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Carta ao meu pai

Brasil, Curitiba, 20 de dezembro de 2020

Pai,

Saí tão rápido do país que não tivemos tempo de discutir a minha partida. Agora que estou dividido entre dois países, duas cidades e duas realidades, pergunto-me se não será tarde demais para fazermos um balanço da nossa memória. Talvez tudo tenha sido feito sem a nossa aprovação? De qualquer forma, minha presença, ou minha ausência parecia não significar mais nada para o país.

Acredito que não queríamos falar sobre isso tão rapidamente. O exílio, seja qual for sua forma, é um assunto tão delicado que tivemos que respirar fundo antes de abordá-lo. Há muito o que fazer para estancar esse sangramento que está matando lentamente o país. Essa imensa distância entre nós representa a extensão das decisões a serem tomadas para que o país possa um dia se reerguer.

Pai, suspeitei que se preocupasse com isso sem poder agir, e  não é  sempre que temos a opção de fazer o que deve ser feito. Tivemos que aceitar o ostracismo. Eu tive que partir, e você teve que engolir sua dor. Assim como o país engoliu sua dignidade entregando-nos, sem trégua, à imigração forçada.

Precisei aprender a ler sua preocupação e sua angústia através dos gritos do seu silêncio. O mesmo que noto nos olhos do país a que se recusa o direito de se levantar para ser ouvido.

A mamãe não hesitou em chorar no dia da minha partida. Esse tipo de coragem, infelizmente, só as mulheres do nosso país possuem. São as únicas que, de uma forma ou de outra, ainda se opõem, concretamente, a qualquer forma de agressão ao país. Lamentavelmente , raramente as ouvimos.

Gostei de me lembrar de suas bochechas desafiando um “Papa Doc” que se comparou a Jesus, na época da ditadura. Ele achava que ele era o único no país a ter o direito de expressar sua opinião. Ele teve que enfrentar um bando de mães, todas silenciosas, apesar das constantes ameaças, dos ataques e proibições. Elas levavam seus filhos para à escola todos os dias, esperavam por eles lá, depois os traziam para casa para ficarem entre a animosidade dos “Tonton Macoutes’’ ”, dos “Duvaliers”, e o futuro do país, que os lembravam diariamente que todos os filhos do país tinham o direito estrito de gozar do seu direito à educação e ao desenvolvimento do seu ser. Enfim, pai, para falar a verdade, você conhece essas histórias melhor do que eu, por ter sido vítima daquele regime.

Sei que seu sonho sempre foi ter todos nós no país perto de você. Tristemente ele decidiu de outra forma, por enquanto. É seu hábito privar-se de seus melhores trunfos na brutal e importante corrida para o futuro.

Tendo-me lançado a uma ambiciosa meditação sobre a minha situação, recentemente, pai, não pude deixar de observar a enormidade da distância que me separa das minhas lembranças mais agradáveis, dos sonhos que tinha para mim e para meu o povo.

Sei que não sou o único imigrante com sonhos para o seu país natal. Por enquanto, a imigração apenas reforça minha teoria de que minha pátria e eu ainda estamos profundamente adormecidos. Às vezes, ando para tentar me acordar do pesadelo, nesta cidade cinzenta e fria. Enquanto outros esperam a oportunidade de se encontrarem na minha posição sem saber o que os espera.

No momento, pai, queria especialmente ver de novo a grande casa da minha infância. Aquela que passou a vida inteira construindo conosco, em que corríamos e gritávamos nos quartos um pouco vazios. Sentir minhas mais belas lembranças flutuando no ar. Queria rir dos “Lodyans” do bom e velho Maurice Sixto, com você e minha mãe, depois da refeição, em uma tarde quentinha. Não havia melhor maneira de digerir as deliciosas refeições dela.

Pai, também queria andar pelas ruas de Petit-Goâve, sem me sentir culpado por um crime que não cometi sozinho. Eu gostaria de poder olhar em seus olhos sem me sentir envergonhado por ter tomado a decisão errada: o exílio.

Seu “Dodo”, que te ama e te abraça!

Essa carta inicia o novo livro de Dominique, que será lançado em breve e se chamará “Alvorecer do exílio”

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About Carlile Cerilia

Carlile Max Dominique CERILIA, nascido em Petit-Goâven no Haiti, é um jovem poeta e escritor. Caminha quando não está lendo ou escrevendo. Gosta de se misturar com as paisagens: árvores, pessoas e animais. Ama cinema e música clássica. Lê Jean-Jacques Rousseau, Albert Camus, Victor Hugo, Voltaire, Dany Laferrière, Shakespeare. Hoje estuda Literatura no CREL (Centro de Pesquisa e Estudos Literários); Departamento, ANA (Narrator Apprentice Workshop). É imigrante e mora no Brasil há alguns meses.

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