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Em tempos de cólera – Andar com fé eu vou, pois a fé não costuma faiá

Por Mário Luiz Costa Jr.

 

Gilberto Passos Gil Moreira, nascido em 26 de junho de 1942, médico formado pela Universidade da Bahia, precursor da Tropicália, influenciado por João Gilberto, Dorival Caymmi, Chuck Berry, Bob Marley, Luiz Gonzaga, dentre outros. Dedicou a vida, e ainda o faz, à arte, à música e às manifestações culturais. Gil deveria definir-se como um verbo, como Caetanear, ou, num estilo musical de tão próprio e único que é este ser baiano. Um homem de ironias, idiossincrasias, sonoridades, brincadeiras e de fé. Simplesmente, Gilberto Gil.

Gil, professa a espiritualidade em suas canções na força presente da luz, no mistério divino, naquilo que rege as transformações, na maestria do oculto, dos desígnios inexplicáveis da vida. Na tentativa de alcançar o nirvana, a libertação espiritual, do homem além do homem, como explica Friederic Nietzsche, na eterna reconstrução, abandono e ressignificação de si. De joelhos “se eu quiser falar com Deus/Tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a luz/Tenho que calar a voz” (Se eu quiser falar com Deus – 1982).

Simples, humilde, temente, sem barreiras, amarras ou grilhões, a energia que está no candomblé, na umbanda, no evangélico, católico, hindu, mulçumano, dentro de cada pessoa, neste momento da prece tentamos ouvir a serena voz e o som do silêncio nem sempre tão claro e de fácil compreensão. Quanto mais para tempos sombrios, de mudanças, crises e de certa desesperança, para o Dr. Gilberto não há outro remédio, é tiro e queda, basta andar com fé, pois está não costuma falhar, jamais.       

Para este prolixo escritor, como bem diz meu bom amigo Everton, enrolei, procrastinei, enchi uma bela tripa de porco com temperos e carne, filosofando e viajando na maionese, para falar desta da composição: Andar com Fé. É verdade, careço de um pouco de laconismo espartano. Entretanto, rituais devem ser respeitados dentro do místico-religioso e, também, na escrita. Talvez, bem desse nosso jeito de entender o mundo “até que nem tanto esotérico assim” (Esotérico – 1982).

Andar com fé está no disco Um Banda Um (1982) que traz canções como Afoxé é, Esotérico e Drão, alegre, descontraído, um Gil que procura encontrar os trilhos da felicidade. Se Drão fala da separação de Sandra, mãe de Preta Gil, em que o músico enfrenta seus medos, encara os demônios internos, “os pecados são todos meus/Deus sabe a minha confissão/Não há o que perdoar”, aquilo que se faz no escuro, revela-se na luz. Andar com fé aponta para o horizonte na busca da ressignificação do eu.

Na primeira estrofe da canção entoa-se o mantra “Andar com fé eu vou/que a fé não costuma faiá/Andar com fé eu vou/que a fé não costuma faiá” e assim repete-se até o próximo verso, intercalando-se. Gil usa do artifício circular da repetição em que o mote está no refrão e puxa o sentido de reza, oração, vozes incessantes evocando, chamando, para a materialização do pedido. Vá com fé, gana, graça, acredite.

O “Faiá” atenta os ouvidos para o erro de português, no entanto, personifica o pedido da pessoa humilde, desprovida de bens, a  fé e a certeza da oração, por ser quem é, do jeito que é. Apenas com a crença e o  destino as mãos trabalha de sol a sol, colheita em colheita, vaga de romaria em romaria, o sertanejo e o vaqueiro de Luiz Gonzaga “xote, maracatu e baião, tudo isto eu trouxe no meu matulão” e que tanta coisa cabe numa bolsa.

“A fé tá na mulher/A fé tá na cobra coral/Ô-ô/Num pedaço de pão”, e assim a crença materializa-se na imagem da Nossa Senhora, da mulher que é o desejo no amor e árvore da vida, nos medos e anseios na cobra coral que pode ser a venenosa ou a cobra falsa, no pedaço de pão que mata a fome diante da seca que castiga o sertão, agradecer pela comida – Deus lhe abençoe meu senhor. Segue teu caminho e não olhe para trás.

