Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
“Metade da humanidade não come e a outra não dorme com medo da que não come.”
Josué de Castro – Geopolítica da Fome
Vivemos mais um momento de crise do capitalismo, já evidente antes, mas agravada com a Pandemia do Corona-vírus que deixa, alguns, em isolamento social, e outros – os mais pobres no geral – expostos de forma latente a esta doença ainda sem vacina ou cura. Vimos discursos ultra-liberais sendo convertidos em pedidos de ajuda aos Estado-nação, e a ciência, que vinha sendo achincalhada, sendo convocada a pensar uma solução para este grande problema. Quando pensamos em ciência, geralmente pensamos em gente de jaleco dentro de seus laboratórios, com béqueres e flúidos de cores estranhas para desenvolver vacinas e remédios que solucionariam – digo, temporariamente – nossos problemas. Gostaria de propor uma visão mais ampla. Aquela que entende que todo o conhecimento humano, entre eles as ciências de maneira geral, são chamados a contribuir. Agrônomos, biólogos, sociólogos, filósofos, indígenas e favelados são parte da solução, e não do problema. Por isso, devemos propor novos meios de utilizar nossos conhecimentos enquanto humanidade para re-pensar nosso modo de produção. Neste sentido, compartilho aqui algumas considerações recentes de minha pesquisa sobre a produção da fome e da miséria relacionados ao planejamento urbano e a produção de alimentos no Brasil, seguida de algumas proposições.
Vemos uma realidade em que a conjuntura muda radicalmente em questão de horas. Uma realidade em pleno e rápido movimento tem análises e proposições derrubadas pelos acontecimentos. Mas algumas coisas seguem constantes ao longo da história, e é importante compreendermos agora o quanto o pensamento malthusiano continua mais vivo do que nunca no instante em que escrevo este texto. Thomas Robert Malthus escreveu em 1798 o livro Primeiro Ensaio sobre a População, onde propunha um esquema simples que muitos de nós estudamos no Ensino Fundamental e Médio. O crescimento populacional global, estatisticamente, se daria em uma progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16…) enquanto o aumento na produção de alimentos se daria em uma progressão aritmética (1, 2, 3, 4, 5…), constatando-se uma população que cresceria a um ritmo mais acelerado que a produção de alimentos, provocando a falta deste na mesa de grande parte da humanidade. A justificativa para a pobreza aparece neste autor com a seguinte constatação: tem gente demais no mundo. No entanto, para Malthus, a miséria seria necessária, pois a fome, o desemprego, o rebaixamento de salários, e a guerra matam, adoecem, dificultam a criação de filhos, a constituição de casamentos, ou seja, a pobreza seria um meio eficaz de reequilibrar a equação entre recursos alimentares e quantidade de população[1]. Por esse papel que a pobreza e a miséria exercem no controle populacional, Malthus, latifundiário e pastor anglicano, se colocava veementemente contra a assistência social aos pobres, uma vez que esta, ao diminuir a miséria a curto prazo, favoreceria o casamento e a reprodução de indigentes. Ele propunha a abstinência sexual e o controle populacional como políticas de Estado.
Esta ideologia continua presente em nossos dias. E basta que ouçamos discursos de empresários como Roberto Justus, Luciano Hang, e tantos outros durante a nossa crise contemporânea para entender que Malthus está vivo entre nós, propondo políticas de morte aos pobres, que devem escolher entre morrer doentes ou morrer de fome. O isolamento social certamente trará consequências nefastas para o abastecimento de alimentos nas cidades, afetando de maneira categórica as favelas, ocupações e bairros pobres de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Curitiba, entre outros. É necessário compreendermos que haverá um aumento substancial do número de pessoas que sofrem de fome, e é preciso compreender este problema em suas nuances se quisermos lhe pensar soluções de curto, médio e longo prazo.
