Fala do Carlile sobre a importância psicológica, acadêmica, social e cultural da interculturalidade na UNIFESP/ Campus/ Baixada Santista. Membro do CLAI (Comissão Local de Apoio à Internacionalização), por ocasião da semana de integração do ano de 2023. Atividade promovida pela Unifesp, sob a coordenação da CLAI, NAE e o Projeto Travessia.
Os últimos anos têm sido difíceis. Tivemos que passar por tantas dificuldades. Covid. Confinamento. Governo irresponsável. Ataques sangrentos contra a universidade pública e a educação. Eleições angustiantes. E, no meu caso, o cenário é ainda mais trágico. Daqui, além de ter carregado tudo isso, tenho que pensar constantemente em um país que deixei à própria sorte, que está mal respirando sob a pressão do core-group, um governo ilegítimo e as balas constantes das gangues que sufocam implacavelmente a população. Tudo isto ensinou-me uma coisa importante, estamos todos aqui, agora, porque temos sorte e coragem, e sobretudo porque temos de lutar e decidir por um futuro melhor para nós e para o mundo.
Quem sou eu? No meu país a gente me chama de Dominique, meu terceiro nome. Aqui, todo mundo me chama de Carlile, meu primeiro nome. Mas, meu nome completo é Carlile Max Dominique Cérilia. Também, sou outra coisa para as pessoas: imigrante refugiado no Brasil, poeta, escritor, cantor, compositor e estudante de Psicologia na UNIFESP, entrando pelo Edital especial para imigrantes refugiados com visto humanitário, em 2020.
Vamos chegar um pouco mais perto do nosso assunto, fiquei sabendo, durante o ano de 2022, de uma notícia que me deixou triste. Uma jovem estudante negra que teve que fugir da UNIFESP por não se sentir estar no seu lugar. A ironia desta história é espetacular. Onde se formam psicólogos, terapeutas, assistentes sociais, educadores físicos, uma futura terapeuta teve que fugir das salas de aula e abandonar a sua profissão, o seu sonho, porque a hostilidade sutil e quase silenciosa que reina neste Campus não lhe deixou outra escolha. Ela fazia parte da UNIFESP também. Mas, infelizmente, tem uma força que sutilmente, cruelmente lhe diz o contrário. É com isso que estou preocupado. É contra isso que devemos lutar em prioridade.
Temos uma missão neste Campus, nesta universidade, a de promover a vida na sua forma mais pura e diversa, através da produção de saúde, de cuidado, nas suas dimensões física, ambiental e psicológica, através da produção de felicidade e equilíbrio corporal e mental. Nosso primeiro passo rumo a essa missão é a permanência dos alunos neste Campus, sãos, salvos, animados e sobretudo, prontos para dar a esta sociedade o cuidado que dela receberam. Meu lembrete não é uma ameaça, mas um exemplo, uma prova de nossa responsabilidade para com cada aluno que frequenta este local.
Todos nós viemos de lugares, famílias e origens sociais diferentes, cada um com uma história, cultura e visão de mundo. Mas somos convidados, desafiados a compartilhar a cultura e a dinâmica da UNIFESP, a identificar-se na ideia do encontro intercultural também. Somos parte disso. Eu, por exemplo, como estudante internacional deste Campus, vindo do Haiti, sendo sempre um estrangeiro aos olhos de várias pessoas, quantas vezes tive de sentir e ignorar a indiferença dos meus colegas, quantas vezes tive de me encontrar fazendo um trabalho sozinho porque ninguém respondeu para fazer grupo comigo, quantas vezes me senti deslocado aqui. Em cada um desses momentos, eu sempre quis voltar para casa, mas o caminho de volta era sempre longo demais. E isso está acontecendo já faz três anos.
A responsabilidade de criar um ambiente confortável, dentro da UNIFESP, para todos que a frequentam é um trabalho coletivo. De minha parte, tive que aprender, aqui, a resistir às hostilidades e a me concentrar no importante, nos meus objetivos, que é o que constitui meu equilíbrio e minha força mental. E, para ressaltar o mais importante, aprendi a me fazer útil, para mim e para os outros, para ajudar a tornar a UNIFESP um lugar melhor.
Através da CLAI, queremos levar esse equilíbrio ao topo da UNIFESP. Queremos contribuir a lembrar e manter nesta grande instituição uma da mais bela das virtudes, a inclusão, e queremos fazer do Campus Baixada Santista o ápice desta virtude, produzindo cuidado de qualidade um com outro, um para outro, produzindo também atenção que envolve a responsabilidade de cada aluno, cada professor, cada funcionário deste campus, levando em consideração a dimensão histórica, cultural, emocional e psicológica de cada um, tendo também em conta a riqueza intercultural e interdimensional que cada trouxe na construção desta grande obra, e do que cada um receberá em contrapartida.
Em suma, se há um papel que pode ser uma das principais missões da universidade, é o da interculturalidade, o respeito, na sua forma mais concreta, do outro, da sua história, da sua cultura, da sua visão e do seu lugar na diversidade do mundo. E, isso deve começar aqui, nesta Universidade, neste Campus, agora e todos os dias. Esse olhar, esse cruzamento mágico e único que existe entre mim e você, entre você e o outro, que faz a gente se complementar, se atrair e não o contrário, é isso que faz, é isso que vai nos fortalecer , é o que vai manter nosso equilíbrio aqui e na sociedade.
Se Davi Kopenawa foi homenageado e elevado, no dia 15 de março, pela própria UNIFESP ao posto de doutor honoris por seu trabalho e pela luta por seu povo, é a prova de que essa visão de mundo já é um dos pilares desta instituição. Vamos mantê-la viva e ativa, diariamente!
Texto: Carlile Max Dominique Cérilia