Últimas Notícias
Home » colunistas » É tempo de Banzo

É tempo de Banzo

Texto escrito com a colaboração de Amanda Benedetti e João Rodrigues.

 Ai que saudade

Sinto do meu grande mestre

Se aqui ele estivesse

Isso não acontecia

Todos vocês têm no peito uma Paixão

Mas paixão igual a minha

Essa não existe não

Trago no peito as marcas da escravidão…

Dos acoites das senzalas

Das noites de solidão

Era um banzo doença de nostalgia

Negros vindo pela sorte

Ou mortos na travessia

Saudade eu tenho

Lá de casa onde morava

Saudade eu tenho

Do reinado onde reinava

Mesmo sem poder ter casa

Retratei em ladainha

Mestre João Grande

Ilustração: Enéas Ribeiro. 

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

Este texto começa com uma advertência aos desavisados. Não se trata de um relato histórico, nem mera curiosidade. Escrevo aqui sobre um sentimento antigo, mas ainda e constantemente presente em cada beco e viela deste país, que possui a maior comunidade negra fora da África, que foi o último da América a abolir a escravidão legal, e que ainda hoje não lida com as marcas de mais de 300 anos de racismo estrutural e desigualdades sociais crescentes, que tem cor, gênero e classe. Este texto teve sua concepção desenhada em 13 de Junho (dia de Exú), mas tomou corpo após mais um jovem assassinado por policiais na Zona Sul de São Paulo. Também não me proponho a fazer uma leitura meramente religiosa, pensando que cada linha de umbanda ou Candomblé possui referências e trabalhos diferentes a respeito dos temas aqui tratados. Olhando para o passado, busco refletir sobre o momento e as cosmologias do presente, e do momento difícil em que estamos explicando a realidade por meio de alegorias. Começo com uma frase, a do título: vivemos tempo de Banzo[1].

R. L. James, em seu livro Os Jacobinos Negros explica que o tráfico negreiro foi um empreendimento extremamente lucrativo e fundamental para a industrialização e desenvolvimento econômico dos países europeus colonialistas. Ser retirado de sua terra, separado de sua família, forçado a batizar-se em uma religião e falar uma língua desconhecida, ser estocado como mercadoria nos porões de um navio negreiro, sabendo que sua liberdade havia acabado, obrigado a viver de acordo com os caprichos de alguém que tivesse dinheiro para comprá-lo. James faz a descrição de um outro lado de um empreendimento comercial extremamente lucrativo para os países europeus, mas que desestruturou sociedades em dois continentes: África e América:

 “Nenhum lugar na Terra (…) concentrou tanta miséria quanto o porão de um navio negreiro. Duas vezes por dia, às nove e às quatro horas, eles recebiam comida. Para os traficantes de escravos, eram artigos de comércio e nada mais. Um capitão, que havia sido apanhado pela calmaria, ou por ventos adversos, ficou conhecido por ter envenenado sua carga. Um outro matou uma parte de seus escravos para alimentar com a carne deles a outra parte. Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; desatavam suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta. O que podiam fazer esses homens de remotas tribos do interior, no mar aberto, dentro de um barco tão complexo? Para avivar-lhes os ânimos, tornou-se costume levá-los ao trombadilho e obrigá-los a dançar. Alguns aproveitavam a oportunidade para pular ao mar gritando em triunfo enquanto se afastavam do navio e desapareciam sob a superfície.”[2]

            Eis o Banzo. A perda total da energia vital, uma angústia e uma nostalgia tão profundas que matavam. Mas não se trata necessariamente de luto ou melancolia, no sentido descrito por Freud[3]. É algo muito mais profundo. É a perda total das referências, dos vínculos com os ancestrais. Tudo o que se conhece até então morre, e é-se imergido a uma realidade insuportável, é a “tristeza do infinito” que acompanhou a existência dos negros escravizados que construíram com sua vida e sua morte isso que chamamos de Brasil por mais de trezentos anos até hoje. O Banzo de hoje é o genocídio de negros e pobres, a moradia precária, a falta de renda e trabalho. É o fim dos direitos e o autoritarismo crescente. As periferias brasileiras o conhecem muito bem, e há diversos casos e relatos de conhecidas e conhecidos que “morrem de tristeza”.

