Coluna: Evangélico à esquerda
Eu me converti exatamente no ano de 2018, aproximando-se a campanha eleitoral. É quase a ideia mais idiossincrática possível, não fosse a revelação de Jesus Cristo em minha vida. Porque, de fato, para quem descobre a fé, Cristo é uma revelação profunda e indissolúvel. Um chamado profundo inescapável. Uma verdade além de qualquer conjectura ou racionalização. E é até mesmo pra mim, cristão “carismático”, ou como se chama no meio evangélico, “pentecostal”, fascinante o fato de ter chegado a Jesus num momento em que a igreja institucional pareceu tão distante dele…
Eu sempre fui de esquerda. Sempre fui comunista. Era o tipo de aluno que mergulhava no tema nas aulas de história, que gostava de ler e aprender sobre política. Meu processo para chegar a Cristo foi existencial, e antes da experiência era preciso compreender a espiritualidade de maneira racional. E foi lendo e estudando com atenção profunda a bíblia que percebi que a organização da igreja no livro de Atos dos Apóstolos se assemelhava a uma comuna, a um modelo de organização como proposto nas experiências comunistas.
A bíblia concebe o Marxismo mais de 1800 anos antes de Marx, em especial no capítulo 4 de Atos. E isso foi importante pra mim de ser constatado. Deus é Deus pelos oprimidos: os órfãos, as viúvas, os que tem sede e os que tem fome. Deus está ao lado do proletário e do desvalido. O materialismo dialético não consegue tanger a revelação espiritual, mas a revelação espiritual facilmente contempla o materialismo dialético, na separação entre “terra e céu”. Posso apontar na bíblia muito conteúdo com esse viés, e certamente se alinha mais aos ideais socialistas do que ao capitalismo.
A igreja institucional, quando eu cheguei, já era uma ferramenta de discurso fascista. Já estavam tomando os púlpitos com apelos morais anti-esquerda. Já se falava em Bolsonaro dentro de um espaço reservado para se falar somente de Deus e de Cristo. Já havia uma pregação política. Eu sempre deixei claro que era abertamente de esquerda, e graças a Deus, na comunidade onde participava, fui respeitado. Boas pessoas não são fascistas. Mas o discurso, a mentira, a máquina que investiu para comprar o povo de Deus já fazia efeito. Onde eu congregava, todo voto exceto o meu e de mais umas três pessoas que eu conhecia, era bolsonarista. Talvez nem tanto, mas somente estes irmãos falavam abertamente sobre isso comigo. Eu estava quase sozinho ali, era respeitado com as minhas opiniões, mas não fazia diferença: o que me unia aquelas pessoas não era política, era Cristo. Tenho uma gratidão imensa a eles, e lamento que tenham caído na arapuca tão facilmente. O medo e o apelo grotesco, além da adesão dos grandes figurões da instituição evangélica no país, não permitiam que fosse diferente. Eu garanto a vocês: o povo evangélico, a massa evangélica mesmo, especialmente na periferia, não é fascista. É pró Bolsonaro porque acredita em coisas inacreditáveis. E infelizmente isso torna difícil para quem não é evangélico acreditar que ali há algo de Cristo. Eu tenho visto ateus ensinarem cristãos sobre Jesus, porque o cristianismo no país se desviou de tal maneira que torna inviável crer que as igrejas estejam pregando sobre o mesmo Jesus dos evangelhos. Príncipe da Paz, não um armamentista. Preocupado com os desvalidos, não defensor do capitalismo. Salvador, não destruidor. O Cristo que eu conheci não era o Cristo que aparece no bolsonarismo. Mas, na realidade, os irmãos evangélicos conhecem o mesmo Cristo que eu, mas se perderam no discurso bolsonarista. Pare um evangélico e pergunte sobre Jesus, e você o verá falar da pessoa mais amável que poderia existir. Agora, pergunte a ele sobre política, e esse Jesus dá lugar a um monstro, misto dos medos inventados com puro ódio contra a esquerda. É possível algo assim? Eu creio que sim, pois o tenho visto. Mas creio que Cristo ainda vai tira-los disso. Porque nós, que temos fé, acreditamos no que parece impossível…
O que eu quero dizer aqui é que o evangelho não é mal como o bolsonarismo fez parecer. Os falsos pastores, profetas de ocasião, e o ódio evangélico tão vistoso hoje na nossa sociedade, é obra de uma instituição corrompida, orientada por homens gananciosos, defendendo seus interesses próprios, bastante humanos e corruptíveis. É a prostituta, e não a noiva de Cristo, fazendo aqui uma analogia presente nas escrituras. Especialmente nós, de esquerda, não podemos confundir e acreditar que os evangélicos em geral têm as ideias fascistas presentes no bolsonarismo: eles só estão cegos pelo discurso, que foi ostensivamente pregado de cima pra baixo em todo o meio evangélico. Grandes pastores, veículos de mídia como gospelprime e tvs evangélicas, jornais das igrejas, e toda a máquina gospel que lucra muito com a fé. Não é cristão o pensamento bolsonarista e ele foi infiltrado nas igrejas. Os evangélicos podem voltar a ser evangélicos, especialmente se a esquerda e o campo progressista souber abrir o diálogo. Já há os que o fazem, há bons pastores no Brasil ainda. Nós, que somos de dentro, precisamos apontar os erros e mostrar na bíblia, pôr o dedo na ferida. Mas quem é de fora pode mostrar que é mais fácil estar aberto a Cristo se o cristão não tiver um discurso fascista.
Possivelmente eu tenha mais a dizer sobre isso, esmiuçar e destrinchar o assunto, conforme tem sido minha experiência nesse mundo, entre desertos e terras prometidas. Sendo de esquerda. Inconformado, crítico, estudante de teologia. Não para pensar como eles pensam agora, mas para repensar maneiras de retomar a igreja para Cristo. Bolsonaro foi tão danoso que tirou do caminho de Jesus os evangélicos, para seguirem quase sem querer o caminho do fascismo. Nós precisamos reevangelizar os evangélicos. Eu espero poder contar com a esquerda para isso…
Rafael Bührer é estudante de Teologia na Faculdade Unida de Vitória/ES, EAD, Marxista-leninista, Cristão, ex-músico independente, recepcionista bilíngue, marido, torcedor do Coritiba e cearense naturalizado.
Ótimo texto !