Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
Por Camila Grassi e Kauê Avanzi
Se a forma como entendemos o mundo diz respeito a aquilo que conhecemos e vivemos, a forma como sentimentos o mundo e nos relacionamos com ele e com os sujeitos que dele fazem parte, traz, em cada tempo histórico, possibilidades diversas de construção da experiência amorosa para diferentes grupos sociais.
A forma de amar tem a ver, portanto, com nossas práticas sociais. É a partir delas que construímos as referências que temos e a oposição ou não a estas mesmas referências, entre elas as formas de nos relacionar afetivamente, haja vista que é próprio da liberdade humana produzir história e cultura. A capacidade de transformação marca, assim, o movimento e o eterno refazer-se das práticas sociais, capazes ou não de romper com valores culturais consolidados de uma geração para a outra. Desta forma, enquanto humanos que somos, modificamos as formas de nos relacionarmos uns com outres, agindo e modificando a nós mesmos na medida em que agimos e transformamos o nosso entorno. A esfera amorosa, apesar de ser apenas um dos diversos campos da vida, tem sua importância na constituição do que somos, uma vez que por meio desta forma de interação social podemos tanto ampliar as nossas potências de viver e de agir no mundo com autonomia, como também limitá-las.
Amar alguém como posse não é dado natural, mas amor construído e sustentado por mecanismos sociais e ideológicos. Em diversos tipos de sociedade, tivemos constituições familiares distintas, como nas sociedades matriarcais nos nativo-americanos; nas famílias polinucleares dos Iroqueses; as famílias expandidas e a criação coletiva dos filhos por diversas comunidades do mundo foram estudadas à exaustão pela Antropologia, evidenciando o caráter não natural da família e a não universalidade da nossa família nuclear.
Na América pré-colonial, e mesmo na Europa antiga, diversas formas de amar e de constituir famílias conviviam entre si. No livro Gay Indians in Brazil: Untold Stories of the Colonization of Indigenous Sexualities (Índios gays no Brasil: Histórias não contadas sobre a colonização das sexualidades indígenas), os antropólogos Estevão Rafael Fernandes e Barbara Arisi contam como haviam diversas práticas sexuais e familiares no Brasil anteriormente à chegada de portugueses, tais como homossexualidade, poligamia, transgeneridade e não-binarismo. Os autores chegam à conclusão que a família tradicional brasileira não era homofóbica antes da chegada dos europeus, mas sofreu uma intensa repressão por parte dos colonizadores para se ajustarem às práticas sexuais e familiares europeias, manejando a subjetividade, a afetividade e a corporeidade dos povos que aqui viviam. Na Europa feudal não foi diferente. Quantas mulheres foram queimadas como bruxas por seus hábitos sexuais tidos como promíscuos?
A relação monogâmica enquanto padrão hegemônico do mundo ocidental, surge a partir da estruturação do conceito social de propriedade privada e à necessidade de transmitir os bens de geração em geração sem que estes se perdessem fora de um número restrito de pessoas. Daí a constituição da forma de amor como posse que conhecemos pelos nossos avós e pais, onde o homem provedor se coloca como o proprietário da mulher e dos filhos, ditando os caminhos que estes devem traçar em suas vidas. É bastante comum em nossa geração termos relações domésticas permeadas pela violência dos homens sobre as mulheres, dos adultos sobre as crianças, dos que seguem às normas aos que se desviam destas. Em nossas famílias, é dito como mais valorizado socialmente aquele que mais copula com as regras. Em resposta a esta constituição de família e de amor, muitos em nossa geração se veem seduzidos por uma outra forma de amar, tão ou mais nociva que a da geração de nossos pais e avós: o amor liberal.
O amor liberal, ao dimensionar as relações sob lógica do individualismo e da mercadoria, acaba por fragilizar não apenas os laços sociais, mas também sujeitos que partilham destes laços. As relações amorosas e afetivas adotam um padrão de “mercadorias em alta no mercado das relações” que classificam o belo e o feio, o bom e o mau sexo, entre outras formas que podem construir um olhar depreciativo dos sujeitos sobre si mesmos. A naturalização da desqualificação de si frente a aprovação ou reprovação do outro, diminui o nosso empoderamento e auto-estima. A objetificação das relações afetivas apaga o mundo próprio que cabe em cada sujeito, e forja a lógica de que sempre haverá algo melhor a se consumir no mercado das relações.
Pensemos, neste caso, em aplicativos de relacionamento, tais como o Tinder, Badoo ou Grindr. Temos à nossa disposição um cardápio de pessoas prontas para serem consumidas por nós, e que se fornecem como objeto de consumo com o objetivo máximo de também ter o direito de poder consumir tantas outras que ali se encontram. Chamar esta forma de relacionar-se de superficial é não compreender a amplitude do problema. Na verdade, há algo de bastante profundo quando refletimos sobre o amor liberal, uma vez que estão transpostas, sem nenhuma alteração, as regras do livre-mercado para as relações sexuais e amorosas e, neste sentido, reforçam-se padrões de beleza, masculino, feminino e sexualidade.