Atualmente, o Estado institucionaliza-se como ferramenta da classe dominante para viabilizar seus projetos de lucro eterno e crescente, dotados de uma racionalidade técnica, funcional e controladora perante toda a sociedade. É possível dizer que o capitalismo faz sua transição ou virada da hegemonia do capital produtivo para o capital fictício no mesmo momento em que deixa de utilizar exclusivamente um lastro de valor material qualquer (como o ouro, ou escravos) para a dotar a terra como reserva de valor. Isso significa dizer que o lastro de valor do capital fictício está na renda da terra, dando a possibilidade de pensar que quanto maior é a circulação de capital, maior é a exploração do trabalho, pois quem controla e monopoliza a terra, controla e monopoliza o trabalho. Cada crescimento percentual na economia capitalista em geral é necessariamente acompanhado pelo aumento da exploração do trabalho na mesma proporção, conforme expõe Karl Marx, no Capital[2].
Portanto, reforçando e potencializando novas e velhas centralidades, no campo e na cidade, estamos, simultaneamente, reforçando a periferia que surge em relação aos centros urbanos. Centro e periferia são causa e consequência de si mesmos. Em uma sociedade onde o tempo da vida cotidiana é regido pelo tempo de reprodução do capital (da bolsa, do “mercado”, etc.), a única forma possível de realizar os movimentos de capital fictício cada vez mais intensos e lucrativos – vide o recente crescimento dos lucros no setor financeiro e rentista – é a violência. Só ela é capaz de dar a imediaticidade necessária à realização desta economia das crises, invocando um estado de exceção permanente. Nas palavras de Lefebvre “guerra e paz mal distinguíveis de um lado, e, de outro, violência perpétua, reprimida e generalizada, contida e utilizada.” (Lefebvre, p. 147)[3]. A violência nas favelas, nos campos, nas ruas. A repressão policial, a censura, o fim dos direitos, a miséria em todas as suas faces são as expressões espaciais da economia global no cotidiano. Vivemos um período de catástrofes
Josué de Castro, em seu livro Geopolítica da Fome[4], propõe distinguir a fome em duas categorias: a fome quantitativa, quando faltam alimentos em quantidade para abastecer determinada população, fazendo que que não haja para muitos nada para comer de fato; e a fome qualitativa, quando há alimentos suficientes para o abastecimento da famílias, mas estes alimentos não contém uma carga nutricional adequada para que esta população permaneça sadia a longo prazo. É comum vermos gente por aí dizendo que nunca passou fome, mas viveu muitos anos à base de arroz, ovo e biscoito. Pensar a classificação de fome de Josué de Castro nos dá uma visão um pouco mais ampla do problema da fome, com o qual inevitavelmente teremos que lidar enquanto sociedade num futuro próximo. Mas, como pensar em fome na terceira maior potência agrícola do planeta?
O COVID-19 paralisou grande parte da produção mundial de bens e serviços. O agronegócio brasileiro certamente saberá tirar proveito desta crise, uma vez que uma maior demanda mundial por alimentos aumenta o preço destes, fazendo com que se prefira abastecer o mercado externo a alimentar a própria população no pós-pandemia. O recente aumento no preço da carne bovina no Brasil se deu também por uma maior demanda por este produto no estrangeiro, aumentando o preço para o cidadão nacional. Logo, a realidade tira, no nosso caso, a razão de Malthus, pois produzimos muito mais alimento que o necessário para alimentar bem toda a nossa população e ainda assim há fome; e dá razão a Josué de Castro quando este diz que falta vontade política para mobilizar recurso em favor do que tem fome. O lucro dos empresários do agronegócio aqui também está acima da vida dos pobres.
