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Do subúrbio à Febem, muitos homens de bem

“Dizem que quem quer segue o caminho certo, ele se espelha em quem tá mais perto”, Racionais MC’s, O Mágico de Oz.

NARRADOR – Ele escrevia sentado na escada da ladeira. E escrevia. Se era música, poema ou poesia, não sabia. O pai embriagado, jogador de bilhar, brigão e metido a machão. A mãe, dona de casa, preocupada em jogar água no feijão. O pai, alcoólatra desiludido; a mãe, prisioneira de um amor há tempos perdido. Nessa ele escrevia e ia com suas palavras e suas rimas. Sua forma de realidade subvertida. Sentado na escadaria do morro onde rabiscava, exibia e repetia o que via:

PESSIMISTA.

MENINO – “Sou um pretinho a mais, observando a relojoaria da metrópole. Não sou Clark Gable, não. Sou mais um pretinho sangue bom, que quer tomar Dom Perignon. Sem essa de favelado, excluído ou necessitado. Quero mostrar que existo, que estou vivo, em bom estado. Só quero mostrar que nasci… Mostrar que nasci do outro lado ou nasci do lado errado. Um famoso quem?
Nasce Shakespeare! Mas ninguém vai conhecê-lo, pois seu local de nascimento é o dos necessitados. E assim é a vida deste lado, da senhora que fecha o vidro ao me ver pedindo um trocado, consuma o preconceito velado. “É só mais um drogado”, vai pensá, “ameaça do povo assustado”. Mas isso eu não ligo. Não quero ser visto como inocente querendo abrigo. Aqui nas ruas, entre atalhos e trânsito complicado, o tiroteio come pra todo lado. Por isso eu não me espanto. Na minha realidade, violência e muito pranto. Pela manhã, mais um corpo coberto pelo manto. Curiosos em volta e mãe chorando, sabendo que o filho não é santo. O que não quero é chateação. Que vida é essa que eu só vejo aqui de cima, de cima do morro, onde corro, tomo bronca e quase morro? Na minha área todo mundo roda. Se riquinho cai aqui por engano, toma cano. O GPS te mandou pra quebrada, vai encarar a quadrada. Aqui não tem Foucault, não tem Rimbaud, pra chegar aqui é de metrô. A vidraça eu já apedrejei, fui filmado, e minha cara saiu no jornal das 7h todo esticado. Agora já sou estatística, branquinho, pode ficar sossegado, lendo seu Le Monde importado.”

REALISTA.

NARRADOR – Aquele seria um dia normal: gritos, ameaças, pontapés. Ninguém se metia, afinal era briga de “marido e muié”. Aqui todo mundo se empenha. Os problemas resolvidos sem resenha. A desenvoltura do povo, descomunal, não mais que a sobrevivência de um jogo. As pessoas se adaptam bem. Falatório alto comum. Brigas de vizinhos, trivial. Ninguém se impressiona. O único problema é quando algum marido louco, revoluciona, coloca fogo na casa e atinge a comunidade. Aglutinação dos barracos é lenha. O menor sinal de incêndio e está decretada a tragédia…

MENINO – “Um dia ele entrou no barraco, alucinado, todo revoltado, com fósforo na mão e o terror premeditado, tacou fogo em tudo. Tava atordoado. Que besteiras, irmão, não faz um cara apaixonado? Mas nessa fita, certeza, ele será cobrado. Tá tudo anotado. Vai levar dois tiros no peito, tá dado o recado. Aqui no morro não tem fiado. Se tá devendo, não fique esperando ser avisado.”

