“Próxima parada: Praça Eufrásio Correia”. Na Estação Tubo, o encontro de ombros é inevitável quando se abrem as cinco portas do Biarticulado. Se descem 50 pessoas, entram ao menos cem. Essa é a lógica toda a vez que os termômetros marcam mais de 30°. Todos se ajeitam e a maioria, que vai em pé, arruma uma maneira de se encostar e dar atenção ao celular, companheiro de todas as horas.
Não demora e começa um alarido na sanfona que fica perto da porta 4. Dois garotos e quatro meninas haviam embarcado na estação anterior. Até àquela altura uma quietude irritante percorria os 28 metros do Biarticulado. O grupo provavelmente estava no shopping, flertando na escada rolante e juntando trocados para comer no Mc Donald. Falavam auto, riam e mandavam beijos para os pedestres na calçada. Tudo era motivo de graça e não demorou para que os primeiros olhares de desaprovação aparecessem. Uma moça, abraçada a meia duzia de livros, abandonou o conforto do encosto da sanfona e foi buscar sossego encostada na porta 1, perto do motorista, talvez com medo de um contágio de alegria e provavelmente apavorada com a possibilidade de rir em público.
Indiferentes à reprovação quase geral, os jovens continuam a gargalhar, sem motivo aparente, pelo menos aos olhos de quem estava na lotação. Até que, na estação Silva Jardim, entram no ônibus duas senhoras e um sujeito um tanto jovem que usava uma camisa com quatro botões abertos e equilibrava um óculos escuro na ponta do nariz. Em uma das mãos segurava uma lata de cerveja, provavelmente quente, já que essas geladeirinhas de padaria falham vergonhosamente na missão de gelar cervejas. Instintivamente ele para na sanfona da porta quatro e é observado pelos jovens.
– Bebo porque estou de férias, está calor e ainda me sobrou dinheiro depois de pagar as contas- Disse sem ser questionado por ninguém.
Os jovens se olharam, riram.
– Está de férias então? – Perguntou um dos garotos.
– De férias, solteiro e com dinheiro no bolso! – Respondeu.
Mais risadas. O grupo se ajeitou em volta do sujeito prevendo boas histórias.
Mais estações-tubo e a identificação entre o homem e os jovens só crescia. Golando de vez em quando a cerveja quente ele contava algumas anedotas, como quando precisou sair de cuecas, em pleno mês de julho, ao ser flagrado pelo pai de uma certa Martinha quase “nos finalmente” com a filha em uma casa no bairro Xaxim. Risos e mais risos.
Um mundo à parte havia se estabelecido na sanfona da porta quatro. Se com a presença animada dos meninos e meninas a reprovação por parte de alguns passageiros já era grande, com a presença de um sujeito tomando cerveja, com a metade dos pelos do peito de fora, foi maior ainda. A expressão de irritação era visível em quase todos no biarticulado. Um casal, abraçado em frente à porta 3 balançava a cabeça negativamente a cada novo alarido. Uma senhora, que concentrada lia a revista Cláudia, olhava para o grupo e estralava os lábios, como que se algum alimento pegajoso tivesse se agarrado à sua dentadura.
E o grupo continuava alheio às críticas veladas. Um dos rapazes tentava ensinar o “passinho do Romano” ao homem que se esforçava para aprender sob o ritmo das palmas do restante do grupo. Gargalhadas e mais gargalhadas. Ele, em compensação, mostrava cada tatuagem do antebraço esquerdo e contava a história representada por cada uma delas.
A cena era uma representação absurda de vida. Havia uma despreocupação assustadora. Uns comemorando o fato de estarem na tenra idade, rodeados de amigos, alheios ao futuro. Outro festejando as merecidas férias, rodeado de novos amigos, alheio às dores do passado.
Restava aos demais passageiros, salvo aqueles indiferentes à baderna, condenar aquela afrontante alegria. Risos frouxos de um lado, expressões carrancudas de outro e eu passei a me perguntar em que momento da vida perdemos a alegria das novas conversas, de rir à toa sem motivo aparente? Quando os problemas se tornaram nosso foco principal? Quando a vida se resumiu a preocupação, contas e mensagens no whatsapp? O que diriam os psiquiatras que recomendam Rivotril à primeira indisposição? Passei a procurar, em meio aos adesivos colados nos vidros do ônibus, onde estava aquele que dizia: “Cuidado com risadas e alegria excessiva no interior do veículo”.
Havia uma despreocupação assustadora. Uns comemorando o fato de estarem na tenra idade, rodeados de amigos, alheios ao futuro. Outro festejando as merecidas férias, rodeado de novos amigos, alheio às dores do passado.
Acabei assaltado por muitas questões. Pensei no tamanho da ousadia daquele sujeito, afinal como alguém tem a pachorra de comemorar a vida em plena terça feira à tarde? Que diabos tinha aquela cerveja para o fazer esquecer da crise anunciada pelos jornais, das doenças causadas pelo álcool, das boas maneiras pregadas pelas tias e avós? E quanto aos jovens, demorariam muito a perder o riso solto? Quando os pais lhes revelariam que responsabilidade é tudo nesta existência? Como eles ousavam exalar vida por todos os poros em um ônibus lotado? Não é um absurdo viver a vida em toda a sua intensidade em meio a pessoas de respeito que só querem chegar em casa e compartilhar o quão miserável foi seu dia? Ninguém avisou a esse bando que lugar de celebrar o fato de estar vivo é na praça de alimentação de um shopping, onde os homens usam camisa polo e as mulheres uma chapinha? Ninguém disse para o bêbado em férias que lugar de ser feliz é no Facebook? Além do mais, aquela demonstração gratuita de alegria pode ofender muita gente né? Pode interromper a conversa sobre a diabetes, sobre o quanto a política desmoralizou esse país, entre outras lamentações tão necessárias. E o pior de tudo: em nenhum momento algum deles pegou o celular, ninguém tirou uma selfie sequer! Imaginem que disparato!
Intimidado por tamanha demonstração de vida desci no Terminal do Portão. Vai que aquela alegria fosse contagiosa né? Além do mais, estava a caminho de uma entrevista em um emprego que eu não queria, para fazer algo que não me agrada e assim, como todo mundo, ter motivos suficientes para reprovar qualquer manifestação de vida dentro de um ônibus qualquer.