Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesias
Em uma sociedade livre, não existem prisões. Não existem porque todos são livres. Não existem porque não se recusam a coexistir. Colocar um sujeito atrás das grades simboliza muito mais do que que a perda da liberdade. A sociedade inteira se recusou a conversar com um indivíduo, se recusou a conviver com um ser. Se recusou a enxergar um problema que é social: a riqueza e a pobreza, para deslocar para um único ser todo o nosso ódio e mal estar.
Estes dias me surpreendi com um vídeo onde um garoto, de no máximo 15 anos, tinha seus dedos esmagados na porta de um carro por uma homem, maior de idade, que resolveu fazer “justiça com as próprias mãos”. Me surpreendi com o pai que matou o próprio filho por divergir ideologicamente deste. Vi mães e pais agredirem adolescentes que ocupam escolas, danificando o patrimônio público e arrastando para fora aqueles jovens, como se estivessem imbuídos de toda a lógica e razão. Cometem-se crimes e mais crimes como resposta ao crescimento da “bandidagem”, e assim replica-se a violência dia a dia. Quebrar os dedos de um menino que roubou não é praticar justiça, mas tornar-se também criminoso. Chegamos ao fundo do poço, mas nos deram uma pá e continuamos cavando.
Uma sociedade doente é aquela que acredita na propriedade, na meritocracia e na violência. Aquela que diz que “bandido bom é bandido morto”, ou “também, com aquela saia, queria mesmo ser estuprada”. Aquela na qual o trabalho é um fardo, o amor é uma doença, o sexo é opressor, a hierarquia reina e o conhecimento é perigoso.
O Brasil atinge hoje um contingente monumental de pessoas encarceradas. Somos a Quarta população carcerária do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, em sua política neoliberal fascista, Índia e China, dois gigantes populacionais. No Estado de São Paulo o quadro é ainda mais grave. São 163 935 pessoas encarceradas de um total de 473 626 nacionalmente, pouco mais de 40%[1]. São números absurdos para um país que se diz uma democracia.
Quando estudei as periferias de São Paulo para meu trabalho de graduação, pude entender um pouco como todo este sistema se desenvolve. Toda uma complexidade de pessoas, culturas, intrigas, opiniões, vidas e vivências eram homogeneizadas nas telas de jornal, nas novelas e na opinião pública (e porque não opinião publicada) como pobres e violentos. Majoritariamente negros, a periferia de São Paulo sempre incomodou os segmentos médios e altos desta pretensa elite econômica do país. Em 1890, a cidade contava com apenas 65 Mil habitantes[2]. Já nesta época, os pobres moravam nas Zonas baixas da cidade, nas várzeas dos Rios Tietê e Pinheiros, e quando chovia e o rio enchia era sempre terrível[3]. A cidade se expandiu e, em nome do progresso, tem expulsado os mais pobres para cada vez mais longe. Em um relato, uma senhora moradora da Zona Leste de São Paulo diz o seguinte:
“Eu morava lá na Mooca, alí foi tudo acabando também, aquelas casinhas que a gente morava lá eles destruiram tudo pra urbanizar a Av. do Estado, e cada vez mais a gente é expulso, expulso, expulso. Eu não era proprietária na época, nós tivemos que entregar a casa onde a gente morava porque os donos foram indenizados, eram italianos, que moravam e trabalhavam na Mooca, na época da industrialização. Aí, naquela época, meu pai comprou o terreno aqui, aí nós começamos a construir aos poucos, eu falava “pai, o senhor comprou um terreno no meio do rio”, “Não, isso vai ficar bom, olha lá a Eletropaulo pôs os postes deste lado, ela tem a segurança”, e a energia chegou, depois a Sabesp, telefone, temos tudo, a casa agora nós não podemos reformar, nem aumentar, porque “será que vai dar certo? Será que eu não vou perder o dinheiro que eu vou fazer isso aqui?” aí fica lá as casinhas tudo se acabando, passa 1, 10 anos e não faz nada, com medo disso aí.”[4]
