Coluna Filosofia Di vina
Um dia desses, passando por Pinhais e Colombo, avistei algo raro, raríssimo, quase desci do ônibus para participar: um campinho de jogar bola, não um campo de futebol com marcação, rede e cento e vinte pila a hora. Um campinho grátis, dando sentido social a um terreno baldio, provavelmente fruto da especulação de algum herdeiro safado.
Quando criança, jogávamos em vários pelos bairros da gelada capital. Nosso time era uma seleção, Jorge Vara, esquelético de 1,90, voava embaixo das traves de bracatinga. Na meia, Rodriguinho da Esquina era um verdadeiro maestro, no ataque, Danielzinho Gancho marcava e jogava beijos para uma platéia de capinzal. Digão, o zagueiro, tinha uma trivela do Rivelino. A bola chiava quando ele batia, pegasse na cara, era Cajuru na certa. Servente desde os oito anos, só jogava à noitinha, ou nos domingos, pois, escola, ele só conhecia de passar em frente.
No início do bairro tinha um grupo de meninos que nos odiava, sempre que podiam nos humilhavam, e quase sempre podiam. Não nos humilhavam perto das meninas, pois as meninas, quando não tinham medo, tinham repulsa de nós. Viviam lá, limpos, com casa própria e nunca usavam roupa dos irmãos mais velhos. Tinham apelidos que se explicavam por si só: Cadu, Paty , Jotapê e por aí vai. Bem diferente dos nossos: Vara, Mãe da Zona e Meia Teta.
Numa tarde quente como os infernos, passou o Nepomuceno, o maior dos playboys, usava aparelho nos dentes e tinha piscina em casa. Não que fosse um rico de verdade, mas, perto de nós, que fazíamos vaquinha para comprar gasosa, era um milionário. Passou com seu pai de carro e xingou, sempre ironizando nosso campinho. Não faltaram os dedos e ofensas à sua mãe. No dia seguinte, deram um verdadeiro susto no Vara, fazendo-o correr cinco quarteirões enquanto eles, de bicicletas, gritavam ofensas e ameaças. Vara gritou que nosso time ganhava deles a qualquer hora. Pois bem, o duelo fora marcado.
No domingo, estávamos todos no Campinho da égua, que tinha esse nome pois a égua do seu Geraldo sempre pastava por ali. Nós, descalços, ou com velhos tênis. Eles com coletes e chuteiras. Eis que aparece o Digão, com um par de Kichute novinho em folha, até com os cabelinhos de borracha na ponta.
O jogo foi o famoso pau a pau. Vara parecia ter todos os metros do mundo, Danielzinho Gancho distribuía suas canetas e meia-luas. Do lado deles, jogadas ensaiadas na escolinha do bairro. O jogo acabou num inacreditável 4X4. Combinamos os pênaltis, revezados. Vara pegou, quase no ângulo, o tiro de Napomuceno e isso foi quase uma vitória, gritávamos na sua cara.
O clima tenso. Digão foi para o nosso último pênalti, se errasse, perdíamos, se fizesse, voltariam as cobranças. Digão meteu um chute tão forte, que a bola passou alguns quilômetros acima do gol e desapareceu no matagal. Os sarros, as piadinhas estavam justificadas, éramos inferiores a eles. Digão se ajoelhou e chorou, lágrima e poeira na tarde quente. Heroico, levantou e desferiu a primeira bicuda na boca do estômago do Napomuceno, que caiu sem ar. Era o grito de guerra! Voamos como cães selvagens, Digão derrubava, um a um, os meninos temidos que faziam karatê. Nossa dignidade reaparecia em cada chute aleijador do zagueiro, era quase uma revolução, íamos atrás chutando os restos que sobravam do outro time. Naquele dia aprendemos uma valiosa lição: não há status social que suporte uma bela bicuda.