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Curitiba Severina

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia.

João Cabral de Melo Neto

 

Em seu livro Morte e vida severina, de 1955, João Cabral de Melo neto reflete, na forma de poesia os dilemas da miséria no Brasil, em especial na região Nordeste, onde esta era, na época, mais visível devido a uma economia que para se realizar pressupunha a concentração fundiária e a exploração ao máximo do trabalhador do campo, tendo esta região papel estratégico neste contexto. Em um país marcado pela ascensão da Bossa Nova e vivendo um ciclo desenvolvimentista próprio de governos como o de Juscelino Kubitschek, falar de fome parecia estar fora do script. Como parece ser hoje, quando há pouco mais de dois anos tínhamos a fome como erradicada no país. Discutir a questão da miséria hoje, pode parecer fora de tom, ainda mais no Paraná, potência agrícola para o país – assim como era a Região Nordeste da década de 1950.

Segundo a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), 5,1 milhões de pessoas sofrem de fome e insegurança alimentar atualmente no Brasil[1], enquanto, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) do último trimestre de 2019 informa que 13,5 milhões de brasileiros vivem em situação de extrema pobreza, ou seja, estão condenados a viver com menos de R$ 145 por mês.

Apesar de ser um problema que segundo os gráficos da FAO vinha diminuindo numericamente com o passar dos anos –  fato evidente quando em 2014 deixamos, enquanto país, de fazer parte do mapa da fome – a questão da miséria volta a ganhar o centro do debate no momento da atual crise econômica, onde o crescente desemprego e os cortes em políticas sociais como o Bolsa Família e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) impactam fortemente a vida de milhões de pessoas, em especial os mais pobres, que veem seu endividamento crescer e suas condições de vida piorarem[2]. Diante deste quadro e da negativa de líderes de Estado perante a problemática no país[3], pensar a produção da miséria nas cidades brasileiras, assim como sua relação direta com o modelo de produção e escoamento de commodities é fundamental se quisermos compreender um pouco mais do processo da urbanização brasileira contemporânea.

Curitiba projetou-se internacionalmente como “cidade que deu certo” durante o governo militar, atraindo para si migrantes de todas as partes, principalmente da Região Norte do Estado do Paraná[4], onde o processo de modernização da agricultura gerou uma imensa leva de trabalhadores do campo desempregados que se movimentou para todas as partes na esperança de encontrar alguma renda, ainda que temporária. No entanto, os maiores desdobramentos do processo de reorganização da cidade se dão na década de 1990, auge no neoliberalismo como forma de Estado no Brasil. A cidade foi privatizada, excluindo aqueles que não puderam pagar para que dela pudessem usufruir, deixando um enorme anel de pobreza que é ideologicamente escondido pelo marketing urbano e pelo chamado patriotismo de cidade. Esta cidade e este Estado, que vendem ao Brasil e ao mundo uma imagem de riqueza, ordem e prosperidade, nos revela uma outra face se vamos a fundo no tecido social de produção da miséria em Curitiba e no Paraná.

Neste sentido Curitiba se mostra didática devido à forma autoritária como se desencadearam seus grandes projetos de planejamento e reurbanização, desenvolvendo uma área central organizada de maneira racional e eficiente, ao mesmo tempo em que gera a exclusão dos mais pobres destes mesmos equipamentos urbanos vendidos como “humanizados”, uma vez que há nesta capital um pensamento provinciano de que a pobreza extrema está sempre muito longe, geralmente associada às regiões Norte e Nordeste do país. O crescimento urbano curitibano, organizado em conjunto pelo Estado e pelo capital privado visando mercantilizar o Espaço da maneira mais lucrativa possível, ocorreu em paralelo à degradação e à espoliação de uma porção de pessoas que vivem às margens da cidade ou em sua região metropolitana, sem o direito de desfrutar da “cidade modelo”, a quarta cidade mais desigual da América Latina, segundo Alexandre Benvenutti, em sua tese de doutorado intitulada Planos de Humanização para Curitiba: Remodelação Urbana e Imobiliária da Metrópole (2016).

            Ostentando o nível de 26,9% da população vivendo com até ½ salário mínimo per capita, quando caminha-se pelas ruas sem asfalto e tratamento adequado de esgoto presente nas periferias desta cidade sentimos, então, a necessidade urgente de dramatizar os dados até então apresentados, pois, apesar da grande quantidade de capital que circula por aqui, com um PIB per capita de R$ 44 239,44 [5], apresenta-se como contraponto a esta riqueza uma desigualdade social e um nível de pobreza e miséria expresso nos dados e nas paisagens urbanas (PNAD, IBGE). Enquanto no bairro do Água Verde o IDH (índice de Desenvolvimento Humano) é de 0,956 – semelhante à Noruega – no bairro do Parolin ele é de 0,623 – menor que o da Namíbia[6]. Paranaguá, outra riquíssima cidade paranaense, apresenta a porcentagem de 35,7% da população vivendo com até ½ salário mínimo per capita, apesar do PIB per capita de R$ 54 723, 35, mostrando que a segregação e a desigualdade social urbana não é uma exclusividade da capital do Estado.

Há, no discurso sobre a urbanização paranaense, uma identidade ilusória entre os interesses dos industriais, dos especuladores, empresários e políticos que se fazem passar como sendo os interesses de toda a população. Não à toa, vemos o papel central que Curitiba desempenha no cenário político nacional atual: mais uma vez como modelo da “eficiência” neoliberal (NEVES, 2006). A cidade que é considerada ordenada e racional quando serve de maneira funcional aos interesses econômicos das famílias burguesas, é vista como desordenada quando os pobres aparecem subvertendo o uso concebido para o espaço.