Este relato mostra que não só os pobres foram sendo expulsos da cidade, como foram e continuam sendo violentados e violados com a conivência do Estado com a falta de estrutura ao não poder reformar uma casa por medo de perdê-la, ou seja, não são amparados e são impedidos de fazer por si mesmos. Se pararmos pra pensar, o processo é muito mais violento do que a dor física de um tapa na cara dado por um policial, ele é subjetivo, mexe com laços e vínculos de pertencimento ao bairro, ao mundo, à sua classe. A sociedade inteira está sendo violenta com os pobres, com os negros, com os periféricos mas é a resistência deles, a sua luta por sobrevivência que é sempre destacada como violenta, terrorista. O terror invade os lares pelas telas de TV, que ressaltam os altos níveis de periculosidade do cidadão “marginal”. É neste exato momento que o debate se acaba, a conversa se perde, a troca de ideias não acontece. Com medo da periferia, decidimos excluí-los, atacá-los mais uma vez. O massacre se torna legítimo, a tortura é uma alegria, e a morte cotidiana. Cidadãos se armam contra cidadãos – armados com ofensas e revólveres – decidem que vão prendê-lo, decidem que vão matá-lo e se negam ao debate, negam mesmo a coerência de qualquer argumento. Se negam a ser livres e a deixar livres. E decidem dar muito lucro às grandes empreiteiras, imobiliárias e empresas privadas de segurança interessadas naquela área.
Lembro-me muito bem de minha infância, no bairro de Cidade Tiradentes, São Paulo. Certa vez, roubei um pacote de bolachas das mais caras, daquelas que eu morria de vontade de comer e das quais os meus pais não tinham muita condição de me dar. O segurança viu, me levou para um canto do lado de fora e me bateu muito. A bem dizer, foi uma tortura das pesadas, pensando que se tratava de uma criança de 11 anos. “A justiça foi feita”, diziam. “Esse daí nunca mais rouba na vida!”. Mas meu sentimento, naquele dia, não era de aprendizado, era de ódio. O que eu mais queria era conseguir uma arma e me vingar do maldito segurança. Mas me restringi a chegar em casa e inventar uma briga na rua. O problema do roubo não foi resolvido, mas replicado por meio da violência. Por muita sorte – talvez por não ter a pele negra – não fui detido naquele dia.
Quando decidimos prender alguém decidimos pôr uma marca em uma pessoa que não se apaga em toda sua vida. Decidimos evitar o contato com o outro por medo de nossas próprias contradições. É se recusar a ensinar, se recusar a sobretudo aprender. É o ápice do individualismo, do egoísmo. É o que há de pior no ser humano. Por isso a depressão se torna a doença contemporânea, nunca somos realizados, nunca somos bons o suficiente. Somos muito sozinhos! A modernidade está posta e está longe se acabar. Temos que resolver estes problemas burgueses que nos foram impostos, escolher entre a barbárie e algo diferente. Não somos livres, não somos justos, somos uma sociedade doente e opressora ao extremo, onde o Estado declarou guerra, há muito tempo, aos pobres, aos marginais, aos excluídos. Temos que resolver o problema da igualdade, temos que resolver o problema da liberdade e da justiça. Antes que o tão aclamado “fazer justiça com as próprias mãos” nos coloque na mais completa barbárie.
[1] Fonte: Ministério da Justiça – dez. 2009.
[2] AZEVEDO, Aroldo Edgard de. Subúrbios Orientais de São Paulo. Tese de concurso à cátedra de Geografia do Brasil. 1945.
[3] SEABRA, Odette de Carvalho de Lima. Os Meandros dos Rios Nos Meandros do Poder: Tietê e Pinheiros: A Valorização dos Rios e das Várzeas na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado defendida no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. 1987.
[4] AVANZI, Kauê. Reflexões sobre Natureza, Espaço e Geografia no Jardim Pantanal/SP. Trabalho de Graduação individual Defendido pelo Departamento de Geografia da FFLCH/USP. São Paulo. 2013.