Por Mário Costa
Às 05h30 da manhã, antes de tocar o despertador, dois ladrões invadiram a casa. Entraram sorrateiros se dirigindo para os fundos da residência, pelas caladas, sem forçar a porta, na fresta da janela rangendo um pouco a ventarola comprimindo o vento num assobio, quase invisíveis na penumbra da noite.
Na cozinha, as garrafas de vinho despidas das rolhas liberavam o sabor pelo ar, as bordas dos copos beijados com restos de líquido no fundo, pratos na pia, numa longa travessa descansava a carcaça do peixe, sobrou-lhe a cabeça e a guilhotina em nossos pescoços. O cenário é a paisagem da última ceia numa tumba sinfônica, entregues por poucas moedas.
No badalar das horas, passos ecoam no assoalho, acordo assustado do descanso noturno, o calafrio corre pela espinha. Envolvo os braços pela sua cintura, no detalhe a pinta preta saliente sobre a pele. Seguro-a forte, enquanto a angústia revira o estômago com um garfo raspando o resto da panela, vasculham as lembranças, as gavetas, os bolsos, as mensagens no celular, as fotos espalhadas pela sala, açoitam a nossa mente e cravam estacas a cada batida do peito.
Cresce a sensação de impotência e a esperança de êxito turva-se com o passar do tempo. Respiro o ar abafado, porém, doce que brota da nuca, dos fios pretos que recosturam o edredom que nos envolve, as mãos se cruzam na transpiração ofegante. O que eles querem de nós? Nada, nada querem, a não ser, o sádico desconforto deste momento.
Avançam as horas sem compaixão da nossa agonia, preso no quarto sem expectativas, somos reféns do acaso, do crime e do pecado, talvez, uma conversa, um diálogo amigável, talvez, seja possível, talvez. Um estado permanente de angústia paira sobre o ar, denso e pesado de se respirar, pensamentos confusos se misturam com os primeiros raios de sol que entram no quarto, o amargo na boca ao amanhecer, quem sabe o nosso último dia sobre esse emaranhado de duas cores que formam nossos corpos?
Leve-me primeiro não tenho nada, nada além dela. A insuportável dor de viver a margem da solidão esvaindo sobre dedos o breve, talvez, o último antes de cada manhã, antes de dormir, sem o alento dos seus carinhos, recostado em teu colo, extasiado e em paz com o mundo que, neste segundo, nos nega, dilatando toda a matéria e o espaço possível, poucos segundos, a certeza do eterno se desfaz, finito. Por que tudo acaba? Porque, tudo acaba, somos finitos efêmeros como chamas sem lenha.
Os ladrões entram no quarto o primeiro aponta a sua cruel arma sobre mim, na minha cabeça, a sua lança caminha em círculos sobre números, correndo, caminhando devagar, se arrastando, transformando, é o tempo nos leva. O segundo me furta em momento que não espero, despido da armadura, levando dos bolsos o pouco e tudo, na entranha do cérebro ou recolhido nos confins da minha alma, derruba num só golpe, é a saudade que bate. Não é uma luta justa. Levanto da cama já é hora de trabalhar, dou um beijo nela e vou. Dois ladrões, o tempo e a saudade.