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Conhecimento e cidadania: uma reflexão sobre a ciência em tempos de facismo

O imóvel é simultaneamente mais real, mais verdadeiro, mais perfeito que a mobilidade. A perfeição é imóvel.”

 Henri Lefebvre – Posição contra os tecnocratas.

           

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

           Vivemos, certamente, um período crítico. Um momento de grandes rupturas. Uma pandemia que seguiu e agravou uma já grave crise econômica colocou em xeque muitas relações que entendíamos como naturais e inalteráveis. De repente o isolamento: o Estado é chamado, na escala global, a resolver questões sociais pelos mesmos que antes falavam em Estado mínimo. O fascismo, no poder em muitos locais do mundo, é abalado, mas não vencido. Na verdade, estamos diante de um momento bastante crucial onde estão colocadas de maneiras opostas transformações sociais profundas ou a barbárie, ambas com possibilidades iguais de vitória. O fascismo deslegitima o conhecimento, a ciência. Toda teoria científica que não corrobore com o poder estabelecido é tida como ideológica, comunista, e logo entra em um jogo conspiratório de vida e de morte que envolve o poder e os produtores de ciência. Trata-se de um quadro extremamente perigoso. Explico.

            Na tentativa de recuperar sua relevância, seu respeito, os cientistas – de esquerda e de direita – agarram-se ao ideal do especialista, aquele que por ter passado tantos anos em uma universidade, realizando pesquisas e mais pesquisas sobre determinado tema teria credenciais para lidar com as soluções de tal ou qual questão social. Médicos e economistas são conclamados como aqueles que devem ser consultados. Clama-se por dados, referências, técnicas. E com a estupidez típica dos inteligentes, modernos e civilizados, pavimentam a ascensão do fascismo. Primeiro disseram que Bolsonaro era impossível. Depois que não efetivaria seu projeto autoritário. Agora o chamam de ignorante, burro, estúpido. São estes adjetivos – a ignorância, a burrice, e a estupidez – as grandes virtudes do fascista. Hitler, Mussolini, Franco e alguns outros nos ensinaram muito bem esta lição [1].

            À direita, os liberais reivindicam a neutralidade, a precisão, a ciência, a estatística. Há uma mistura de filantropia e cultura, de citações e de boas intenções. Elaboraram a concepção de um humanismo universal, uma ideia de igualdade e de mérito, e erguem a todo momento um novo líder salvador que resolverá todos os problemas atuais. Tornam suas análises da realidade tão elaboradas de método e de dados que seu discurso idealista se torna inacessível a grande parte do povo pobre que está, em grande medida, muito mais preocupado com como conseguir dinheiro para comer e pagar as contas na semana seguinte que com os erros e acertos do discurso do presidente.

            À esquerda oscila-se entre a nostalgia e o sonho, lamentando ou comemorando as revoluções do passado. A comuna de Paris, a revolução Russa, os Zapatistas, as guerrilhas na ditadura, o ciclo de governos progressistas na América Latina, Lula e Dilma no Poder, etc. Falam e escrevem uma metalinguagem em que não propõem nada para o tempo presente que não sejam as repetições dos êxitos do passado. Neste ponto, os chamados marxistas e anarquistas se encontram. Se esquecem, no entanto, da lição mais importante: “não existe pensamento e nem ação sem uma imagem do futuro, sem uma visão do possível”[2]. O passadismo nos impede de propor e de construir novos projetos de sociedade.

            O conhecimento é, em posse das classes oprimidas, uma ferramenta para sua emancipação. Em um determinado modo de relação com aquilo que estabelecemos como natureza o conhecimento gera a autonomia de comunidades, bairros, cidades, tribos e muitas outras formas de sociabilidade humana. Para estes – os oprimidos – quanto maior e melhor elaborado é o conhecimento que está em suas mãos, maiores são suas chances de emancipação em relação às grandes corporações, cartéis, agentes imobiliários, ao Estado, ao Capital. Uma comunidade qualquer, no geral, possui um conhecimento vastíssimo sobre o local onde vive. Sabe os cheiros, as cores, os calendários, as Geografias, sabe histórias, enfim, o sujeito periférico conhece muito bem a si mesmo e aos outros com os quais convive, e o conhece enquanto realidade prática, sensível. Conhecimento este desprezado pela ciência que permanece presa a teorias sem vínculo com a sociedade real.

