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Conto sobre o terceiro dia, na terceira lua, da terceira estação de 2020

COLUNA ENCANTAMENTOS POÉTICOS

Nesta noite, sonhei que a deusa manifestava-se a seus filhos humanos de forma desnudada. Moveu-se através dos animais nos horários de portal de nascimento do sol e no seu poente. Levou presentes através dos pássaros aos aniversariantes, como forma de celebrar a vida, forçou mulheres sensitivas a abrigarem-se juntas por força de acasos inesperados só para que estivessem a meia noite juntas e de mãos dadas pudessem sentir os portais de sua força manifestada sobre seus pés, mãos e corações. Via ela ventar folhas para dentro das casas para que seus filhos soubessem que ela não era apenas uma força física, mas espiritual que habita a casa de tudo aquilo que é a vida. Via ela fazendo esquentar para que toda a vida ficasse mais lenta e assim pudesse estar mais atenta as suas manifestações realizadas a luz do dia. No sonho via raios do amor alinhando amantes à terra e ao céu com fogo espiritual. Via ele se manifestar nas mulheres e nos homens que vivem a força espiritual do amor manifestada naqueles/as que  se permitiam escolher a vivência do amor não pela conveniência nem pelo utilitarismo, mas pelo alinhamento de suas mentes,  coração e pulsão criadora da vida que existe através da experiência sexual. Via o triângulo da perfeição divina sobre eles e neles a deusa corporificou-se com toda a sua força. E ele era mais forte que em todas as luas cheias existentes na terra até hoje.

Era como se ela usasse a própria força da sua primeira lua cheia de primavera para lutar, lutar pela manifestação do amor. Era como um grito, das formas que ela consegue gritar e assim poder dizer que não existe como mera matéria, mas também espírito, a habitar tudo aquilo que tem vida. Contudo, via que mesmo com todas as suas manifestações, boa parte seus filhos e filhas corporeificados pela forma humana, devido ao seu modo de viver, encontravam-se intoxicados demais para senti-la e para vê-la. Seus corpos e almas intoxicados, haviam perdido a capacidade de sentir e de ver o seu amor. Estavam, como nos diz Isabele Stengers, enfeitiçados. A feitiçaria capitalista havia enfeitiçado sua forma de sentir e ver com o coração. Eles não podiam perceber, porque eles mesmos, não acreditavam em feitiço. Era assim que achavam-se sozinhos e desconectados. Era assim que o amor não podia mais se manifestar pela união vivida deles com sua mãe primeira, deles com outros deles e deles com eles mesmos. No sonho, a deusa que manifestava-se a céu aberto, era vista sem significância, pela cegueira de olhares desatentos.

E foi assim que nos três primeiros dias da lua cheia ela passava desatenta e despercebida. Nem seus animais, nem seus ventos, nem suas águas, haviam conseguido comunicar o pedido de amor que ela trazia. Ninguém agradeceu o ar limpo com a chuva de domingo, mesmo que estivessem intoxicados pelo ar poluído que eles mesmos haviam gerado. Apenas algumas poucas mulheres mais atentas, haviam agradecido seus presentes.

O sonho me acordou as 3 horas da manhã, no terceiro dia da lua cheia, da terceira estação do ano de 2020. Na hora pensei, que assim como eu acordei nesta noite, talvez todas as pessoas desta terra, pudessem também acordar neste mesmo momento. Sob o princípio da dualidade, talvez seja possível, haja vista que só é possível acordar quem se encontra adormecido.

Imagem em destaque: pintura de Andrzej Malinowski

About Camila Grassi

Camila Grassi Mendes de Faria é cientista, pedagoga e educadora popular. Encontra na poética um veículo particular de fruição das experiências senti-pensadas que advém do cotidiano e dos acúmulos de seu ofício profissional.