– Já voltou para a Rússia?
– Eu!? Deus me livre!
– Nunca teve vontade?
– Não. Pra mim é como se tivesse nascido aqui. Sempre vivi aqui. Aqui (Brasil) é o meu país!
Por inúmeras vezes presenciei esta troca de perguntas e respostas entre minha avó e pessoas que descobriam que ela nasceu na Rússia.
De fato, ele nunca teve vontade de lá retornar. Sentia-se cidadã brasileira, mesmo sem naturalizar-se. Foi mãe de família, avó de família!
Chegou com seis anos de idade, junto de seus pais e mais três irmãos. Ela é a caçula.
Ao chegarem no Brasil, em 1.926, foram morar numa vila de trabalhadores imigrantes europeus, chamada Vila Anastácio. Atualmente, com o mesmo nome, tornou-se bairro, na zona oeste da cidade de São Paulo, próximo ao bairro da Lapa.
Uma ponte estreita de madeira, ao mesmo tempo em que ligava, também separava a vila da indústria, que ficava do outro lado do rio Tietê, onde os imigrantes trabalhavam.
Era a Fiat Lux, fábrica de fósforos. Atual Swedich Matc, um grupo internacional com sede na Suécia que, além de fósforos, produz charutos, cigarrilhas, isqueiros, fumos e lenha.
Na vila, minha vó cresceu, brincou e fez amigos que perduraram sua vida inteira, como a Dona Erna, chamada por “madrinha”. A maioria falava o russo, pois vinham da Rússia, Bulgária e Polônia (países que, na época, foram dominados pela União Soviética, atual Rússia) e também da Alemanha.
Perto de completar quinze anos, começou a trabalhar em casas de família. Uma vez fora empregada doméstica, outra vez babá.
“Foi amor à primeira vista!” Contou-me, numa tarde de domingo quando lhe perguntei como havia conhecido meu avô, Paulo Rainov.
Uma vez o viu passar pela rua. Estava voltando do trabalho. Ela prestou atenção ao relógio, certificou as horas.
Dali em diante, tornou-se vaidosa. Por volta das seis da tarde, ela já estava “arrumada”, e se punha a ficar no portão de casa para vê-lo passar. Em uma dessas passagens, os olhares se cruzarem. Depois veio a primeira conversa.
Ela, linda: lábios pintados e cabelos arrumados; saia godê e camisa de botões que faziam pares. Pés calçados em saltos altos; unhas compridas pintadas em tom de vermelho. Ficava à espera do rapaz alto, magro, de pele branca e olhos claros. Vestia camisas de manga longa, terno e gravata. Cabelos sempre jeitosos com pomadas e um leve topete na frente.
Paulo, meu avô, era garçom. Trabalhou até aposentar-se na antiga pizzaria Lucchesi (hoje inexistente), à Rua Venceslau Brás, próximo à Praça da sé.
Familiares e amigos contam que, além dele servir a pizza mais saborosa de São Paulo, sabia como ninguém manejar as bandejas, servir os clientes, cortar geometricamente uma pizza e conduzir os pedaços até os pratos.
Não demorou muito, começaram a namorar. Em 1.939 se casaram e tiveram quatro filhas.
Conta minha mãe que, próximo do horário em que meu avô retornava para o lar, minha avó já havia cuidado da casa, da comida, das roupas e das filhas. Fazia questão de arrumá-las, com vestidos rodados e laços em seus cabelos, prontas para receberem o pai.
Era o momento em que a família unia-se. Sentados em volta da mesa de fórmica, nas cadeiras giratórias em tom avermelhado, a janta era servida.
O cardápio variava entre macarrão, sopas, arroz, feijão e carne de panela.
─ Ah, a carne de panela da minha avó! Ninguém resistia!
O tempo passou, as filhas cresceram e se casaram. Trouxeram netos aos seus pais.
Eu deveria estar com três anos. Estava chovendo. Numa área coberta de aproximadamente oito metros quadrados, ele jogava bola comigo. Sempre deixava a bola passar e ela rolava para o quintal. ─ Deixa que eu pego, filha. Dizia meu avô, para que eu não me molhasse.
Com setenta e quatro anos e depois de muitas internações, faleceu no Hospital Brigadeiro, na Capital de São Paulo, vítima de câncer na bexiga.
Ela, minha avó, seguiu a vida. Jamais tirou de seu dedo anelar da mão esquerda a aliança que os uniu; e guardou, por toda a sua vida, a aliança dele. Imagino eu, com muito carinho e praticamente num esconderijo.
