Não me pergunte por quê. A menos que você queira mudar meu humor para uma xícara de café frio. Leva tempo, quando estávamos confinados por dois anos seguidos, para voltarmos imediatamente à vida social. Quero esquecer esse pesadelo invisível. Deixe-o em um canto empoeirado da minha memória. Isso é o que se faz quando se quer seguir em frente sem vacilar. Quem gostaria de pensar em tal período? Se falamos sobre isso ainda é porque acabamos de acordar das lesões frescas. Eu me sinto deprimido só de pensar nisso sem o mar na ponta dos dedos.
Já se passaram duas semanas desde que peguei o ônibus. Sozinho, como um lobo sedento de novas aventuras. Tive que usar a máscara novamente. Outros perderam entes queridos. Eles ainda atravessam o túnel escuro e misterioso do luto. Mostra a fisionomia desses rostos, está marcado nos rostos deles. Não há necessidade de entrar em detalhes sobre um assunto que todos conhecem os detalhes, mas se recusam a falar. Não me pediram o cartão de vacinação. Eu o tive bem à mão, no meu bolso direito. O ônibus acelerou na noite escura. Eu dormi, sem roncar. Ultimamente, tenho dormido muito, por causa do confinamento, creio. Tenho o sono leve e fácil agora, por causa do tédio, da pandemia; ou do tédio da pandemia.
Sol
O sol já não tem o mesmo gosto em Santos que parece, não tem mais a mesma doçura. Não é mais o testemunho eterno da vida em fuga. Aquele que te garante que o mundo é um lugar seguro. Tornou-se uma necessidade que prova que as pessoas respiram em seu buraco, mesmo que as ruas estejam vazias.
Esta manhã, o sol mais uma vez nos honra com sua santa presença. Não como de costume. Eu me viro na minha cama. Observo, com um olhar discreto e distraído, seus raios fracos que tentam, timidamente, penetrar em meu quarto. Para iluminar minha existência vacilante. Há uma outra cama no quarto. A de um amigo que tem de dividir o quarto comigo. Ele vem na próxima semana. Ainda a vida estudantil que será retomada. Desta vez vou ver caras de verdade. Espero que não seja por trás de máscaras. De qualquer forma, não por muito tempo.
Em alerta
Parece que estamos na reta final da pandemia. De qualquer forma, espero que sim. Vamos esquecer esse pesadelo de uma vez por todas. Não é fácil quando consideramos os fatos. Até que o tempo queime nossas memórias mais pungentes, só podemos nos jogar no presente para tentar dissolver a dor. A das belas lembranças que desapareceram com nossos entes queridos. A das más lembranças adquiridas durante o período de confinamento.
Dá dor de cabeça, esperando a vida voltar à normalidade. Nós nos perguntamos, animados, se o gosto das coisas vai alterar. Alerta aos nossos sentimentos e desejos. O vírus perseguiu nossos sentidos. Quanto mais ele se arrasta, menos respiramos. Adoro o cheiro de comida por volta das 11h10, na UNIFESP. Sinto falta de não mais sussurrar baixinho: “Apresse-se, professor, a comida nunca espera por um estômago vazio”. O prazer de sentir a sociedade girar e que fazemos parte dela.
O sonho…
Começa com rotina, tédio, depois a febre de uma vida perdida sobe à nossa garganta. Somente os sonhos podem nos ajudar a respirar. Eu me movo o máximo possível para enganar o tempo. Para provar a mim mesmo que viver em confinamento não é um jogo suicida.
Quando ando por Santos, entendo rapidamente o quanto as pessoas estão cansadas de serem trancadas duas vezes em casa. Encontramos aqui, em cada esquina, um cantinho do prazer. Nós sentamos aí para matar o tempo. Tome uma bebida fresca. Rindo da vida com entes queridos ou familiares. De qualquer forma, agora, aqueles que ainda estão de pé. O velho sonho da humanidade. A vida pode ser uma vasta fonte de crises. Rir disso, de vez em quando, é a única maneira de evitar tédio.
A água
Só a água pode me acalmar. Mesmo assim, não vejo o mar há quatro anos que moro no Brasil. Santos está cheio de mar. A cidade está repleta de praias, de areia fina.
Começo a caminhar esta manhã. É domingo. Caminhei pela longa Avenida Conselheiro Nébias que leva à praia. Forte brisa que varre o pé dos prédios. Chego a algumas centenas de metros da praia. Acabei de passar pelo canal 4. Pessoas, principalmente pessoas maduras, timidamente se preparando para entrar num novo dia. Esses bares ao ar livre já os estão recebendo. Eles tomam café da manhã, ainda com olhos pesados, cansados. Mas o dia provavelmente será regado com cervejas, caipirinha e água de coco.
Na praia, as pessoas andam, se misturam, se entrelaçam. A maioria é muito madura. Eu tinha sido avisado de que esta cidade era um paraíso para aposentados. Pronto, tenho minha prova! É incrível que eles sejam tão calmos e desinibidos no visto do sol. Ninguém é julgado por sua aparência quando o sol, o mar e a brisa são os únicos luxos para se contentar e desfrutar.
Caminhei serenamente pela praia com os pés na água, agradavelmente fria, e minha pele sob o sol morno da manhã, acima de tudo, com olhos estranhamente errantes. E, na areia fina, esparramada como um belo campo de prazer, jogamos futebol, vôlei, futevôlei, tamboréu. Também encontramos alguns corredores isolados, algumas famílias risonhas e música que estava um pouco no ar agradavelmente tépido.
Terminei minha caminhada sabendo que, do outro lado do mundo, a guerra afeta o dia a dia das pessoas. Eu queria me afastar um pouco de tudo. O mar é um excelente aliado para isso. Eu vi a guerra toda a minha vida. Não só esta que se passa na Europa agora e que toda a gente parece ter na ponta dos dedos, na tela de um smartphone. Também todas aquelas que os ocidentais provocam no resto do mundo, no Oriente, na África, até na América, para satisfazer seu ego e saciar suas loucas ambições.
Enfim, prefiro mil vezes a esses velhos, os pacíficos aposentados que encontrei nesta praia brasileira aqui em Santos, que se contentam apenas com o sol, o mar e uma boa brisa. Aos velhos selvagens que provocam guerras pelo mundo.
Eu nunca vou ter tédio de observar os velhos pacíficos! Parece para mim.
Carlile Max Dominique Cérilia