A GRES Portela, em nota recente, chama a atenção sobre a tentativa de cancelamento dos desfiles de carnaval em 2022 em vista dos agravamentos dos casos de covid-19 no Brasil. Na nota, a escola associa o ataque ao carnaval em específico a discriminação ao samba e a cultura negra em geral, visto que outros eventos, nem sequer se cogita em cancelar – como a convenção cristão no fim do ano passado, o réveillon em Copacabana, ou o festival gospel no qual Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, cantou para multidão nesse dia 17 de fevereiro.
Margareth Dalcolmo, infectologista da Fiocruz, se posicionou contrária a realização do carnaval de rua e dos desfiles em São e no Rio (e no Brasil como um todo) em coluna na Folha de São Paulo, em vista dos avanços dos casos de contágio, vinculados a cepa da Omicron. A opinião de uma profissional da área. No entanto, encerra sua coluna com uma opinião um tanto quanto estranha: “Lembremos que os primeiros casos de Covid-19 que tratamos —e algumas pessoas faleceram, em 2020— foram oriundos dos desfiles nos sambódromos”.
Tal opinião é estranha visto que não vincula para isso dados que sustentem o suposto fato – o link que vincula em sua coluna remete a uma coluna de Mônica Bergamo, sobre o cancelamento do carnaval em São Paulo; nenhuma das duas colunas apresenta fatos que corroborem a interpretação de que tenha sido o carnaval o disseminador da covid em terras brasileiras. Mais do que isso, como chamou minha atenção André Cavanha, uma opinião que omite que os primeiros casos de contágio no Brasil foram de pessoas voltando de viagens a negócios ou férias da Europa e da Ásia, e expondo familiares e empregados ao vírus.
Lembrando inclusive que o primeiro caso de morte no Rio de Janeiro por Covid-19 foi de uma empregada doméstica que fora contaminada por sua patroa que voltara doente de uma viagem a Itália, e não só não comunicou a empregada, com a expôs ao vírus. Como aponta a nota da Portela, um cancelamento seletivo de eventos é uma forma de ataque a manifestações culturais específicas, de uma parcela específica da população.
Não retomarei os argumentos da escola de samba aqui, a leitura da nota valeria por si só. Mas gostaria de reforçar o papel político que organizações culturais exercem no Brasil. Como aponta Maria Clementina Pereira Cunha em seu livro “Não tá sopa” (2016) retomando a pesquisa de José Murilo de Carvalho, em um país que nega a participação politica e cidadã de negras e negros, são as organizações culturais e artísticas que oferecem o espaço de organização da luta por direitos.
No Distrito Federal, durante a Primeira República e durante a Era Vargas, eram as escolas de sambas que desempenhavam o papel de organização política através da organização cultural. De fato, Tia Ciata, Tia Bebiana, Ivone Lara, Clementina de Jesus, Paulo da Portela, Eduardo das Neves, Pixinguinha, Cartola, Heitor dos Prazeres e entre tantos outros nomes de sambistas e artistas negros, tem uma importância muito maior do que sua produção artística e cultural. Eram líderes comunitários, com papel ativo na organização da comunidade, na defesa dos seus interesses e realização dos seus objetivos.
Dou particular destaque para Paulo da Portela, pois é significativo, que músicas de artistas negros se inspirem mais em Malcom X, por exemplo, do que no líder portelense (ou qualquer liderança negra brasileira, como chamou a atenção Angela Davis ao falar sobre Lélia Gonzáles). Fora do samba, o nome de Paulo Benjamin de Oliveira não trás nenhuma lembrança. Dentro do samba, seu nome nunca cairá no esquecimento; seja pelo papel de difusão da cultura negra em shows e programas de rádio, pela organização estrutural que levou para as escolas de samba (a começar pela Portela, escola que fundou), pela defesa de negras e negros contra a repressão policial e racismo perpetrados em jornais.
As histórias sobre Paulo são muitas. Um olhar mais aguçado sobre vida, obra e legado de Paulo da Portela é apresentado por Karla Fatima Barroso de Siqueira em sua dissertação de mestrado Oranian é Paulo da Portela (2019); nela argumenta que tal qual Oranian, Paulo funda um reino na Portela, e é consagrado como um deus: “Paulo Benjamin de Oliveira fundou também um reino, a Portela, e todo portelense é herdeiro do legado do deus negro de Oswaldo Cruz e Madureira”.
Paulo é ainda, segundo do documentário O teu nome não caiu no esquecimento (2001), o indivíduo mais citado em sambas. De sua autoria, podemos destacar Teste ao Samba (Paulo da Portela, 1989), um dos três sambas enredos do primeiro desfile de carnaval, em 1929, e que lhe rendeu o apelido: Professor. Após sua saída da Portela, seu samba mais emblemático O meu nome já caiu no esquecimento (Paulo da Portela, 1989). Sobre o mesmo evento, Cartola compôs Sala de recepção (Cartola, 1976) em sua homenagem: Paulo da Portela é o inimigo que Mangueira abraça como irmão.
Monarco, falecido no ano de 2021, deixou grandes homenagens ao Paulo da Portela. Mas, para voltar ao assunto original, é interessante que Monarco, assim como a Portela, vê em Paulinho da Viola a mesma liderança que via em Paulo, como nos mostra a música De Paulo a Paulinho (Monarco e Francisco Santana, 1975). E é lembrando a postura de Paulinho da Viola, que recentemente cancelou sua participação no programa do Faustão pois membros de sua família positivaram para covid-19. Antes mesmo de ter seu resultado, Paulinho cancelou sua participação no programa, e reforçou a importância da vacinação em suas redes sociais.
Cancelar o carnaval parece ser a maneira prudente de se agir durante esse período; não porque seria o carnaval em particular o responsável por explodir os casos de infecção (acreditar isso é dar vazão aos comentários elitistas de Dalcolmo, que veem na cultura popular a principal forma de contaminação), mas porque qualquer aglomeração nesse período faz os casos de infecção dispararem – como foram as festas de fim de ano, como são os eventos que nem se cogita cancelar nesse começo de ano. Do contrário, cancelar os desfiles de carnaval é uma medida arbitrária, que visa atingir e atacar, como reforça a Portela, discriminatoriamente a cultura de uma população marginalizada.
(Para quem quiser acompanhar as músicas indicadas por essa coluna, essa é a lista de reprodução no spotify: https://tinyurl.com/QuandooSambaAcabou. Entre parênteses indico os compositores das músicas, junto com o ano da primeira gravação dela. Quando há evidências de data de composição anterior, indicarei no corpo do texto.)
Descrição da Imagem: Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto, Alcebíades Barcelos e Mano Marçal, caminhando, vestido de paletó e chapéu no Engenho de Dentro, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Foto do acervo de Heitor dos Prazeres, disponível no livro Samba de Sambar do Estácio (2010) de Humberto Franceschi.