Últimas Notícias
Home » ambiental » Chapeuzinho Vermelho

Chapeuzinho Vermelho

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

Foto: MST 

À Antonio Emiliano, aos sem-terrinha

 

            Chapeuzinho vermelho é sem-terrinha. Vive em um acampamento de reforma agrária entre tantos outros no Brasil. Faz muito tempo que chapeuzinho vermelho aprendeu que existem muitos lobos maus por aí, poluindo as águas e envenenando a terra. Na escola de chapeuzinho vermelho aprende-se desde muito cedo sobre a agroecologia, e sobre a importância de produzir alimentos com responsabilidade ambiental. Ao contrário das escolas convencionais, aqui não há muros ou paredes delimitando a comunidade da escola. Entende-se que esta é parte da comunidade e que, por isso, deve ser apropriada por essa. As salas de aula são de madeira, de construção recente, feita por um mutirão que envolveu, de alguma maneira, praticamente todos os moradores, tanto no financiamento quanto na mão de obra. Antes disso as aulas eram realizadas embaixo de uma árvore, utilizando um quadro negro feito de Madeirit e uma lona preta que o envolvia. Na sequência foram construídas salas de aula em Madeirit que, com o tempo, empenaram, forçando a troca desta por uma madeira mais resistente. Um dos únicos prédios de alvenaria por aqui é o que abriga a cantina e a cozinha, e também são os únicos que ficam fechados, junto à secretaria, quando as aulas não estão acontecendo. As crianças têm livre acesso, a qualquer momento, às salas de aula, sendo elas responsáveis, através de coletivos próprios, pela limpeza e conservação do espaço, uma vez que não existem funcionários que cumpram com esta função. Chapeuzinho vermelho aprende desde cedo a sua responsabilidade com o coletivo.

            As carências são diversas aqui, mas comida parece ser algo que não falta a ninguém. Ao redor da maior parte das casas existem hortas onde se produzem gêneros alimentícios como legumes, verduras, frutas e hortaliças para consumo próprio. Aquilo que não se produz ou é produzido em excesso é trocado com os vizinhos. O meu feijão pelo seu queijo, a minha geleia pelo seu pão, etc… Mas a terra, para produzir e comercializar não dá um bom dinheiro logo de entrada. Até que esta seja preparada e posta a produzir adequadamente, leva-se pelo menos até dois anos para que se reponham os danos causados ao solo por tantos anos de monocultivo. Além disso, equipamentos como tratores e arados precisam ser alugados ou emprestados com algum vizinho que tenha conseguido financiar o maquinário. As famílias mais pobres encontram dificuldades várias nos primeiros tempos de acampamento, o que faz com que muitas desistam e tentem a vida em outros locais. Mas aqueles que se encontram há mais tempo acampando e resistindo conseguem já adquirir eletrodomésticos mais elaborados, ou carros mais novos.

            Uma das grandes bandeiras do MST nacionalmente é pautada pela agroecologia como sistema de produção de alimentos. A ideia é implementar a produção de alimentos para comercialização sem o uso de agrotóxicos e/ou sementes transgênicas, respeitando os tempos naturais da produção e reprodução daquilo que é plantado. O uso indiscriminado de agrotóxicos e sementes transgênicas representa para o movimento, além dos danos ambientais provenientes da contaminação das águas e do solo, a morte dos pequenos animais e insetos que vivem no solo (minhocas, artrópodes, etc.) representa também uma perda de autonomia dos agricultores frente a grandes empresas produtoras de sementes e insumos, tais como a Monsanto, Bayer, Dupont, entre outras. Caminhar nos arredores do acampamento, em especial durante a noite, quando a fiscalização não é feita, é por vezes de quase sufocar com o forte cheiro dos produtos utilizados para o combate de pragas. Neste sentido, são apontados no acampamento onde vive chapeuzinho vermelho, casos de problemas de saúde causados pelo contato, através da água ou do ar, com estes produtos.       Chapeuzinho vermelho vive no Estado do Paraná, que devido ao modelo agrícola adotado, há um número considerável de intoxicações por agrotóxicos atingindo, em especial, as populações mais pobres, que contaminam-se através do contato, através do ar e da água de regiões monocultoras, além dos trabalhadores rurais que são compulsoriamente afastados devido a problemas de saúde causados pela exposição a estes produtos, entre eles, câncer e depressão . Devido a informalidade do trabalho, muitos trabalhadores rurais não contam com qualquer forma de assistência médica ou trabalhista. Para a professora da Universidade de São Paulo Larissa Bombardi, “O número de mortes por agrotóxico – notificadas – chega a mais de uma centena nos três estados da região Sul; também a mais de uma centena em São Paulo e Espírito Santo, na região Sudeste; o mesmo na Bahia e Goiás, respectivamente nas regiões Nordeste e Centro Oeste e, finalmente, chega à casa de mais de duas centenas de mortes nos estados do Ceará e de Pernambuco.”[1] Para além disso, no Atlas Geografia do uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, a mesma autora ressalta as conexões entre a indústria do agrotóxico e a produção de sementes transgênicas, o que contamina os solos, provocas doenças relacionadas à contaminação de água nas grandes metrópoles e ainda provoca uma grande redução na biodiversidade.

