Um homem de camisa branca e calça azul social se enfia no meio de duas mulheres que discutem calorosamente. Uma delas usa roupas parecidas com as dele. Em cima da camisa veste um colete azul da cor da calça, também com corte social. A semelhança dos trajes denuncia que são colegas de trabalho, quem sabe um pouco mais que isso. As roupas buscam mostrar formalidade. Porém, de longe se vê que são de baixa qualidade. O relógio no fim da Rua XV marca uma da tarde. Eles desfrutam do horário de almoço. Ela magra, cabelos pretos, semblante de origem indígena. O rapaz protege a colega de outra mulher, com ares de esposa ou namorada. Esculhambada em seu modo de ser e vestir e agressiva nas ações. Sua sandália deixa os pés descalços e ‘vestem’ as suas mãos, como luvas de boxe. Sua posição também lembra um pugilista, só que no último roud da luta. O rapaz em vão pede calma. Sua colega faz ares de que não está ali. Cada olhada para o céu, com ar de deboche, coloca mais sangue nos olhos da rechonchuda parceira do homem. Baixa e gorda, a mulher usa uma blusa florida que dá ênfase aos seus fartos seios e torna ainda mais protuberante seu abdómen. Uma lycra da Casa da Sogra completa seu modelito. A mão que segura o sapato investe ferozmente contra a mulher de colete azul, antes de acertar o rosto da oponente debochada, o soco encontra as mãos do rapaz desconcertado. A Praça Ozório observa a cena como se o petit pavê fosse um picadeiro e o trio representasse os três palhaços da noite que antecedem os malabaristas ou o domador de leões. Por alguns minutos o rapaz consegue controlar a fúria da mulher com as sandálias nas mãos. Sem chance de conciliação, a moça de colete azul desiste da peleja. Vira as costas e caminha, tentando não chamar ainda mais a atenção do público que os observa. Ledo engano. Em segundos, como uma locomotiva de banha, a gordinha corre alguns metros e investe contra sua oponente. O primeiro golpe acerta-lhe as costas. Quando se vira, a pacífica mulher tem seus cabelos presos às mãos de uma besta enfurecida. Já é tarde, uma clássica briga de mulheres se inicia ao som de urros, palmas e gritos de incentivo.
Uma verdadeira ‘esculhambação’, como diria o senhor Carlos da Costa Coelho. Dentro de seu escritório, na Travessa Senador Magalhães, quase na esquina com a Praça Osório, palco da briga entre as mulheres. Desta mesma Praça Ozório ele tem outras lembranças. Como a do dia em que todas as cabeças cobertas de chapéus admiravam o Zeppelin que plainava sob o céu cinza de uma bucólica Curitiba. Uma cidade onde os homens usavam gravatas e as mulheres cobriam seu corpo com vestidos. Cidade esta, muito diferente da que seu Coelho vê atualmente. “Hoje, as pessoas andam esculhambadas, mulher de calça, se isso acontece naquele tempo corriam atrás dela”, lembra. Sua loja é um portal, como uma fenda no tempo, que transporta seus visitantes ao início do século passado.
Em dezembro de 1956, Carlos da Costa Coelho abriu sua primeira loja. Dois anos depois, expandiu o negócio com uma filial e alguns meses depois outra loja. Mas depois desses 55 anos só restou a loja matriz. O nome da loja, de artigos para homens, como anunciam as letras ao lado da porta, ainda permanece no plural: LOJAS COELHO. O senhor Carlos da Costa Coelho administra até hoje sua primeira loja. Ele se veste impecavelmente. Sempre de terno, gravata com prendedor e os demais acessórios. Tudo escolhido com cuidado pelo homem de 88 anos que usa gravata desde os 14. “Sempre tive bom gosto, não sei de onde veio isso, sei que tinha. Via alguma coisa bonita e comprava. Se não tinha dinheiro, namorava o que queria por um tempo até juntar dinheiro e comprar”, explica Coelho, o mais janota dos janotas.
O bom gosto e a exigência do dono da Lojas Coelho foram os responsáveis pela sobrevivência do comércio até hoje. Deixou para trás lojas como a Casa Londres, Casa Cosmos e a Casa Lord, que existiam na época que fundou a sua. “Eu abri isto aqui”, Coelho é categórico ao se referir à travessa Senador Magalhães. Ousou abrir as portas da loja numa rua onde só havia casas. Isso na época em que o comércio se concentrava na Rua XV de Novembro. “Deus me livre abrir uma loja que não fosse nessa região [Rua XV]”, ouvia o velho lojista dos seus pares à época. Nesse mesmo período, cinquenta anos atrás, perto do Marco Zero da cidade, as senhoras da cidade ganhavam um reduto para seu deleite. Era a Loja Glória que nascia. “Calçados finos para senhoras”. Com esse slogan, o mesmo até hoje, uma família de libaneses dedicou-se a vender bolsas e sapatos ao lado da Catedral de Curitiba.