            Essa história, no entanto, tem um outro lado. Na cosmologia Iorubá na África, cada um dos orixás que hoje conhecemos estava vinculado a um ancestral comum a toda aquela comunidade ou tribo. O culto a Omulu, Iansã, Xangô, Yemanjá ou qualquer outro, era associado à ancestralidade daquela comunidade, e, diferente dos referenciais cristãos que veem o divino como a bondade pura, os orixás são a representação das contradições e incompletudes do humano[4]. Mas, ao ser embarcado a força em um navio e perder repentinamente todo o vínculo com sua família e comunidade, como cultuar os ancestrais?

            Exú é uma alegoria importante para compreender este momento, que pode ser de morte e de fim, mas também da criação do novo. Responsável por abrir, fechar e guardar os caminhos, ele cria desequilíbrios onde parece haver inércia, colocando em movimento situações que pareciam estar condenadas a permanecer como tal pela eternidade[5].  As comunidades que reverenciavam, cada uma delas, seu orixá, passam a uni-los em uma única cosmologia, cultuando-os como deidades que se compõem umas com as outras. Assim, ao chegar ao Brasil, os negros escravizados e impedidos de reverenciar sua religiosidade e ancestralidade (que são aqui uma coisa só), a recriam através do candomblé, da capoeira, da resistência nos portos de desembarque, nos quilombos. É Zumbi, é Dandara, é Marielle. Como diz James: “Ao contrário das mentiras que foram espalhadas tão insistentemente sobre a docilidade do negro, as revoltas nos portos de embarcação e a bordo eram constantes.”[6]

            Neste sentido, Banzo é o que se sente ao ver irmãos negros e pobres sendo vítimas preferenciais da pandemia. A cada Guilherme, João Pedro, Aghata covardemente assassinados pelas forças policiais. A cada ato e discurso fascista e racista do presidente. Mas, a tristeza, o luto, não podem ser transformados em medo, em inação. Sei que este sentimento é partilhado com cada favelado, cada indígena, cada mulher, cada membro oprimido por nosso sistema social racista. O Banzo dói, lá no fundo de cada mãe que perde um filho nas mãos do Estado genocida brasileiro. Só dói mesmo. Deivison Nkosi, em seu texto O pênis sem falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo, mostra como a violência estrutural contra a população negra, em especial os homens negros, tem a ver com a construção de uma masculinidade negra referenciada no narcisismo do homem branco, que projeta no negro “A outridade de suas próprias castrações e recalques”[7]. E continua.

(…) a truculência policial não é sinal de despreparo, mas expressão sistêmica de uma instituição preparada e socialmente autorizada a violentar e matar seletivamente. (p. 99) (…) estaremos brincando de democracia se todo este debate se resumir a oficinas de cidadania para a sensibilização dos “maus policiais”” (p. 100)

            Transformemos momento em fogo pra luta, em faísca que acende pavio e ilumina a escuridão. É necessário abrir e trilhar novos caminhos. Afinal, é da escuridão da noite que se faz o clarão da aurora. Que o Banzo venha junto e se transforme em Zanga.

 

[1]     https://www.geledes.org.br/banzo-um-estado-de-espirito-negro/

[2]     JAMES, C. R. L. James. Os Jacobinos Negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Boitempo. São Paulo. 2010. p. 23.

[3]     Resenha de Freud, Sigmund; Kehl, Maria Rita; Peres, Urania T.; Carone, Modesto e Carone, Marilene (tradução de Marilene Carone). São Paulo: Cosac Naify, 2011, 144 p. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000300016&lng=pt&tlng=pt

[4]     https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/orixa-exu-tem-sua-imagem-desmistificada-como-ser-do-mal-e-assustador/

[5]     https://www.jornal.ufg.br/n/112452-as-representacoes-de-exu-de-orixa-a-egum

[6]     JAMES, C. R. L. James. Os Jacobinos Negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Boitempo. São Paulo. 2010. p. 22.

[7]     NKOSI, Deivison James. O pênis sem falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. In: Feminismos e Masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a Mulher. Cultura acadêmica. São Paulo. 2014. p. 86.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.