Vamos mais a fundo nesta questão. O Brasil adota como política de alimentos o conceito de Segurança alimentar, concepção neoliberal adotada pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), como sendo a garantia de acesso físico e econômico à alimentação básica de uma população. No desenho desta política para nosso país, se produziriam na forma de monocultivo commodities para a exportação (soja, milho, cana-de-açúcar, etc.), importando de outros países alimentos que não fomos capazes de produzir para o abastecimento interno (trigo, feijão, arroz, etc.). O caso é que em períodos de crise, quem produz os gêneros alimentícios acaba por reservá-los a sua população, o que provoca um aumento considerável no preço da cesta básica da população em geral, conforme pudemos observar no período da crise de alimentos de 2008. Christiane Senhorinha Soares Campos e Rosana Soares Campos, em seu artigo Soberania alimentar como alternativa ao agronegócio brasileiro[5], apontam a seguinte crítica:
“A crítica da Via Campesina é que as políticas de segurança alimentar se preocupam só em garantir alimentos sem se importar onde e como são produzidos e isso favorece o agronegócio e contribui para inviabilizar a agricultura camponesa, uma vez que a mera oferta de alimentos pode ser atendida através da importação ou da produção em larga escala de alguns produtos em forma de monocultura. ”
Neste interim, movimentos sociais como o MST, a CPT, a Via Campesina e a articulação mundial de organizações camponesas desenvolvem o conceito de Soberania Alimentar, em oposição à agenda liberal para a produção e distribuição de alimentos. O professor de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em entrevista ao documentário A Terra em Cana (2014), define que:
A Soberania alimentar é quando o Estado, o governo central, traça uma política de produção e de estoque de alimentos de modo a que aquela sociedade que produz esses alimentos tenha uma oferta e um estoque regulador que garanta a ela o abastecimento sem que se produza nada. O Estado Unido tem estoques de alimentos que garantem a eles três anos de comida sem que se produza nada. Os estoques do Brasil dão para 30 dias, alguns alimentos não dão para uma semana.
Não se trata, portanto, somente de fazer chegar a comida na mesa de cada brasileiro. A palavra Soberania vem do direito de cada povo ter a autonomia para escolher como, quando e de que forma produzir os próprios alimentos, sem interferências dos grandes conglomerados do agronegócio e produtores de sementes, maquinários ou agrotóxicos. Daí, que políticas como os incentivos à agricultura camponesa, a reforma agrária e a agroecologia, como forma de garantir o acesso à terra para aqueles que queiram nela produzir. É a reforma agrária a única política de desenvolvimento capaz de substituir a produção de commodities para o mercado externo pela a produção de alimentos para a população no geral, fazendo cair os preços, gerando renda e empregos no campo, e desafogando o inchaço urbano cuja maior expressão são as favelas. É necessário abandonar a produção em grande escala e adotar uma política de produção local de alimentos de forma com que as diferentes localidades do Brasil possam ter autonomia na produção e abastecimento de sua população.
Muitos são os relatos, nos acampamentos e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de mudanças efetivas na vida de pessoas que passavam necessidades várias nas periferias das grandes cidades e que passam a ter uma vida digna e a produzir o próprio alimento e mais o excedente que comercializam no lote que ocupa. A crise agravada pelo COVID-19 certamente deixará consequências diversas na nossa sociedade, nos fazendo questionar o neoliberalismo, as políticas de privatização e austeridade e o modelo atual de globalização. Mas ela nos traz também a oportunidade de rever e reconstruir um modelo social mais justo e menos desigual socialmente. Estamos em crise, viva a crise!
Referências:
[1] DAMIANI, Amélia. Geografia e População. Contexto. São Paulo. 2004.
[2] MARX, Karl. El Capital. Tomo III. Libro Terceiro. Vol. 8. El proceso global de la producción capitalista. México: Siglo Veintiuno, 1981.
[3] LEFEBVRE, Henri. Da Teoria das Crises à Teoria das Catastrofes. GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 25, pp. 138 – 152, 2009. p. 147.
[4] CASTRO, Josué de. Geopolítica da Fome. 2° volume. Brasiliense.São Paulo. 1956
[5] Disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-24568.htm acessado em 26/03/2020.