Sentada em dois tijolos a senhora observa o túmulo a dois metros de distância. Fica assim por muito tempo e, talvez se pudesse, ficaria pelo resto da vida. Entre ela e a foto da jovem fixada na placa de metal há um corredor estreio. Não há como passar entre as duas. Fazer isso seria absurdo. Interromper sua contemplação então, seria quase um crime. Com os cotovelos apoiados nos joelhos ela não desvia o olhar um instante se quer. Cochicha algumas palavras. Sorri largamente. A conversa, que pode parecer um monólogo e que apenas o é se for essa a intenção do interlocutor, parece ter como tema o cotidiano, a família. Talvez seja sobre o alto preço da luz, do feijão, do gás. Pode ser ainda sobre a neta que se formou no ensino médio. Sobre a tia que operou o apêndice ou sobre o primo que largou a bebida. Mas, quando o lenço xadrez sai do bolso e vai em direção aos olhos, fica claro que o assunto é outro.
As fotos saltam aos olhos em cada corredor percorrido. São muitas as expressões. As com sorriso são predominantes. Nomes entalhados em bronze. Frases que tentam resumir o morto. É fácil se perder, afinal, as cruzes que poderiam servir como ponto de referência estão em todo o lugar. Mesmo localizado no coração de um dos bairros mais movimentados de Curitiba o Cemitério do Água Verde é uma ilha de calmaria, uma cidade à parte dentro da capital paranaense.
Cem mil mortos. Esse número já foi ultrapassado há alguns anos. Criado em 1888 o Cemitério do Água Verde já recebeu muitos enterros. Nele há famílias tradicionais de Curitiba como os Arns, os Turins, os Bettegas. No local, grandes mausoléus contrastam com pequenos túmulos. Foto trabalhadas, ornamentos em metal, flores vivas e coloridas ao lado de cimento bruto, cruzes quebradas e nomes que não podem mais ser lidos. Se há construções monumentais com fotografias e muitas homenagens a seus moradores, existem também aquelas cuja a cera derretida de uma vela faz a vez de uma lágrima que chora o defunto sob a laje fria.
“Quero um lugar, mas não pretendo morar nele tão cedo”
Pode-se percorrer os corredores por horas sem se ver uma alma viva. Há duas companhias constantes: o tilintar das pequenas placas de metal que marcam os túmulos e são balançadas pelo vento, e pequenos mosquitos que parecem ter como alvo as narinas dos visitantes. No entanto, logo os primeiros vivos aparecem. Com uma colher de pedreiro na mão João da Silva reboca a parede externa de um jazigo. Conseguiu o túmulo há alguns meses, mas espera que demore a levar um dos seus à nova aquisição da família. “Esperei durante sete anos para conseguir esse túmulo, mas espero não precisar usá-lo tão cedo”, diz. João ficou na fila para conseguir um túmulo dos centenas que são repassados todos os anos a título de concessão. Quando um túmulo fica abandonado por muito tempo a prefeitura municipal, que administra o cemitério desde a década de 1920, fixa um aviso nele para que os donos tomem alguma providência. Passado algum tempo, caso os proprietários não apareçam, o local é repassado a título de concessão por meio de editais e os restos mortais removidos vão para um ossuário. Segundo a administração do cemitério há milhares de famílias na fila. Hoje estão sendo repassados os túmulos dos editais de 2007 e um novo está previsto apenas para a metade do ano que vem.
A cada quadra é possível ver um túmulo em completo abandono. Um buraco no teto leva a uma canela que salta da calça de tergal corroída pelo tempo. Não há cruz, nome ou foto. Uma flor de plástico mostra que alguém ainda se lembra, ou lembrou durante algum tempo, daquele que descansa sob as ruínas de tijolos. Em outro túmulo se percebe, misturados aos ossos do morto, penas de galinha, velas e fitas, o que mostra que não são apenas os entes queridos que são evocados no local.
As construções compõem uma cidade que parece ter parado no tempo. A cada esquina uma foto de época retrata um chapéu, um óculos ou um espeço bigode comuns no final do século XIX e começo do XX. No túmulo ao lado um casal de emigrantes italianos parece observar o jovem que se despediu dos familiares em 2007. As fotos com largos sorrisos são as mais marcantes. Há jovens, idosos, crianças. Todos com a expressão que é mais cara à família.
