Perfil
Margot Brasil, uma das pioneiras na locução de Rock nas rádios curitibanas
A tarde corria tranquila até que o telefone toca. Do outro lado da linha, de maneira objetiva e nada alarmante, a voz avisa:
– Olha, a Cássia Eller está chegando na rádio, você vai fazer uma entrevista com ela.
Cambaleante a locutora corre para a sala do coordenador e produtor José Crespo e exclama:
– Zé, a Cássia Eller tá chegando aqui!
– Tá, e daí? – recebe como resposta.
– Como e daí, vou ter que entrevistar ela, só me avisaram agora, em cima da hora! – retruca a jovem recém chegada à rádio.
– Ué, você não queria ser locutora menina? Vai lá e desenrola, é tua chance de aprender.
Crespo estava certo. Não havia saída, era respirar fundo e pensar rapidamente em perguntas para entrevistar um dos maiores expoentes do rock nacional. Uma folha de papel, uma caneta e uma vasculhada no conhecimento adquirido durante anos lendo revistas e livros sobre música, além das lembranças dos shows em que Cássia Eller, toda descabelada, cantava com sua voz visceral alguns blues de Ella Fitzgerald, Jimmy Page, entre outros.
Quando Cássia Eller entrou no estúdio não foi fácil esconder o nervosismo, afinal não é todo dia que se entrevista um ídolo. De frente pra cantora, em meio às perguntas, Margot Brasil, jovem locutora que debutava em entrevistas na Rádio Estação Primeira 90.1 FM, com vinte e poucos anos de idade, regulava o volume da mesa de som com uma das mãos e, com a outra, segurava um armário de metal. A posição estranha em que havia se colocado era pra disfarçar a tremedeira, facilmente perceptível se as mãos ficassem à vista. Apesar da responsabilidade de fazer sua primeira entrevista com uma artista do nível da Cássia Eller, Margot se saiu bem. A experiência a deixou fortalecida e confiante, atributos que seriam essenciais nos mais de vinte anos de rádio que teria pela frente.
Seu amor pelo dial começou no fim da década de 1980. Em uma tarde, enquanto lavava louça o irmão Cristiano sintonizava algumas rádios FMs. De repente a surpresa, uma frequência ousava tocar Rock N’ Roll nas ondas curitibanas, feito inédito até então. “Eu estava na cozinha, lavando louça e, de repente, o Cris me chama pra ouvir uma rádio que ele tinha achado, eu não acreditei, estava tocando Rock the Casbah do The Clash. Fiquei de boca aberta porque aqui nenhuma rádio tocava isso”, lembra Margot. A predominância nas FMs de Curitiba era das rádios popularescas, nada de rock pra geração rebelde. Mas a Estação Primeira, encontrada pelos irmãos naquela tarde, era distinta. A rádio tinha ido ao ar em 1986. Décima primeira FM a disputar um mercado cada vez mais competitivo, a nova emissora pretendia atingir a classe “A” e o público jovem, “mas com um compromisso de verdade e qualidade”, como dizia seu diretor, Hélio Pimentel, ex empresário do casal Baby Consuelo e Pepeu Gomes. A Estação Primeira era uma rádio diferente, com várias locutoras mulheres, era um achado em meio ao marasmo da FM em Curitiba.
Margot e o irmão ouviam muito rock, adoravam a cena punk e costumavam trocar os discos da mãe em lojas como a “Raridade Discos” para ter acesso ao que saia de novo no universo do Rock N’ Roll. Ouvir a Estação Primeira tornou-se rotina.
Testes
Em 1992 a Estação Primeira abre vaga para a contratação de uma nova locutora. “Meu irmão ouviu a oferta na rádio e me chamou pra eu tentar a sorte. Na hora fiquei com receio, mas acabei topando”. Na frente da rádio, no dia do teste, a fila era intimidadora. Horas depois, chegava a chance de entrar para o seleto time de locutoras da Estação. A seleção pra vaga abrangia fazer uma locução, dar uma notícia e ler um texto sobre uma banda. Margot precisou ler sobre a banda Hüsker Dü, uma péssima grafia pra pronunciar, “na hora saiu um rusquer du”, lembra, fato determinante para sua reprovação.
Chegando em casa sentou, pensou e pensou de novo. Tinha decidido que iria entrar pra rádio a qualquer custo. E se o problema era a locução, aprenderia a fazer, mesmo sozinha. Se trancava no quarto todos os dias durante uma hora. Com um pequeno gravador Gradiente gravava as locuções e imitava as locutoras pra pegar o tom de voz, a pronuncia do nome das bandas e das músicas.
– ZYD 404, 90.1 Megahertz, Estação Primeira – Uma frequência à frente do seu tempo!
