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Diário de Dominique – 4. A decisão

Tradução de: Nathalie Dessartre

Sempre que acontece alguma coisa, meu irmão Russel me avisa. Ele me protege. Sempre desejou que eu deixasse esse trabalho em que abusam dos imigrantes. A saída, nessa América de ricos, é nunca deixar passar uma oportunidade. Recebi essa mensagem que dizia que a Universidade de São Paulo selecionava refugiados por via de um concurso. “É a chance que você estava esperando para fazer seu sonho virar realidade” me disse meu irmão.

Não era óbvio, para o imigrante que eu vim a ser, imaginar minha vida fora de Pinhais. É incrível como o fato de pensar pode se tornar estéril, de repente. Porém, ainda às vezes pego de volta o caminho empoeirado para à minha terra. Sempre chego lá no meu momento preferido. Aquelas manhãs tranquilas, no meu modesto quarto em Petit-Goâve, onde forçava meus sonhos para que atravessassem fronteiras. Na época, sonhava muito em viver em um belo campus universitário, longe do meu país, e em passar o meu tempo em uma biblioteca lendo e escrevendo sem ter que me preocupar com nada.

Hoje, essa época parece tão distante de mim que hesito em passar pela porta do meu apartamento minúsculo para ir atrás dela.

Vi, pela enésima vez, esse bom e antigo filme que sempre me faz chorar como uma criança. The great debaters.  Continuo sem entender por quê me intriga tanto esse jovem esperto e sério que me lembra Malcom X. Deve ser porque ele pensa que, somente na universidade ou na cadeia, é que a gente pode passar o tempo lendo. Faz meses que não pego em um livro. Tenho a impressão de ter-me transformado em um camponês que só pensa na próxima lua e na sua próxima colheita.

Quando me encontro com meu irmão, evitamos falar da minha partida definitiva. Entretanto, falamos sempre da minha viagem para São Paulo e, esses dias, ele vem me ver com frequência. “É o que nosso pai teria desejado que você fizesse”, confessou afinal. Nunca deixou de acreditar em mim, como meu pai aliás, inclusive quando eu colecionava fracassos. Vivi mais de vinte anos naquela grande casa, em Petit-Goâve. Meu pai nunca desistiu de mim. Só existe um pai como ele para demostrar tamanha paciência. Pensar que ele e minha mãe conseguiram criar onze filhos sem enlouquecer. Venho de um país em que todas as condições estão reunidas para que cedamos ao pânico. As pessoas têm que correr uma maratona para encontrar o pão de cada dia. Apesar de tudo, encontram tempo para ser simpáticos. Só a política as deixa fora de si para valer.

Como sempre, hoje de manhã, a moto do vizinho me acordou. Me sento igual a ele, há algum tempo. Fiel ao meu trabalho e ao relógio. Deve ser porque o sistema encontrou a saída para deixar a gente ocupada a vida toda. Oito chamadas não respondidas da minha irmã Ketteny. 21:47, a hora da última chamada. Devia estar preocupada em saber se eu tinha comido ou não. Com tantas chamadas, se eu não conhecesse bem a minha irmã, acharia a atenção dela ao meu estômago um pouco suspeita.

Tive um dia difícil no trabalho ontem. Após ter tomado banho, fiquei na cama assistindo esse filme que não terminei de ver. O sono me levou sem avisar. Uma descida tão suave que achava estar mergulhando em um coma artificial.

Acontece que hoje não vivo mais na zona de conforto do meu pai. Tenho que gerenciar a minha própria casa agora. Quando a gente consegue tamanha mudança na nossa vida, fica difícil deixar tudo para trás para iniciar uma vida de estudante. Acho que a gente se apega às coisas materiais, por simples preocupação com a estabilidade e o conforto. 

Tenho que aguentar, por uma razão que ainda não entendo, o mau humor abusivo da minha chefe dia após dia. Ela me achou ingrato quando reivindiquei uma melhora de nossas condições de trabalho, porém reconheceu que era informal.