            O tecnocrata, à direita ou à esquerda, não é exatamente um apologista do desenvolvimento tecnológico e científico. Para ele o conhecimento é parcial, fragmentado, segmentado e seu interesse é o de saber cada vez mais sobre cada vez menos. A Natureza é vista como recurso, a sociedade é agente antrópico, e tudo se resolve em um sistema que inclua cálculos complicados e o máximo possível de variáveis. Há um input (uma entrada), um fluxograma e um output (uma saída) que conteriam em si todas as estatísticas do universo e que, conhecendo-se em profundidade as equações, seria possível, através do estímulo correto e preciso, obter do sistema as mesmas respostas sempre, invariavelmente. É como se a realidade fosse uma grande máquina, onde se coloca um determinado produto em uma ponta esperando sempre a mesma resposta, o mesmo resultado na outra ponta. Pensando bem, essa alegoria veio bem a calhar: o tecnocrata pensa o mundo como uma máquina, pois seu próprio pensamento é maquinal. Ao conhecer o funcionamento da máquina seria possível conduzir o processo histórico para o rumo em que se queira, e é neste ponto em que se está a essência do tecnocrata: quer o conhecimento somente para si. Por possuir o conhecimento da “máquina”, acredita-se mais conhecedor do que qualquer outro, e por isso sente-se capaz de transformar o Espaço à sua vontade. Desenha no papel linhas sinuosas e aerodinâmicas (tudo é aerodinâmico em nosso tempo) e acredita-se um grande artista por isso, um privilegiado. Em seu discurso, só os especialistas devem possuir voz para resolver os problemas sociais e políticos do mundo. Nada mais estúpido.

            Eis então que se revela a grande miséria dos intelectuais contemporâneos. Sua ação restringe-se à vontade estatal, ao comando daquilo que é decretado como legítimo pelo poder da classe dominante em determinada época. Assim como os sacerdotes da Antiguidade, os padres e bispos do feudalismo, os agentes pensadores atuais só pensam aquilo que lhes é permitido pensar, em seu tempo, aquilo que legitime e mantenha o poder de classe constituído inalterado. Modificam a realidade apenas dentro daquilo que a lei e a ordem existentes permitem ou necessitam mudar, sem que se toque, fundamentalmente, no sistema social existente. Nada transformam, nada criam que não é a repetição daquilo que está posto. Têm uma ilusão de agir, de transformar, mas um engenheiro pode se frustrar ao observar que é do mestre de obras o trabalho intelectual mais complexo, pois este é o capaz de juntar teoria e prática ao transformar um punhado de rabiscos e números de um papel em um prédio, uma praça, uma vila, etc.

            O fascismo simplifica a realidade para que um líder, forte e sábio, resolva por meios violentos as questões sociais e políticas emergentes. O fascista age por telescopagem, que nada mais é que o uso de um discurso aceito no senso comum popular (desenvolvido historicamente ou imposto pelo poder) para legitimar racionalmente a concretude contraditória e irracional de um modo de produção qualquer. Para Amélia Damiani, “A télescopage está no plano de uma ilusão, de uma confusão, de um misto de realidade e representação, potencializado, por transferência e redefinição de conteúdo, terrivelmente ativas.”[3] Essa ilusão é, no entanto, concreta, no sentido de que se realiza materialmente no espaço através das estratégias traçadas pelos diversos agentes do Estado e do capital.

            É fundamental, se quisermos uma superação positiva do estado de caos que estamos vivendo, repensar o modo como se produz e difunde o conhecimento produzido. Enquanto fragmento, cada ciência não explica nada, dá a ilusão de explicação. É compreensível. A totalidade é inatingível, atemorizadora. Aproximar-se dela é sentir o cheiro da loucura; é lançar-se em mar aberto sem saber se um dia voltará a ver um porto seguro; é revelar os limites do agir e pensar humano; é tirar-nos o chão sob os pés. Mas colocá-la em nosso horizonte nos liberta de alguns fetiches, algumas alienações e, de certa maneira, nos aproximam da superação da sociedade existente. Mas para isso, as próprias ciência e filosofia tem de ser repensadas, superadas.[4]

A ciência que realiza sua prática dentro do aparato estatal, através de consultorias dentro de secretarias, departamentos e grupos de trabalho e que compreende o mundo por meio de ferramentas meramente técnicas se coloca como A Ciência capaz de tudo explicar. E assim se distância do mundo concreto na medida em que considera as pessoas “leigas” como o problema e a si mesma como solução.