Por outro lado, há uma relação a se fazer. Enquanto Curitiba se coloca como importante metrópole no Estado do Paraná, uma vez que lida com parte considerável do capital financeiro circulante, entre outros, através da produção e comercialização de commodities das regiões Sul e Centro-Oeste do país, é através de Paranaguá e seu porto que a maior parte desta produção é escoada, o que gera uma renda importante para este município de porte médio[7]. No entanto, ao caminhar pelas ruas das periferias destas cidades, o que se observa são casas bastante simples, ruas sem asfalto, enfim, a miséria em seus vários aspectos se materializa na paisagem, e é preciso descortinar este processo de um ponto de vista geográfico.

Existe aqui uma fração da classe trabalhadora que nem conseguiu se fixar no campo como boias-frias e nem conseguiu se inserir em um emprego formal na cidade, sendo negados ao mesmo tempo por aquilo que chamamos de urbano e de agrário. Entre a população em situação de rua na cidade de Curitiba, muita gente se movimenta de tempos em tempos de um município a outro empregando-se ora como guardador de carros na cidade, ora como coletor de laranjas no campo, ora na construção civil e que, apesar de manter casas com famílias em áreas rurais da região metropolitana, dormem nas ruas da região central de Curitiba, devido à despesa e ao tempo de se deslocar todos os dias entre a casa (rural) e trabalho (urbano), muitos dos quais vão a Paranaguá e outros municípios litorâneos devido ao inverno mais ameno nesta região ou para adquirir uma renda extra durante a temporada no verão. As paisagens urbanas do bairro da Caximba, extremo Sul da cidade, ou da ocupação Tiradentes, no CIC, mostram uma Curitiba bastante distante daquela em que as cerejeiras florescem no inverno, exaltada por seus habitantes de classe média e alta.

Portanto, uma cidade produzida como modelo de planejamento urbano técnico, neutro e eficiente, na verdade se tornou um negócio bastante rentável para as famílias oligarcas e um grande tormento para os trabalhadores em sua cotidianidade. Muitos trabalhadores nem se desagregaram totalmente de seus vínculos agrários e nem foram inseridos totalmente em uma vida urbana. Eles vivem na pele a miséria produzida pelo modo de produção capitalista contemporâneo. Assim como nos tempos de João Cabral, urge ir para além das imagens pré-concebidas na opinião pública – ou opinião publicada – de que há no Paraná um exemplo de organização urbana técnica e neutra, uma urbanização mais “civilizada”. É necessário ir contra os localismos e provincianismos se queremos compreender como a mesma cidade que inovou nas formas arquitetônicas e urbanísticas precisou, para se realizar como tal, esconder o problema da pobreza, que sempre acompanhou a história da cidade e que é, a cada dia que passa, mais gritante. Basta caminhar pelas ruas do Centro da cidade para ver o número crescente da população em situação de rua nos últimos 5 anos. Talvez, estes que se cobrem com folhas de jornal ilustrem com as letras que lhes afagam as noites geladas desta cidade que é fria no clima e na gente. É para essa multidão Curitiba de bom tamanho. Nem larga, nem funda. É terra dada e não se abre a boca.

 

[1]http://www.fao.org/faostat/en/#country/21 (acessado em 31/07/2019)
[2]Segundo o IBGE: “O país tinha 54,8 milhões de pessoas que viviam com menos de R$ 406 por mês em 2017, dois milhões a mais que em 2016. Isso significa que a proporção da população em situação de pobreza subiu de 25,7% para 26,5%, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, divulgada hoje pelo IBGE. O estudo utilizou critérios do Banco Mundial, que considera pobres aqueles com rendimentos diários abaixo de US$ 5,5 ou R$ 406 mensais pela paridade de poder de compra.” https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23299-pobreza-aumenta-e-atinge-54-8-milhoes-de-pessoas-em-2017 (acessado em 31/07/2019)
[3]“Em um café com correspondentes da imprensa internacional na manhã desta terça feira (19), Bolsonaro negou que houvesse pessoas no Brasil passando fome. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”” Diz a Folha de São Paulo em 19/07/2019. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/falar-que-se-passa-fome-no-brasil-e-uma-grande-mentira-afirma-bolsonaro.shtml (acessado em 31/07/2019).
[4]“A frase “Curitiba de todos os povos” é uma afirmação comprovadamente correta. Segundo o Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população da capital paranaense é formada por 1.587.315 habitantes -760.848 homens e 826.467 mulheres. Desse total, 67.131 pessoas (4,2%) vieram de outros estados, principalmente São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Mas a grande maioria veio do interior do Estado. De acordo com o IBGE, essa migração interna representa cerca de 40% da população da capital, ou seja, aproximadamente 635 mil pessoas.” Tribuna do Paraná em 15/08/2018. Disponível em https://www.tribunapr.com.br/noticias/parana/quase-45-da-populacao-de-curitiba-veio-de-fora/
[5]Op. Cit.
[6]http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_rm/23
[7]“O Porto de Paranaguá, operado pela Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA), localiza-se numa posição estratégica em relação às regiões Sudeste e Sul do País. A sua área de influência compreende o Estado do Paraná, Santa Catarina, Sul de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Paraguai, além de parte do Rio Grande do Sul e Argentina (GEIPOT, 1994a e Anuário Estatístico Portuário, 1995).” (BULHÕES, 1998).

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.