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Diário de Dominique 6. Último vinho

Eu me tornei, desde que vi meu nome naquela lista da UNIFESP, apenas um fantasma, em uma vida que não me pertencia mais. Conversei com a velha que mora do outro lado da rua, ela não parava de rir e de me bombardear com conselhos sobre a vida no Brasil. Ela insistiu que eu pegasse seu número e me pediu que ligasse quando estivesse em São Paulo. Um gesto de sua parte que me deixou um pouco confuso. Não me vejo ligando para ela apenas para dizer que cheguei bem ao meu destino. Acho que tal coisa é mais reservada aos militares. Eu prefiro manter uma certa distância entre duas cidades e duas vidas, para não ficar preso entre duas histórias de uma vida inacabada. Honestamente, eu gosto de ligar para as pessoas por motivos mais urgentes. Como eu a conheço, ela vai querer que eu conte toda a viagem de A a Z. E, se há uma coisa que eu não posso fazer, é isso. Os detalhes sutis da minha vida, tenho o costume de colocá-los em uma página em branco. Tenho certeza de que esse número vai terminar em uma máquina de lavar, no fundo do meu bolso e, quando eu o encontrar, será ilegível.

Quando morava perto da velha, tive que prestar atenção a certas coisas. Álcool, festas barulhentas e, principalmente, meninas (na sua opinião, todos os lindos solteiros vivem apenas para o álcool e para as meninas). Ela insistiu que eu me casasse antes de ter acesso a esse prazer. Contudo, ela passou por dois divórcios horríveis, cujos fatos ela costumava me contar toda vez que me convidava para tomar café com leite em sua pequena cozinha. Eu achava estranho que uma mulher que não tinha conseguido segurar dois homens em uma única e mesma vida me aconselhasse sobre casamento.

Conversamos longamente sob o lindo sol de uma tarde simpática, cada um do seu lado da cerca em sua casa. Nas últimas duas semanas, ela e eu trocamos cumprimentos breves e sorrisos largos a partir dos pátios de nossas respectivas casas. Acredito que aquilo, de certa forma, fortaleceu nosso vínculo. Eu tive a vaga intenção de apertar sua mão quando ela me desejou “Boa sorte!” com aquele sorriso triste em meio a tantas rugas. Senti seu olhar me espionando até que eu atravessasse a porta da minha casa.

Então, contei ao dono do apartamento que estava ocupando sobre o atraso de dois dias no meu aluguel. Ele não levou a mal. Conversamos por uma boa hora. A noite aproveitou para escurecer o horizonte. Ele pensou que eu tive muita sorte de ingressar em uma universidade no país; “vale muito a pena, caso contrário a gente fica preso entre um trabalho de merda e um chefe medíocre por toda uma vida de cão.” disse-me ele, antes de desaparecer atrás da porta de seu casarão. 

Um pouco mais tarde, ouvi os passos rápidos e imponentes de sua filha atravessando o pátio, cortando assim a noite em duas. Ela voltava do seu trabalho como de costume. Todo dia na mesma hora. Já fazia algum tempo que eu tentava segui-la silenciosamente, como se ela fosse uma fruta que me fora proibida. Algumas semanas antes a situação era bem diferente. Quando todo mundo passou um fim de semana inteiro na praia, ela ficou sozinha em casa. Ela veio me procurar naquela noite para ajudá-la a encontrar uma aranha que havia entrado em seu quarto. Passamos pelo menos meia hora revirando o quarto, mas a aranha parecia já ter partido. Percebi tarde demais que se tratava de uma outra coisa (quando uma mulher faz 80% do trabalho, o homem deve fazer os 20% restantes.) Naquela época, eu tinha a cabeça amarrada nos livros. Eu tinha que sair do meu emprego rapidamente, o que estava consumindo todo o meu tempo e, com isso, meus sonhos. Eu só poderia fazer isso mergulhando a fundo nos livros (minha chefe, uma vez, me disse que, no Brasil, havia dois tipos de pessoas; as que trabalhavam e as que estudavam.) A questão é que, a cada vez, precisaria, para que uma garota me tire dos meus livros, que ela praticamente me agarre. Até hoje não consigo conciliar os dois no mesmo período. O sucesso e a mulher são tão caprichosos que às vezes precisam ser mantidos longe um do outro, para que possam se dar bem mais tarde. 

Já fazia algum tempo que eu degustava esse vinho barato, sozinho na penumbra do meu quarto. Eu fazia isso da maneira mais tranquila do mundo. Um último vinho antes de dar as costas a esta cidade que me acolheu de braços abertos sem me perguntar o que vim procurar tão longe de casa. Nos últimos dois anos, mudei-me para tantos lugares diferentes que terminei por não mais saber se estou em uma nova casa ou em uma nova cidade. Ruído no telhado da frente. Dois gatos estão fazendo amor. Dizer que precisam fazer tanto barulho para expressar seus sentimentos. Impressão de que estou tentando afogar os meus em uma taça de vinho. Eu fujo para uma cidade para me encontrar em outra onde não conheço ninguém. Só uma noite embebida em álcool para fazê-lo em paz. A noite é sempre o melhor momento para fugir de uma vida a outra. Enquanto eu persistia em bebericar meu vinho, a noite me embarcou em sua queda. Vou me reencontrar de pé em outra cidade.

Carlile Max Dominique Cérilia 

(Tradução: Renata Neves Granito)

About Carlile Cerilia

Carlile Max Dominique CERILIA, nascido em Petit-Goâven no Haiti, é um jovem poeta e escritor. Caminha quando não está lendo ou escrevendo. Gosta de se misturar com as paisagens: árvores, pessoas e animais. Ama cinema e música clássica. Lê Jean-Jacques Rousseau, Albert Camus, Victor Hugo, Voltaire, Dany Laferrière, Shakespeare. Hoje estuda Literatura no CREL (Centro de Pesquisa e Estudos Literários); Departamento, ANA (Narrator Apprentice Workshop). É imigrante e mora no Brasil há alguns meses.