            Se podemos utilizar um exemplo de outras formas de conhecimento, entre os povos indígenas há um intenso conhecimento de seu território. Sabem quando é tempo de chuva ou Sol, onde estão e quais plantas utilizarem para os problemas de saúde mais recorrentes, o que significa o cheiro de cada planta em determinada estação, qual a época ideal para caçar ou pescar determinado animal. Conhecem como ninguém a própria história e a dos seus antepassados, transmitida oralmente – e agora também nas escolas indígenas com professores também indígenas – de geração em geração. Mas quem determina sua permanência ou não no território é um técnico do governo que não conhece a plenitude das relações estabelecidas naquele local; não sabe sobre os conflitos e soluções para estes mesmos conflitos que ali se concretizam; não conhece suas riquezas nem suas carências. Mas sabe uma ciência e possui um diploma e isso é o suficiente para que este coloque sua assinatura em um pedaço de papel e impulsione ou não um massacre promovido por policiais e pistoleiros dos grandes fazendeiros. Então, a relação com a natureza é destruída por aqueles que se dizem protetores desta mesma natureza. Trata-se de um conflito político, que nada tem de preocupação com o conhecimento em si.

            Enquanto isso, milhões de pessoas reais se inserem à margem das verdades do “homem de ciência”. Assim, pobreza é produzida estrategicamente para o agrado de muitos agentes privilegiados de nossa sociedade. Os políticos ganham votos se utilizando da pobreza no discurso; O aparato policial ganha legitimidade e recursos do Estado para sua violência através das políticas de segurança pública; Igrejas ganham necessitados para consolar; os traficantes e milicianos mão-de-obra abundante e barata.[5]

            É necessária uma ciência que se aproxime do conhecimento popular, que intervenha positivamente na realidade dos oprimidos – pobres, mulheres, negros, indígenas, etc. – e que desenvolva algo que este nosso país ainda não conhece: a cidadania[6]. O cidadão é aquele que faz políticos todos os momentos de sua existência, respira política em sua vida cotidiana. O direito à cidade – daí a palavra cidadania – só se realiza com a extensão da polis à toda a humanidade. Aqui não há a separação entre o ser político, o ser cientista e os outros seres. Esta idéia põe fim a qualquer concepção de conhecimento que não seja elaborada por todos os setores da sociedade em conjunto. Com ela há a abolição de qualquer ação estatal e, inclusive, do próprio Estado enquanto instituição reguladora da vida de homens e mulheres em todo o mundo. A cidadania só pode ser concebida através da autogestão generalizada em todos os âmbitos da vida, com a extinção de classes dominantes e dominadas política, moral e financeiramente.

            Mas enquanto a luta por cidadania (que não envolve somente as assim chamadas áreas urbanas) segue, milhares de negros, índios, mulheres, favelados, faxinalenses e outras comunidades são cada dia mais assassinadas em suas relações mais profundas e íntimas, objetiva e subjetivamente. As propostas de universidades populares, e ciência indígena e o conhecimento dos povos da floresta, as escolas itinerantes, as místicas camponesas e os saraus periféricos tem muito a nos ensinar. Nós queremos cantar, dançar, gritar e nos desesperar, e de fato é tudo o que viemos fazendo. Mas, como nos ensinam Os Mutantes em seu Panis et Circenses, as pessoas na sala de jantar seguem sendo as pessoas na sala de jantar, preocupadas somente em nascer e morrer. Cabe a nós, agora, fazer um futuro diferente.

           

[1]     ARANTES, Paulo. Zero à Esquerda. Conrad. São Paulo. 2004.

[2]     LEFEBVRE, Henri. Posição contra os Tecnocratas. Nova Crítica. São Paulo. 1969. p. 41.

[3]             DAMIANI, Amélia Luísa. A Geografia que Desejamos. In: Boletim Paulista de Geografia. N. 83 Perspectiva Crítica. AGB/Xamã Editora. São Paulo. 2005. p.57-90. p. 74.

[4]      LEFEBVRE, Henri. A produção do Espaço. Trad. Grupo “As (im)possibilidades do urbano na metrópole contemporânea”, do Núcleo de Geografia Urbana da UFMG (do original: La production de l’espace. 4º Ed. Paris. Éditions anthropos, 2000.) Primeira versão: início – fev.2006.

[5]             ROCHA, Alexandre Souza da.  Objetos, Atos e Situações no Morar na Periferia da Metrópole: Momentos e Implicação. Tese de Doutorado defendida no Departamento de Geografia da FFLCH-USP. 2007

[6]     SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. Edusp. São Paulo. 2007. Ver em especial o capítulo: Há cidadãos neste país?.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.