A locução que saia do quarto no bairro Bacacheri era feita, no início, secretamente. No entanto, depois de pouco tempo, toda a família sabia, fato que virou motivo de chacota em casa. Nada que tirasse o foco da aspirante a locutora que insistia na ideia e repetia ladainhas radiofônicas durante meses.
Um semestre depois do primeiro, Margot Brasil fez outro teste. Não passou novamente. A banda, desta vez, era Lynyrd Skynyrd e, novamente, a pronuncia fez diferença. De novo o quarto e o gravador Gradiente. Margot ligava tanto pra rádio em busca de novas oportunidades que até as recepcionistas conheciam sua voz. Durante o tempo em que se preparava, Margot trabalhava como vendedora, recepcionista e o que mais aparecesse. Enfim a terceira oportunidade apareceu e, diferente dos testes anteriores, no terceiro foi aprovada.
Infelizmente o sonho durou pouco. “Quando comecei na rádio precisava trabalhar de madrugada e meu filho era muito pequeno ainda. No começo minha mãe e minha avó me ajudavam a cuidar dele, mas depois de um mês não quiseram mais e, por mais que eu argumentasse, tive que sair da rádio”, lembra Margot.
Mas seu destino era o dial e, nas voltas que a vida dá, dois anos depois estava de novo na Estação Primeira. Na época o irmão Cristiano era produtor da emissora e eles precisaram de uma locutora. “Então ele, a Patricia Guebur, a Cris Cachinhos, entre outros fizeram uma reunião e tiveram a ideia de me chamar de novo”, conta. Margot retornou aos estúdios e permaneceu até a rádio sair do ar, dando lugar à CBN.
A Estação Primeira era uma rádio movida a emoção. Os programas eram produzidos muito mais com paixão do que com técnica. O roteiro era escrito em folhas de caderno e os discos eram trazidos de casa para a realização dos programas. “O diferencial era a paixão e a postura da rádio. Nunca vai haver uma rádio como a Estação Primeira, por mais que as pessoas sonhem com isso, não vai rolar. Principalmente porque as coisas mudaram, a geração é outra, as coisas estão muito diferentes hoje. A Estação Primeira ajudou a fortalecer todo um mercado aqui em Curitiba, onde a Drop Dead e a Maha, por exemplo, iriam anunciar, na Caiobá? Não, esse não era o perfil do público consumidor dessas marcas, a Estação Primeira era. Esse era um dos grandes diferencias da rádio. A equipe era muito unida, se entrasse alguém que destoasse do conjunto não durava muito tempo, porque a sintonia entre os funcionários era total”, relembra.
Fazendo história
No dia 30 de abril de 1995 a Estação Primeira saiu do ar. Um baque para toda a equipe que tinha a rádio não apenas como um trabalho, mas como um ambiente familiar. Pouco tempo depois Margot Brasil começou a trabalhar na Alternativa Rock, onde ficou por um ano. Depois dela foi a vez de sua voz se propagar pelas ondas da FM 96,3 MHz. A emissora era referência em divulgar novos lançamentos do Rock nacional e internacional, além de lançar novas bandas de rock, especialmente da capital. Apesar de se chamar 96 Rock, a emissora também dava espaço para o jornalismo e para os esportes, especialmente nas transmissões dos jogos de futebol.
Durante sete anos Margot, com seu vozeirão rouco, adentrava milhares de lares curitibanos. Ao longo do tempo acabou ganhando muitos admiradores. Até hoje guarda, em local especial no quarto, as inúmeras cartas que recebia dos ouvintes. Loira, tatuagens em ambos os braços, piercings e brincos. A imagem passada pela voz de Margot, no imaginário de muitos fãs, não era bem essa. “Quando as pessoas me conheciam pessoalmente tinham um choque. Pela minha voz, muitos achavam que eu era negrona, acho até, que pra alguns, era uma decepção”.
A relação com os admiradores, às vezes, foi complicada. Como o caso da moça apaixonada que mandava duas mil mensagem de whatsapp em uma noite. Ou do rapaz que se internou em uma clínica de desintoxicação em outro estado e deu o telefone da rádio como referência e o nome Margot Brasil como sua esposa. “De repente eu tô na rádio e o telefone toca. Do outro lado uma atendente fala, ‘você é a Margot Brasil? Só queria informar que seu marido acabou de dar entrada na nossa clínica, ele está bem’, como assim? Perguntei”.
Entrevistas
Em uma tarde de sábado, no final da década de 1990, João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão, entra no estúdio. Amargo, se ajeita na cadeira pra esperar o início da entrevista. Ícone do Hard Core brasileiro, Gordo sempre foi, digamos, um pouco “polêmico”. Mas naquela tarde, além da contumaz rispidez, o cantor estava de “ovo virado”.