NARRADOR – O pai estava bem louco aquele dia. Dizia que a mulher o estava traindo com um conhecido do bar, e que descobriu porque um de seus adversários na sinuca fez menção a ela enquanto disputavam a partida. Ela era mesmo mulher bonita, um rosto negro poderoso. Boca grande e olhos de jabuticaba. Os cabelos cacheados e com o corpo que o mais típico estereótipo poderia copiar. Uma beleza do samba, da terra. Uma pérola que o morro tivera o capricho de abrigar. A pérola que o pai queria destruir naquele dia. Com a fúria no olhar e o álcool correndo no sangue. Na loucura, ele acendeu um fósforo, sem êxito, depois outro, e outro. Até que acabaram os palitos, e também a sua força. Bêbado, dormiu ao lado da cama com o cachorro lambendo sua cara, a mãe chorando por suportar tudo aquilo e os irmãos assustados, mais uma noite que avançava…

MENINO – “A vida tem dessas, te dá um pai que você não quer, mas que você precisa amar, porque “se você é filho e não ama, quem é que vai em você confiar?” Numa vida de jogo, álcool e toda zoada, não tem como esperar respeito da família assustada, que hoje vive o desespero de uma tragédia anunciada. Que futuro eu espero encontrar, se cada vez que o tempo passa, pior parece ficar?”.

NARRADOR – Dois meses depois, um cara visita a casa dela, o menino a vê mexendo nas panelas e suspirando:

MENINO – “Ela é santa ou cadela? Machismo! Chega de aquarela. Quer fantasia? Liga na novela. Pra ver um novo mundo, bonito e com passeio turístico na favela, que romantiza as gambiarras atrás do poste, os lixos no chão e ataca com pixos toda mazela.”

NARRADOR – A mãe suspira, mas não se entrega…

MENINO – “Pode ser apenas ilusão, irmão. Ela sonha em sair da solidão. Porque estar casada pode até ser união, mas um mais um só é dois quando há adição, caso contrário, apenas separação.”

OTIMISTA

NARRADOR – O menino pensava em ser poeta. Na vida, ou transformava as palavras ou deixava que as circunstâncias o transformassem no que ela quisesse. Sobreviver? Uma meta, completada aos trinta, evitando treta. A correria das pernas finas dos moleques espertos. Alguns justos, querendo sair da janela, uns nem tanto, cheios de vaidade, iludidos mesmo sem sonho. E enquanto pensava, como sempre, nos seus cadernos, rabiscava…

 

MENINO – “Quantas poesias engavetadas, a serem declamadas, nas favelas e nas vielas, ecoam vozes marginalizadas? Versos que emergem do recôncavo, lá de trás do morro, onde sussurros abrigam estrondos, onde o improviso abraça escombros. Dores como os pelos do corpo, que quanto mais se cortam, mais grossos voltam. A poesia do oprimido, de medo suprimido, que questiona quem é o bandido e alivia o grito escondido. Duma favela estampada, na cara da criança desamparada. Muitas caras que já vi, outras que não mais verei, sempre a pularem janelas diferentes, querendo todos sair daqui. A criançada se diverte com rolimã, esforço de quem sobe, sorriso pra quem desce. Muitas órfãs de pai que conhecem apenas o nome, do abandono e da fome, de quem nunca explicou a partida, de quem ninguém nunca soube da ida. Brincadeiras que alegram, de forma tímida, quem já se acostumou com a subida, palmas de pés e mãos encardidas, pra encarar a ladeira da vida.”

 

NARRADOR – E escrevia os versos enquanto ouvia a correria. Moleques, pés-descalços, botinas e gritaria. Sem tempo para teoria, guardou o que podia. Recolheu os cadernos enquanto sentia a ardência de uma bala perdida. Perdida em uma vida que procurava encontrar algum sentido um dia. Nessa loucura de quem batalha pela vida. Em uma passagem que machuca, bate e é arredia, para a qual nem mesmo as glórias chegam tardias.

 

About Jesse Gomes

Jesse Gomes é escritor, autor de "A Trajetória dos Condenados". Trabalhou em revistas e passou brevemente pelo jornal Gazeta do Povo. Vê nas palavras uma forma de transformação social.