidoras das músicas. A demonstração dos afetos é umas das marcas essenciais do samba; seus encantamentos se misturam entre ritmos e emoções, e por eles, movem os corpos ouvintes e dançantes. Mais representativo dos afetos no samba é Lealdade, samba de autoria de Wilson Baptista e Jorge de Castro (1943); os afetos são postos na mesa, e tratados não como contratos, mas como laços de intimidade e liberdade. “Se o teu corpo cansar dos meus braços / Se o teu ouvido cansar da minha voz / Quando os teus olhos cansarem dos meus olhos / Não é preciso haver falsidade entre nós”.

Noel Rosa, em Último Desejo (1938), coloca os afetos nessa mesma publicidade, e mesmo comunica a ex amada seu próprio sofrimento: “Nosso amor que eu não esqueço / E que teve o seu começo / Numa festa de São João / Morre, hoje, sem foguete / Sem retrato, sem bilhete / Sem luar e sem violão / Perto de você me calo / Tudo penso e nada falo / Tenho medo de chorar”. Mas sua motivação não é viver amores do passado, nem esquecer seus afetos. Seu último desejo é apenas que ela fala bem dele, para pessoas amigas; e que faça sua caveira para aquelas que detesta.

Não poderia falar de afetos sem mencionar a primeira mulher a ter um samba enredo selecionado para um desfile de carnaval. Dona Ivone Lara teve nos afetos o tema mais recorrente de suas canções. Seja para falar de desilusões amorosas, seja para relembrar ou celebrar amores frutíferos. Em parceria com Hermínio Bello de Carvalho, gravado por Nana Caymmi em 1981, Mas quem disse que eu te esqueço é uma de suas mais belas composições.

Os mesmos elementos estão presentes: “Tristeza rolou dos meus olhos / De um jeito que eu não queria / E manchou meu coração / Que tamanha covardia / Afivelaram meu peito / Pra eu deixar de te amar / Acinzentaram minh’alma / Mas não cegaram o olhar”. As emoções e a tristeza sentidas, o choro público, a dor que machuca. Situações constrangedoras, dignas de vergonha; mas somente para aqueles cujos afetos se configuram um sofrimento.

(Para quem quiser acompanhar as músicas indicadas por essa coluna, essa é a lista de reprodução no spotify: https://tinyurl.com/QuandooSambaAcabou. Entre parênteses indico os compositores das músicas, junto com o ano da primeira gravação dela. Quando há evidências de data de composição anterior, indicarei no corpo do texto.)

 

Créditos da imagem que ilustra o texto:

As referências das imagens:
Texto 2 – Samba, 1928 – Di Cavalcante, óleo sobre tela – 63,00cm x 48,00cm (foto disponível em: http://www.dicavalcanti.com.br/anos20/obras_20/samba43.htm

About Lucas Lipka Pedron

Lucas Lipka Pedron Professor de Filosofia e Educador Social, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Coordenador do G-FILO, Grupo de pesquisa em Filosofias Outras do NESEF/UFPR e membro do Grupo de Trabalho e de Pesquisa Histórias das Filosofias/IFPR.