Vinte anos depois da abertura da loja, o também libanês, Sr. Zaki integrou-se o grupo, predominantemente feminino, e cumpre o papel de gerente até os dias atuais. Viu muitas mudanças passarem por suas retinas. Lembra-se do tempo em que os clientes faziam fila para serem atendidos. “Ficava gente fora da Loja. Hoje se entra um a cada meia hora é muito”, conta. Sr. Zaki vestindo jaqueta de couro, colete de malha em cima de uma camisa social, calça e sapatos que ornam com a sua posição dentro do estabelecimento. Carrega no sotaque a sua origem étnica. Os mais exigentes com a língua portuguesa veriam no senhor de cabelos grisalhos uma enormidade de erros gramaticais. Veriam também a convicção do experiente comerciante ao falar do motivo da queda no movimento de sua loja: “Hoje, cada bairro tem seu centro”, fala desanimado. Porém, não é apocalíptico ao ponto de ver o fim da Glória, que há 49 anos veste senhoras na espaçosa loja de pé direito baixo. Ali, as vitrines são recheadas de bolsas e sapatos, como não poderia deixar de ser. As vendedoras usam um avental cor de vinho tinto. São atenciosas, mas não se responsabilizam por falar sobre a loja. “É tudo com o gerente ali, desculpa”, diz uma das moças que se ocupam de vender e renovar a clientela. Há quatro décadas as senhoras vêm comprar com suas filhas, que também invariavelmente se tornam senhoras que certamente virão à loja acompanhadas de suas filhas. Assim, o ciclo continua. Mesmo com uma nota fiscal sendo impressa a cada meia hora, a loja se mantém viva. Na Praça Tiradentes, ostenta o título de mais antiga.
Há dois minutos da loja Glória, outra fachada exibe um nome feminino: Edith. Em homenagem à filha do primeiro dono da Casa de Roupas para Homens, senhora Edith, falecida há seis meses. Na singela placa da loja, o número 1879 se mostra revelador. É o ano de fundação do comércio. Num prédio histórico, sob o olhar do Barão do Rio Branco, prostrado no centro da Praça Generoso Marques, a Casa Edith é outra fenda no tempo. Seus 133 anos de história se misturam com a riqueza cultural e o crescimento da capital paranaense. Dentro do prédio de dois pavimentos, estilo colonial, uma loja ampla, com pé direito alto, mostra em esmeradas vitrines, aos que ali adentram, boa parte de seu estoque – diferente de muitas lojas modernas que expõem tudo em araras – itens que, como a Casa Glória, vestiram gerações. Dentro da loja, apenas três senhoras, cobertas por aventais azuis, como inspetoras de alunos de colégio municipal, atendem a clientela formada basicamente por senhores, suas esposas e filhos. Comandadas pelo segundo dono do estabelecimento, seu Virgil, as senhoras só dão entrevista com mandato policial. “Só com o seu Virgil”, diz uma delas. Outra emenda sem perder tempo: “Ah, moço, já veio gente aqui pra fazer reportagem, mas ele não fala não”, confidencia. Receosa, a caixa escreve em um pedaço de papel o número de telefone e o nome do dono. Entrega a pequena folha olhando para os lados, como quem passa cola a um amigo no dia de prova, jogando à pura sorte a possibilidade de desvendar a história do lendário lugar nas mãos do inexperiente repórter.
A histórica loja aguça a curiosidade de muitos. Ainda mais daqueles que hoje ali trabalham. Como Tita, vendedora na loja há três anos. Interessada no passado da Casa Edith, e carente de informações vindas de suas colegas e do próprio dono, ela encontrou na internet fotos e um pouco mais sobre o lugar que passa o dia a vender suspensórios, chapéus e ceroulas aos fiéis velhinhos. “Vi fotos do tempo que passava o Bondinho aqui na praça. Imprimi e trouxe a foto pra loja, os meninos que gostam das coisas antigas ficaram maravilhados, queriam uma cópia pra eles”, conta a vendedora. Estes jovens são raridade nas carteira de clientes da loja. Tita é temerosa quanto ao futuro do comércio onde atua. “Já ouvi dizer que antes fazia fila aqui pra comprar, mas agora tá fraco o movimento, mesmo assim dá pra se manter”, revela. Tita é vendedora de carreira. Trabalha no ramo desde a mocidade. Antes de entrar na loja, vendia móveis. Gostava de ser um pouco decoradora, de ajudar as antigas clientes a montar seus lares. Agora, além de vender, cumpre a função de psicóloga. “Eles vêm aqui contando histórias, dizendo que vinham com o pai comprar”. Ela gosta do perfil dos seus atuais clientes, sempre educados e tranquilos. Espera ansiosa o inverno, o Natal e o Dia dos Pais para engordar o soldo. No resto do ano, na falta do que fazer dentro da loja, mata o tempo caçando assunto com o segurança perto das vitrines externas. Este ri quando questionado se os velhinhos dão muito trabalho. “Tem que ficar de olho mesmo na molecada, essa vitrine aqui não se encontra mais hoje em dia”, diz. Os vidros de dois metros de altura se estendem por toda a fachada da loja formando a bela vitrine. A Casa Edith divide o antigo prédio com uma lanchonete de chineses. Simbólico contraste.