– Tudo bem João, quero saber se você topa falar sobre tudo ou se tem algum assunto que prefere que eu não aborde na entrevista? – Indaga Margot, de maneira solicita.
– Pra mim tanto faz, só digo uma coisa: aqui, o que vem, vai – emenda João Gordo em tom ameaçador.
O vocalista respondia tudo com enorme má vontade. Desbocado mandou a Gravadora Sony, com quem tinha problemas na época, se fuder várias vezes durante a entrevista. Tudo isso em plena tarde, horário em que muitos adolescentes ouviam a rádio. O encontro desagradável preparou Margot para futuras experiências como essa. E elas vieram.
“Acenda um e ouça o que eu tenho a lhe dizer; Esse é o Planet Hemp e não tenho o que esconder; Fumo maconha sim, mas calma meu camarada; Eles um dia vão ver que a lei estava errada”. A letra da banda Planet Hemp é objetiva e certeira. Na década de 1990 a banda levantava sem censura a bandeira da legalização da maconha. Cantavam e falavam sobre isso em todos os lugares, ou melhor, em quase todos.
– Como é levantar essa bandeira sobre a legalização da maconha? – pergunta Margot.
– A gente não fala sobre isso, esse não é o nosso lance – responde D2.
“Como não falam sobre isso pensei, os caras cantavam sobre maconha no país inteiro e, justo quando a entrevista era pra mim, dizem que não falam sobre o tema”, conta Margot sobre a primeira entrevista que fez com o Planet Hemp, momento em que descobriria que o seu santo e o santo de Marcelo D2 não batiam. “Com o Marcelo D2, foram três entrevistas ruins. É uma coisa de santo que não bate, sabe, é algo de empatia. Além de tudo ele é muito marrento. A última entrevista com ele foi no Lupa Luna, porque eu apresentei quase todas as edições do festival. Fui entrevista-lo e perguntei sobre a música ‘Desabafo’ cuja a letra foi feita por ele e por um curitibano, quase ninguém sabe disso. Aí ele respondeu as coisas básicas numa má vontade do cão e sobre a letra ele disse, ‘não conto’. Aí virei as costas e fui embora, achei uma falta de respeito, uma falta de profissionalismo muito grande”, lembra.
Mas nem todas as entrevistas foram espinhosas, na verdade a minoria foi. “Entrevistei o U2 no Rio de Janeiro no ano 2.000. Os caras são fantásticos, muito simpáticos, adoram brasileiros, querem saber o que a gente faz, o que a gente come. São extremamente acessíveis, não tem estrelismo, uma coisa horrível é o estrelismo, as pessoas não se ligam na condição de ser humano delas. Todo munda tá passível de ficar doente, todo mundo pode perder sua fama, todo mundo pode ficar pobre de um dia pro outro. Tem artista que se acha Deus, sabe?”, enfatiza.
As entrevistas foram muitas. Várias delas por meio do improviso. “Eu era avisada em cima da hora e, como naquela época não tinha o Google pra me ajudar, tinha que me virar”. Pela 96 Rock entrevistou Paul Di’Anno, ex vocalista do Iron Maiden que se recusava terminantemente a falar sobre a ex banda. Já Bruce Dickinson, frontman mais conhecido da banda queria sim falar sobre o Iron, só que na ocasião, foi o telefone que não ajudou. “Ele estava em Nova York e a ligação caia constantemente, caiu três vezes, aí não deu mais, eu ficava tentando e tentando, mas não consegui terminar a entrevista”, conta Margot. O rol de entrevistados é imenso, alguns, no entanto, valeram toda a carreira. “Entrevistei Omara Portuondo, a única vocalista mulher do Buena Vista Social Club, banda cubana muito conhecida no mundo, e a entrevista foi sem querer porque era pra eu entrevistar um integrante da nova geração, e eu era maluca pela Dona Omara. Aí eu e o Tomás Ramos esperávamos pela entrevista depois do show olhando pro camarim de onde ia sair um dos novos membros. De repente ela, Dona Omara em pessoa, abre o camarim e eu quase desmaio, e ela simplesmente nos chamou pra uma entrevista, quase morri do coração”.
Na AM
– Escreva o nome do amado na folha de papel. Dobre e mergulhe-a no mel, que deve estar no prato. Coloque o prato embaixo da sua cama e reze, todos os dias, antes de dormir, pedindo para que ele volte. O prato deve ficar embaixo da cama até o seu pedido ser atendido.