            Muitos no MST veem a produção agroecológica como uma forma de oferecer um produto de maior qualidade a preços acessíveis aos trabalhadores através das cooperativas agrícolas formadas, e alguns acampamentos e assentamentos, inclusive, obrigam com que os acampados ou assentados produzam alimentos neste modelo. Mas a falta de investimentos financeiros e de assistência técnica qualificada para que se tenha uma boa produção e, consequentemente, uma boa renda com a agroecologia, faz com que muitas pessoas encontrem dificuldades terríveis para produzir neste sistema e acabem abandonando-o e voltando ao cultivo convencional onde este não é obrigatório. No caso da agroecologia, assim como outras diretrizes do movimento, apesar de aparecerem como recomendações, cabe aos acampamentos e assentamentos discutirem, dentro de sua realidade, quais serão ou não aplicados e de qual forma.

            A questão dos agrotóxicos é cada vez mais importante de ser compreendida, uma vez que, conforme aponta o jornal El País de 20/01/2015, na matéria O alarmante’ uso de agrotóxicos no Brasil atinge 70% dos alimentos: “Desde 2008, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial desse setor cresceu 93%, no Brasil, esse crescimento foi de 190%, de acordo com dados divulgados pela Anvisa. Segundo o Dossiê Abrasco – um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde, publicado nesta terça-feira no Rio de Janeiro, 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos. Desses, segundo a Anvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas. “Isso sem contar os alimentos processados, que são feitos a partir de grãos geneticamente modificados e cheios dessas substâncias químicas”, diz Friederich. De acordo com ela, mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil hoje são banidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os países em desenvolvimento, os agrotóxicos causam, anualmente, 70.000 intoxicações agudas e crônicas. ”

            Hoje, chapeuzinho vermelho sai de casa com sua cesta repleta de coloridas sementes crioulas produzidas na horta escolar rumo a casa de sua avó. Mas ela não tem medo de encontrar nenhum lobo mau no caminho. Apesar de sua pouca idade, ela sabe que é somente com muito conhecimento e com muita luta que se vence a opressão dos lobos maus, e que se o medo nos paralisa somos presas fáceis nas mãos daqueles que tem o lucro como seu sentido existencial. Ela sabe que todos nós merecemos morar, trabalhar e viver com dignidade, sem depender que alguma grande empresa ou fazendeiro venha lhe “salvar” a vida com uma solução fácil – e geralmente repleta de contrapartidas – qualquer. E por isso enquanto caminha, canta:

 

Com a viola no peito, através do meu cantar

Defendo a natureza e as belezas do luar

As sementes e as águas, a terra e a cultura

Defendo a diversidade dentro da agricultura[2]

[1]          BOMBARDI, Larissa Mies. Intoxicação e Morte Por Agrotóxicos no Brasil: a Nova Versão do Capitalismo Oligopolizado no Brasil. Boletim DATALUTA – Artigo do mês: setembro de 2011. p. 13.

[2]     Canção Defendendo a diversidade  do Grupo Saci Arte. MST-PR.

 

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.