Os itens que se encontram na Casa Edith são do mesmo segmento do que se vê na Lojas Coelho. No entanto, ao falar do concorrente, o senhor Coelho é categórico: “Gosto do Virgil, me dou bem com ele, mas o que ele tem lá são umas coisas de segunda. Aqui não, só de primeira, só coisa boa”, Coelho diz isso como quem conta o segredo na certeza que este será revelado.
O velho janota faz de sua loja a extensão de sua casa. Tem o mesmo esmero nos dois ambientes. Além dos itens expostos, que vão de meias de doze reais a sobretudos de mil e duzentos reais, o senhor faz questão de ornamentar a loja com tudo que considera bonito. São miniaturas de carros antigos em prateleiras, placas, brasões e tudo o mais que agrade aos olhos do dono. “Só mobília da melhor, tudo limpo e a prataria polida. Quero que quem entre aqui se sinta em casa, igual como me sinto quando venho pra cá”. Coelho justifica a sobrevivência da loja nestes cuidados com os detalhes.
Há cinco anos, o elegante senhor saiu do balcão e foi para o escritório apenas administrar o negócio. Acometido por problemas de audição, achava constrangedor pedir para os clientes repetirem mais alto seus pedidos. Na condução da loja, ele se mostra muito simples e objetivo. “Vendedor sabe vender, mas comprar sou só eu”, o velho comerciante não tem ideia do futuro da loja quando ele não estiver mais presente. Viaja a cada dois meses para São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais visitar fornecedores. Compra cerca de trinta por cento do seu estoque nestas viagens, olhando de perto os produtos onde são fabricados. O restante é comprado com representantes. Seu Coelho vende moda para homem, roupas tradicionais. Tudo social, ternos, sapatos, chapéus e demais acessórios. Os clientes são advogados, médicos, políticos, gente de poder aquisitivo alto. Mas acompanha a moda e, às vezes, contraria seus princípios para atender os menos exigentes, os de bolsos mais curtos. “Hoje vendo até boné aqui. Onde já se viu? Antes só quem usava isso eram guris, homem mesmo usa chapéu. Mas se eles querem comprar, eu vendo”, conta resignado. A maioria dos produtos da Lojas Coelho são produzidas no Brasil. O velho Coelho tem um filho morando na Itália e o visita com certa frequência. Ele não vê grande diferença na produção dos dois países. “Aqui também tem muita coisa de qualidade e lá tem muita coisa esculhambada”, resume.
Quando dispunha de maior vigor físico, Coelho dedicava o tempo que não estava na loja ao hipismo, prática que aprendeu no exército quando moço e que quase o levou à segunda guerra mundial. Mas, atualmente, com 88 anos, não tem em sua agenda muitos compromissos e quase nunca muda seu trajeto diário. “Faço o caminho da roça, pra não errar, a cidade cresceu muito. Já me perdi muito por aí”, confessa. Coelho vive num mundo nostálgico, belo e elegante. É um verdadeiro janota, como diriam nos anos 60. No seu mundo não tem briga de mulheres na Praça Ozório e nem mulheres de calça. Tem ojeriza a computador e telefone celular. Vive na loja ao lado de duas máquinas de escrever e cercado de caixas de produtos finos. Com a convicção que carrega desde menino, leva o bom gosto e o amor à profissão como guias de sua vida. Há 55 anos veste homens da elite e promete que só a morte lhe impedirá de continuar transformá-los em janota como ele.
Nota 1: Matéria escrita em 2012
Nota 2: O comerciante Carlos da Costa Coelho faleceu aos 90 anos no dia 10 de agosto de 2014 em Cuiritiba.
JANOTA: Gíria dos anos 60 que remete à pessoa que se veste com esmero; elegância exagerada; almofadinha.