As simpatias eram para os mais variados problemas. Além delas faziam sucesso também a leitura do horóscopo, receitas culinárias e conselhos amorosos. Sua rápida passagem pela AM, na Estação Luz, aproximou a jovem Margot de um público diferente. “O José Crespo chegou e disse de maneira enfática, ‘preciso de duas de vocês pra cobrir a saída de uma locutora da Estação Luz’, ninguém se manifestou, aí ele olhou pra mim e pra Adri e disse, ‘então vão vocês duas’. Aí, quando eu me dei conta estava às 15 h com uma pilha de livros de receitas de bolo, de nomes de crianças, com simpatias e santos do mês. Com vinte e poucos anos eu conversava com senhoras que tinham o dobro da minha idade, pessoas que tinham 30 anos de casadas e queriam conselhos para manter o casamento, o problema é que eu não tinha nada de experiência pra falar com elas”, lembra. Além de bate papo com senhoras Margot colocava pra tocar clássicos da música sertaneja, logo ela, que conhecia apenas Zezé Di Camargo e Luciano. “Falhei na missão”, explica sobre o pouco tempo que ficou na popularesca Amplitude Modulada.
O amor
“Inocentes” foi uma das primeiras bandas de Punk Rock do Brasil. Formada no início da década de 1980 o quarteto vem a Curitiba desde o início de sua carreira. Margot e o irmão Cris sempre ouviram punk e, consequentemente, eram fãs do grupo paulista. Quando se tornou locutora Margot entrevistou a banda várias vezes e acabou se tornando amiga dos integrantes, incluindo Clemente Tadeu Nascimento, guitarrista e vocalista do grupo. “A gente se tornou amigos, eu entrevista ele de vez em quando, ele vinha pra Curitiba produzir alguns discos”, diz.
Os anos se passaram, o casamento de Margot acabou, assim como o namoro de Clemente e os dois se encontraram por acaso no Rio de Janeiro, em Laranjeiras. Na ocasião Clemente tinha ido até a capital carioca dar uma entrevista pro MV Bill. Ali nascia a semente de um relacionamento que já dura três anos. “Tive muito perrengue trabalhando em rádio, mas sem dúvidas tive minhas maiores alegrias por causa dessa profissão. A vida dá muitas voltas e Deus é o senhor de tudo, se é pra ser seu será, acredito muito nisso e minha história com o Clemente é uma prova disso”.
Mundo Livre FM
Em 2008 a Rede Paranaense de Comunicação (RPC) inaugurou a Mundo Livre FM 93,90. Margot Brasil foi a funcionária número 0001 da rádio. Permaneceu na estação por quase 10 anos. Como nas anteriores fez história na frequência. Entrevistou grandes nomes do rock nacional e internacional. Anos depois de entrar na rádio, de ter realizado muito, já que a estação é uma das maiores audiências do dial curitibano – o share de audiência da rádio aumentou 97,5% de janeiro a março de 2011, de acordo com dados do IBOPE- Margot achou que era o momento de receber um aumento salarial, afinal, com os anos somente a reposição inflacionária não é suficiente. Foram quatro anos pedindo um aumento sem êxito algum. Já não era possível pagar as contas com o salário da Mundo Livre, fato que a fez tentar conseguir outro emprego de meio expediente, também sem sucesso.
Depois de quase 10 anos Margot decidiu sair da Mundo Livre. “Não tinha como continuar, eu me senti muito desvalorizada. Não me acho melhor que ninguém, e não sou, mas sei que tenho meu valor como profissional de rádio. Sou cria da Estação Primeira, tenho minha história. Na Mundo Livre eu trazia resultado, dava Ibope. Eu não ia ficar implorando pelo resto da vida”, destaca.
Margot estava infeliz. Hoje guarda certa mágoa, mas segue em frente. Viaja pra Curitiba algumas semanas no mês. Hoje vive em São Paulo onde compra roupas e bijouterias pra revender. Mora com o namorado Clemente mas não consegue ficar longe do filho Roberto e do neto Zaion, por isso está sempre indo de São a Curitiba e vice e versa. Começou a trabalhar, há pouco tempo, na rádio web Claymore mas, por conta das frequentes viagens, preferiu desistir do projeto. “Eu não estava conseguindo entregar um trabalho de qualidade, por isso achei melhor não continuar”.
Margot não sabe o que vai ser do futuro. É claro que seu amor pelo rádio ainda pulsa com muita força, mas está preparada, se necessário for, pra encarar novos desafios. “Eu fui a piada da minha família e dos meus amigos durante três anos, pelo fato de eu tentar começar a trabalhar em rádio, de eu ficar gravando escondida no quarto, ficar ligando insistentemente na Estação Primeira em busca de novos testes. Vivi momentos fantásticos nas rádios por onde passei, me decepcionei também. Mas valeu muito a pena. Então, se eu pudesse dizer algo pra quem lê essa matéria eu diria pra não desistir dos seus sonhos, pra continuar tentando porque uma hora as coisas vão dar certo, o que é pra ser seu, será”, completa.