“Saudades sim, tristeza nunca”, diz a frase em uma das lápides. “Parti tarde demais”, escreve um pichador em tom de zombaria. “Família Boa Morte”, diz a placa em tom profético. “Agradeço a graça alcançada”, revelam diversas placas de mais uma milagreira curitibana. “Aqui estão enterrados um filho e o coração de uma mãe”, ressalta a frase lembrando o sentimento mais expressado no local.
Entre as cruzes uma meia lua se destaca. Em uma espécie de mesquita, em forma circular, estão 42 gavetas. Quarenta delas tem uma estrela entalhada e apenas duas tem fotos dos falecidos. Mais à frente um agricultor, esculpido em cimento, lamenta a morte de seus entes com a testa repousada sobre seu rastelo. A escultura é impressionante. Ao lado de um par de chinelos e um chapéu ele vela 38 mortos.
Uma das gavetas recém ocupadas não traz sequer chapisco nas paredes. Feitas às pressas parece uma espécie de puxadinho sobre a laje dos demais inquilinos. O morador, talvez acostumado ao conforto de uma boa casa, não tem mais motivos para se importar com isso. A ele, restam coroas de flores e as lágrimas da família.
Ganhando a vida em meio à morte
De jaleco verde uma senhora carrega um carrinho de mão entre os túmulos. Das pernas de seus óculos saem um cordão que os sustentam entre o abaixar e o levantar da cabeça. No carrinho há cera, desinfetante, cloro, sabão, esponjas e outros utensílios de limpeza. Dona Rute faz parte das 14 zeladoras licenciadas pela prefeitura para limpar os túmulos do Cemitério Água Verde. Quem as contrata são as famílias dos mortos. Há clientes fixos e esporádicos. “Tenho famílias que me pagam para eu limpar seus túmulos toda a semana. Mas tem também alguns que nos contratam de vez em quando”, diz. Um jazigo muito sujo pode render R$ 200. Em meses bem movimentados, como outubro que antecede o dia de finados, dá para limpar quase 30 por dia. “Em outubro trabalhamos de domingo a domingo, já cheguei a tirar R$ 3 mil em um único mês”. Sobre como é trabalhar em meio aos mortos ela é categórica. “São as melhores companhias para se ter em um local de trabalho”, completa.
Há algumas quadras, barulhos de vidro sendo quebrado. O som faz parte da limpeza que três irmãs promovem no túmulo da mãe, do pai e do falecido marido de uma delas. A substituição do vidro é necessária por causa de um furto praticado há algumas noites. Os ladrões roubaram ornamentos de cobre, além das fotos e da imagem de nossa senhora aparecida que enfeitava o jazigo. “Queria é que um morto aparecesse e corresse atrás deles. Daí queria ver se teriam coragem de voltar”, diz a mais nova das três. A anedota contagia as demais que gargalham em sincronia.
Mesmo que todos os cemitérios sejam repletos de histórias de fantasmas, o Água Verde é mar de calmaria. Com exceção de um gato preto que cruza um corredor e uma coruja que pia no romper da tarde, a cidade dos mortos é um ambiente tranquilo. Mas nem todos pensam assim. João Batista, morador de rua há sete anos, conta que costumava dormir em túmulos abandonados no Água Verde. “Era bom dormir aqui. Era protegido do frio, da chuva e muito silencioso”, conta. Porém, um encontro ao pé do cruzeiro, o fez mudar de ideia. “Uma noite eu vi um sujeito todo de preto ajoelhado em frente ao cruzeiro. Já era madrugada e me aproximei para ver se ele tinha um cigarro. Mas no caminho escutei um barulho do meu lado, virei a cabeça e não vi nada. Quando olhei de novo para o cruzeiro não tinha mais ninguém lá”, relata com os olhos prestes a saltar do rosto. “Nunca mais dormi aqui”, diz. Entretanto, uma rápida olhada em alguns postes do local, mostram que provavelmente sua debandada se deu por outro motivo: a prefeitura de Curitiba instalou câmeras de vigilância e há seguranças que fazem rondas noturnas para evitar furtos e possíveis vandalismos.
O fim da tarde traz mais silêncio e solidão à cidade dos mortos. O corredor que dá ao portão principal parece não ter mais fim. Quando se sai do cemitério o mundo “real” vem à tona. Buzinas, conversas, ônibus lotado, celular, trânsito intenso. A vida segue frenética e dá de ombros para os altos portões da cidade onde ela não pode habitar.