“A fé está na maré/na lâmina de um punhal/ Ô-ô/Na luz, na escuridão” o pescador desbravando o mar feroz e do peixe que é o alimento, ou, na alternância do momento menor para a situação favorável, navegar/viver no inconstante. A água também representa os sentimentos, as emoções escondidas, a maré que pode virar. A lâmina do punhal e a luta cotidiana para desviar dos desalentos a lâmina que entra ou a que desvia tanto representa vida quanto a morte. “Na luz, na escuridão” em todas as situações ela não o abandona, na alternância contínua de momentos.       

Gilberto Gil continua entoando o refrão a cada nova estrofe, apesar de curta, concisa e com vários significados presentes em cada palavra. “A fé tá na manhã/A fé tá no anoitecer/Ô-ô/No calor do verão” a oração ao pé da cama antes de dormir em que faz a leitura moral do dia e se tudo deu certo ou mesmo saiu como o planejado, ao acordar temos mais um dia para viver em que as esperanças renovam-se, novamente dia e noite, equilíbrio, bom e mal. O verão, praia, diversão, carnaval, o astro rei queimando à pino. Nunca fui a Bahia, mas deve ser maravilhoso passar a essa estação lá, sentir a presença do divino na alegria, no imaterial, nas manifestações populares e culturais, filhos de Gandhi, Capoeira, enfim.

“A fé tá viva e sã/A fé também tá pra morrer/Ô-ô/Triste na solidão”  se por um lado representa esta grandiosidade, elevação do ser, força moral e ética, maravilhas mil, por outro a prece não atendida de quem perde o passo no caminho, à medida. Àqueles que cometem atrocidades utilizando da crença do povo como motivo torpe. Posso citar as cruzadas, a inquisição, João de Deus e tantos outros que usam da fé com intenções espúrias, pois a fé cega, faca amolada.

“Certo ou errado até/A fé vai onde quer que eu vá/Ô-ô/A pé ou de avião/Mesmo a quem não tem fé/A fé costuma acompanhar/Ô-ô/Pelo sim, pelo não”, Gilberto Gil explica que não há uma exclusividade na fé humana e estando presente em todos as situações na riqueza e na pobreza, até quem não crê ela costuma acompanhar e na dúvida vá com fé, como dizia Sabotage “ Deus ajuda/é verdade/Vai na fé/Não na sorte”. Naquilo construído intimamente ao longo da jornada, que não acontece apenas pela força do acaso, mas dentro de bases sólidas, principalmente, na esperança e certeza que a maré pode virar, apesar dos tempos de cólera.

Não há como descobrir o que passa na cabeça do artista no momento da composição, são caminhos estranhos, não é uma inspiração que encarna o ser ou uma entidade e milagrosamente a música acontece. Quem sabe, para Gilberto Gil, seja assim, de tão simples que possa parecer. A fé algo tão pessoal tem vários significados, distintos a cada pessoa, um artifício para o caminho parecer menos amargo, para dar sentido, o farol distante que nos guia, uma doce ilusão, a verde esperança… Não sei. Contudo,  anda com fé meu povo entoa este canto, vista-se com o manto, vai levanta e anda, porque todos os dias nascem deuses, pois essa, a fé, não costuma faiá, Salve Gilberto Gil.

Fontes:

 

 

 

 

About Mario Luiz Costa Junior

Jornalista e Músico, integrante colaborador do Parágrafo 2. Cronista urbano e repórter de cultura e sociedade, tem como referência os textos literários e jornalísticos de Gabriel Garcia Márquez e Nelson Rodrigues, da lírica de Cartola e da confluência de outras artes, como o cinema, no retrato do cotidiano no enfoque da notícia. Acredita que viver é um ato resiliente no caminho de pedra para a luz.