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Cartola e os Meninos da Mangueira.

Há tempos essa foto de Cartola, tirada por Eurico Dantas, circula em redes sociais acompanhada de uma breve descrição sobre o mestre da Mangueira sentado em protesto contra a ação policial contra um ensaio da Mangueira. Junto a foto, pequenos textos sobre a repressão ao carnaval e à cultura negra na época da ditadura – constante no Brasil desde a época da escravidão.

No entanto, essa foto é muito mais icônica que um protesto calado, sentado ao chão. No dia 20 de fevereiro, 9 dias antes do desfile de carnaval no domingo dia 29 de fevereiro de 1976, a polícia militar realiza uma blitz no morro da Mangueira onde prendeu 60 pessoas sem documentos – das quais somente uma permaneceu presa. Essa foto estampa um artigo do Jornal Globo no dia 21 de fevereiro, que fala sobre o ocorrido; há também um artigo no Jornal do Brasil no dia 21 também.

Uma das pessoas abordadas é o filho de Cartola, que com seu táxi estacionado a rua Visconde de Niterói, local onde fica localizado o Palácio do Samba, terreiro da Estação Primeira de Mangueira, e uma das principais ruas do morro, foi abordado pela polícia e, enquanto alcança seus documentos no porta-luvas do carro, começou a ser agredido pelos policiais.

Cartola e Dona Zica, acompanhados da filha Regina e da neta Nileimar, tentaram intervir. Foram agredidos pela polícia também. Após a confusão, seu filho foi preso e Eurico Dantas tira a foto de Cartola, desolado no chão, após mais um episódio de repressão policial a populações marginalizadas.

Nem o artigo do JB nem o do Globo questionam a ação policial; neles se encontra apenas a ressalva de que abordaram Cartola, não sabendo quem era o grande mestre – afinal, não é um problema a violência e a truculência policial contra os moradores do morro de Mangueira, apenas àquele morador conhecido.

Não há evidências de que a repressão, nesse caso específico, tenha ocorrido ao ensaio da escola de samba, que seria vice-campeã do Carnaval de 1976, perdendo por 6 pontos para Beija-Flor de Nilópolis, que então ganhava seu primeiro carnaval. No entanto, não há como negar que a escola de samba e o samba são parte de uma cultura negra, que se organiza contra a repressão desde época da escravidão, e sempre guarda na ancestralidade dos seus heróis os grandes exemplos da organização da luta.

Como quando ao descer o morro, acompanhado de Nileimar, Cartola ouve entoar ao longo do caminho Meninos da Mangueira, composição de Rildo Hora e Sérgio Cabral, de 1975. Nela se canta a memória de todas e todos que construíram a história da escola e do morro de Mangueira: Delegado e Marcelino, Carlos Cachaça, Xangô, Sinhô, Pandeirinho e Preto Rico, Dona Neuma e Dona Zica, e o Cartola. É a lembrança de que ele não desce o morro sozinho; que junto dele desce o morro inteiro. Morro do qual é raiz, cuja história se confunde com a sua própria.

 

A partir dessa resistência e ancestralidade que Cartola compõe o samba Silenciar a Mangueira (Samba de sua autoria, gravado por Monarco em 1980) – cabe frisar, não ao ocorrido naquele 20 de fevereiro, mas a repressão constante.

Cartola começa com o verso emblemático “Silenciar a Mangueira, não”, mas logo fala que a luta não é feita sozinha; lembra que “Devemos ter adversários / como Osvaldo Cruz”; e termina a primeira parte com “Uma escola que não devia acabar / Era o velho Estácio de Sá”. Mangueira, Portela e Deixa Falar são apresentados na construção de uma união de dois estandartes do carnaval Carioca (Mangueira e Portela), e junto com a lembrança de que caso essa união não ocorra, se se deixe silenciar Mangueira, o destino é o mesmo de Deixa Falar. Mas ele não fala das Escolas de Samba, ele fala dos bairros de Mangueira, Osvaldo Cruz e Estácio de Sá – é o silenciamento do território que está em jogo.

Na segunda parte da música complementa a união lembrando os ancestrais do território em 3 figuras: “A Mangueira tem Cartola / No Estácio, Ismael / A Portela tinha o Paulo / Que era o nosso Deus no céu”. Paulo, Cartola e Ismael são representantes dessa raiz exaltada nessa união. São também grandes amigos, que mesmo adversários no carnaval, lutaram juntos pela valorização da cultura afro-brasileira.

Estácio, Mangueira e Portela são pilares da ancestralidade do samba. Raízes da árvore que sustentam as comunidades. Todos os terreiros de candomblé possuem uma árvore de fundamento; cujas raízes representam os filhos feitos da casa, que firmam a história do terreiro no chão. A ancestralidade que aqui tanto fazemos menção são essas raízes, que sustentam na materialidade da realidade a história da comunidade. A história da comunidade se conta através das histórias dos seus filhos, dos seus ancestrais, vivos ou mortos em corpo, mas sempre vivos na memória.

Estácio, Mangueira e Portela são imagens, sua história conta a história dos morros, das escolas, dos sambas. Mas suas histórias são contadas através das ações e das histórias daqueles que a sustentam. As suas histórias tem a função de reconduzir os indivíduos a história da comunidade. Não só tornar ela conhecida, mas mostrar que nessa história, nessa comunidade, nesse território, sobre e por essas raízes eles podem tomar conhecimento da grandeza do seu próprio ser.

 

(Para quem quiser acompanhar as músicas indicadas por essa coluna, essa é a lista de reprodução no spotify: https://tinyurl.com/QuandooSambaAcabou. Entre parênteses indico os compositores das músicas, junto com o ano da primeira gravação dela. Quando há evidências de data de composição anterior, indicarei no corpo do texto.)

Foto que ilustra o texto: Eurico Dantas publicada no Jornal O Globo, 21 de Fevereiro de 1976, Matutina, Rio, Página 9

About Lucas Lipka Pedron

Lucas Lipka Pedron Professor de Filosofia e Educador Social, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Coordenador do G-FILO, Grupo de pesquisa em Filosofias Outras do NESEF/UFPR e membro do Grupo de Trabalho e de Pesquisa Histórias das Filosofias/IFPR.