Nossos contatos haviam se tornado cada vez mais breves e tensos. Como aquela vez em que tinha que lhe pedir meu salário para pagar minha viagem à São Paulo. Ela me atendeu na porta do seu escritório. Por trás dos seus óculos ridículos, os olhos dela não paravam de se mexer. Eu senti, logo, que alguma coisa não ia bem. Se ela não estivesse fedendo a cigarro e se tivesse acreditado poder conseguir alguma coisa após nossa conversa, teria, sem dúvida, insistido. E como se não esperasse a minha réplica, ela se retirou no seu escritório imediatamente após ter se justificado. De volta para casa, pensei nas razões da sua atitude. Por que ela me falou que a conta da empresa estava vazia, se já sabia que eu precisava de meu dinheiro para viajar?

Acredito que um evento, por mais sombrio que seja, não seja suficiente para destruir as convicções de uma pessoa.  Não é bom adular o monstro. É necessário olhá-lo olho no olho. O futuro dirá se você será comido por ele ou não.

Em São Paulo, achei o ambiente um pouco singular. A cidade permanece de pé.  (O taxista me falou: “Se São Paulo vier a morrer, o Brasil more.”). Essa abundância de atividades que transgridem a suavidade de uma noite estrelada. Vi de relance: jovens casais alegres que conversavam tomando cerveja nos bares, silhuetas de carros parecendo mais hábeis e mais velozes do que de costume, moças gostosas de mini saias desafiando o calor. O cheiro forte da avenida Cruzeiro do Sul, uma mistura de urina, de álcool, de tabaco, de carne grelhada e de frutas, me remetem, sem passagem, a Porto Príncipe. No bar do hotel onde fiquei, um cara barrigudo, sem mais nem menos, me lança por trás do seu triste sorriso de alcoólatra: “suba para seu quarto com uma boa menina”. Fingi não ter ouvido nada.

Aqueles que nos vigiavam durante a prova da universidade eram muito simpáticos. Tomei um bom banho antes de pôr a chave do meu quarto na fechadura da porta, que eu tinha deixado sem trancar. Estava morrendo de fome. Jantei no bar do hotel: arroz, feijão, salada e peixe. Também tomei um suco de limão num só gole. A moça do bar com um sorriso muito leve reparou que meu perfume era delicioso. Ela parecia um pouco decepcionada ao ficar sabendo que eu já estava voltando para Curitiba. É impressionante como a aparição de uma moça bonita pode ser breve na nossa vida. Desaparece tal qual aparece.

Acredito que um evento, por mais sombrio que seja, não seja suficiente para destruir as convicções de uma pessoa.  Não é bom adular o monstro. É necessário olhá-lo olho no olho. O futuro dirá se você será comido por ele ou não.

Na volta de ônibus, passei a tarde observando a chuva cair. Uma chuva intensa. A noite chegou tão sorrateiramente sob essa chuva que não a vi chegar. A mulher, vestida como um bancário, sentada ao meu lado, parecia hipnotizada pela sua leitura havia mais de uma hora. Olhava para ela sem que percebesse. Parecia tão calma que eu achei que estava meditando. A viagem também estava muito tranquila na medida em que penetrávamos na noite escura. Tive a impressão, por um momento, que estávamos em um sonho. Era o perfume de uma decisão tomada entre duas cidades.

Carlile Max Dominique Cérilia


 

  

 

 

          

About Carlile Cerilia

Carlile Max Dominique CERILIA, nascido em Petit-Goâven no Haiti, é um jovem poeta e escritor. Caminha quando não está lendo ou escrevendo. Gosta de se misturar com as paisagens: árvores, pessoas e animais. Ama cinema e música clássica. Lê Jean-Jacques Rousseau, Albert Camus, Victor Hugo, Voltaire, Dany Laferrière, Shakespeare. Hoje estuda Literatura no CREL (Centro de Pesquisa e Estudos Literários); Departamento, ANA (Narrator Apprentice Workshop). É imigrante e mora no Brasil há alguns meses.