Neste processo, a objetificação do feminino e do afeminado, ganham destaque especial, assim como a conotação de sua inferioridade em relação ao masculino. Sob o patriarcado liberal, homens são construídos como aqueles que devem reprimir tudo aquilo que é tido socialmente como feminino em si mesmos. As ideologias da virilidade, da força, do “provedor”, do “pegador”, etc., sobrepõem-se podendo reverberar em um comportamento pouco afetivo e até mesmo violento em relação aos corpos femininos. Dentro desta construção, homens afeminados sofrem violências várias, especialmente por outros homens, exatamente por se aproximarem demais do que é o comportamento e o corpo feminino.
Neste caldo de cultura, a riqueza da diversidade dos corpos, das almas, dos comportamentos, sofre tensões para que se apaguem e remodelem de modo a se adequar à lógica dos corpos e comportamentos padronizados. É neste terreno fértil, que também são ampliados os traços de intolerância, assim como o fascismo neste início de século XXI, onde a pauta do comportamento sexual e reprodutivo é colocada no debate público por liberais e por religiosos atuantes no poder.
A cultura colonialista, patriarcal, machista, racista e xenofóbica é estruturante no Brasil, limitando inclusive as possibilidades de que os sujeitos possam encontrar companheires dispostos em construir uma vivência amorosa plena de companheirismo e liberdade. A lógica de livre-mercado é também a da não responsabilidade afetiva. A capacidade de conexões profundas, diálogo e companheirismo tornam-se limitadas e repletas de preconceito e violência de gênero.
Por isso, gostaríamos de oferecer uma alternativa que não é nem o amor como posse das gerações passadas, nem o amor liberal que agora se impõe: trata-se do amor libertário. Neste terreno, as relações admitem a existência de diversas formas de amar e viver o amor, em múltiplas formas de experiência amorosa, capazes de acompanhar a diversidade subjetiva daqueles que se amam. Eis um sábio provérbio: Amai-vos uns aos outres, sejam essas relações monogâmicas, poligâmicas, binárias ou não binárias, etc., o importante mesmo é o amor. Palavras dos deuses? Deusas? Não importa. O importante é viver o amor em solidariedade, respeitando os limites e possibilidades que cada relação possui. De cada qual o amor segundo suas capacidades, a cada qual o amor segundo suas necessidades.
“Que me importa se a pessoa que amo me retribui este amor, mas, ao mesmo tempo, ama a outra?”. Perguntas como estas talvez fossem mais leves de se lidar, sem o ímpeto padronizante que nos foi imposto pela colonização dos afetos da nossa sociedade patriarcal. O amor pode ser entendido como muito mais que o andar de mãos dadas ou compartilhar nossos corpos um com o outro. O amor de fato libertador é companheiro, amigo, pleno de movimento e de confiança. Amor é e deve ser solidário, empático, coletivo e livre. Por fim, compartilhamos das palavras de Mikhail Bakunin, militante anarquista que, em carta enviada a seu irmão Paulo no ano de 1845, afirma que tudo aquilo que nos emancipa como seres humanos, “tudo que, ao fazê-los voltar a si mesmos, suscita neles o princípio da sua vida própria, da sua actividade original e realmente independente, tudo o que lhes dá força para serem eles mesmos”, pode então ser considerado um amor libertador.
Sobre o sentido de potência que provém do amor libertador, fechamos este ensaio, com o seguinte sentido poético.
A prática do amar
Autora: Camila Grassi
O amor salva
O amor une
Não há força maior
Que nos deixe tão imunes.
O amor é o segredo
Que liga as coisas em profundidade
É energia que alimenta
Nossa essencial necessidade.
Quem haverá de padecer
Se tiver o amor consigo?
Conseguirá
Nas adversidades do caminho
Encontrar seu abrigo.
Amor amante
Amor amigo
Amor é vontade de bem
O amor é o nós
Quando não estamos
-sozinhos-.
Não importa a quem transmitimos
Nossa potência de amar.
Toda forma intencionalmente pura
Será beleza a se frutificar.
Força que ilumina o peito
Fogo de um novo despertar
Somos juntes a magia
Somos a vida a se conectar.
Não somos nada sozinhos
E somos mais fortes
Apenas quando
Potencializamos
Nossa potência de amar.
Referência:
Carta de Bakunin ao irmão Paulo ( 29 de Março de 1845). Disponível em: < https://redeinfoa.noblogs.org/2016/10/o-que-e-amar-por-bakunin/>. Acesso em 22/09/2020.