Jamais se interessou por outro homem. Soube, desde a primeira vez em que o viu, que ele era (e foi) o grande amor de sua vida!
Mesmo tendo perdido sua metade, ansiava por viver! Apaixonada por plantas, tinha em seu quintal centenas de vasos, que exibiam as mais variadas espécies de plantas, folhagens e flores.
A casa que fora por eles construída, permaneceu igual à última reforma, feita quando meu avô ainda estava vivo.
Tacos de madeira sempre enseirados forravam o chão da sala e dos quartos. As portam também são as mesmas, de madeira maciça.
– Quero viver! Tenho muita coisa para fazer! Sempre dizia a minha avó!
E fez! Cuidou da casa e cozinhava seus pratos favoritos. Costurava roupas para os oito netos. Com seus dedos logos e finos, teceu xales, meias, blusas e toucas.
Usava as revistas de bordados para criar novas roupagens para a mesa da cozinha. Descobria novos pontos de crochê que, quando unidos e finalizados, transformavam-se em formas diferentes: retangular, oval, circular, quadrado. Tecia tapetes com elásticos de meia calça.
A máquina Singer de costura, posta de baixo da janela do quarto do meio, trabalhou muito. Dela saíam as melhores roupas para suas seis netas e dois netos.
Cuidava da casa como cuidava dela. Os panos de chão eram brancos feitos folha de papel. Ela os guardava na última gaveta da cômoda antiga que ficava na lavanderia. Dobrados em perfeita simetria, lembravam camisetas Hering.
As suas especialidades eram tantas! Muitas eternizaram-se em nossa família.
– Hum! Vó! Tem carne de panela? Perguntava assim que chegava em sua casa, já adulta.
– Tem! Come filha, pode comer! Come tudo Mainha!
Realmente era especial e me fazia pensar que ela tinha um segredo.
Um dia, saboreando a carne, perguntei:
– Vó, por que a carne de panela da senhora é tão gostosa?
Sem hesitar, mas dando gargalhadas, contou-me seu “segredo”:
– Primeiro você tempera a carne. Deixa ela ir fritando. Tem que deixar a carne queimar e ir colocando só um pouquinho de água. Depois que ela estiver bem queimada por fora, você coloca o molho e as batatas.
Como eu adorava saborear aquele molho, com gostinho da carne que só a minha vó sabia fazer. Não adiantava imitar e não adianta!
Mas a revelação de seu segredo, me permite fazer tentativas da carne e panela da vó. Não tem o mesmo sabor, o mesmo tempero.
Só o fato de poder reproduzir meu prato preferido, confeccionado pela minha avó, é uma das melhores heranças que ela pode deixar.
Enquanto meu avô servia a pizza mais saborosa, minha avó fazia a carne mais deliciosa!
Ah, seu nome! Achilina Bacov (lê-se Aquilina). Quando a chamavam de “Axilina” ela dizia, brava:
– É Aquilina, com som de “q”, é “qui”, A-chi-li-na!
Em seguida, vinha a pergunta:
– Nossa, que nome diferente! De onde a senhora é?
– Nasci na Rússia, mas sou brasileira!
Por isso sua carne de panela não poderia ser um prato russo.
***
Achilina, Vó! Quanta saudade! Escrevi este texto porque acabo de preparar para o almoço de hoje, “carne de panela”! Deixei queimar, segui todas as orientações da senhora.
Um filme de longa metragem passou em meu cérebro. Sem que eu quisesse, fleches de nossas tantas conversas vinham em minha mente! Era possível ouvir a voz da senhora, sua risada. Vê-la sentada no sofá da sala, com as pernas esticadas e apoiadas no pufe quadrado de cor caramelo. Via seu semblante que parecia transmitir satisfação, ao me ver degustando sua carne de panela!
Bateu uma saudade, daquelas que é impossível dizer seu tamanho! E não se diz, só se sente, como o cheiro e o sabor da carne!
A carne, além de ser saborosa, desperta em mim lembranças da nossa relação de amizade. O prato entrou para a história dos descendentes Bacov e Rainov.
***
Minha avó faleceu aos 94 anos, em seis de dezembro de 2014. Pudemos conviver por quase quarenta anos. Além da carne, nos deixou muitas heranças: sua honestidade e simplicidade, sua força diante das dificuldades da vida, a vontade de sempre começar um novo dia; a paixão pela vida e pela natureza, o zelar pela casa, o cuidado com o corpo, a pele e, em especial, as mãos.