– Ilustração: Ribs.
Coluna Encantamentos Poéticos
Por Camila Grassi
Assim como ‘profetiza’ o poeta curitibano Plá, “tudo o que é verdade, um dia se evidencia, se não hoje, outro dia”. Há algumas semanas, pouco se poderia imaginar que, por meio de um fenômeno pandêmico, ficaria tão explícito o delineamento da prática necropolítica em expansão no Brasil. O conceito sistematizado pelo cientista camaronês Achille Mbembe, sintetiza o fenômeno que vem se repetindo mundialmente sobre o poder utilizado por diversas lideranças Estatais para “ditar quem pode viver e quem deve morrer”. Contudo, o exercício do biopoder, ou seja, do poder de decisão sobre quem tem ou não direito à vida, não é novo na história da humanidade. Foi característico em diversos regimes totalitários. Em boa parte destes, apesar de apresentarem, sob um primeiro olhar, traços patológicos nas figuras dos tiranos, foram na verdade produzidos cada qual, sob formas racionais, com clara intenção de produzir o extermínio de grupos sociais específicos. Fundamentaram-se sobre diferentes racionalidades justificadoras, que por meio de propagandas, permitiram apoio popular a históricos genocídios. No presente contexto brasileiro, a política produtora da morte, vem se realizando de forma indireta, por meio da identificação de parcelas específicas da população aos discursos de ódio e intolerância proferidos pelo atual governo, ampliando assim, o aumento das taxas de feminicídio, genocídio de povos originários, população LGBTI, negra e periférica. Tal fenômeno recebe, contudo, novos contornos frente a forma adotada pelo governo federal para enfrentar a pandemia de Covid-19, podendo expandir a necropolitica de modo mais aberto à população em geral.
Decantada algumas semanas de quarentena de isolamento, em resposta ao risco de contágio do Covid-19, vemos nos panelaços vibrantes das janelas de todo o Brasil, o anúncio de um necessário banimento em favor da vida. No fundo, antes mesmo do Covid-19, já havíamos detectado a necessidade de transformações necessárias aos mecanismos que vem, cada vez mais, sob a face do neoliberalismo, produzindo adoecimentos por meio da coisificação e precarização da vida.
O fato é que o Covid-19 chega no Brasil em tempos difíceis. Ele expõe o risco de manutenção da saúde coletiva da população brasileira frente o corte de recursos em serviços essenciais realizado por meio da PEC 241 (atualmente denominada de Ementa Constitucional 95/2016). O Covid-19 chega num momento de completo enfraquecimento do Serviço Único de Saúde (SUS), obrigando municípios a construir campanhas destinadas a pedir auxílio da sociedade civil para a compra de equipamentos básicos de proteção destinados à segurança das equipes dos profissionais de saúde. Coloca-se à luz do dia um dos produtos reais da política neoliberal operada através de medidas de contingenciamento que vinham desmontando nos últimos anos, a saúde pública brasileira.
O que a população não poderia mensurar com tanta clareza nos dias “normais”, antes da pandemia começar, é que a política produtora do enfraquecimento dos veículos capazes de resguardar a vida coletiva já operantes, teriam, no cenário de pandemia, seu processo intensificado através da ausência de responsabilização do Estado. Relembremos brevemente algumas das nuances da necropolitica neoliberal dos últimos anos, antes de chegarmos a leitura de como ela opera no presente.
Carismática fascista e o genocídio de lideranças populares que resguardam a vida
A ampliação do genocídio de lideranças populares já operava no país antes mesmo do governo de Jair Bolsonaro. Os discursos de ódio apenas ampliaram aquilo que já se fazia latente. O silêncio frente o genocídio dos povos indígenas por exemplo, segue há muito tempo com o consentimento do Estado.
Em inúmeros discursos, Bolsonaro pronunciou ódio contra partidos de esquerda e movimentos sociais. Investiu grande financiamento na fábrica de fake news, produzindo por meio dela um inimigo imaginário a ser combatido: ele era de esquerda, era educador, era cientista, era pobre, era negro, era homossexual, era mulher e era indígena. Produziu o foco onde deveria ser depositado o ódio comum.
A exemplo do alvo fascista então produzido, lembremo-nos de Marieli Franco, que denunciava o genocídio programado de policiais e moradores negros ainda em curso, através da intervenção militar no Rio de Janeiro. Denunciava a atuação das milícias, o extermínio programado de crianças e jovens favelados e negros. Era deputada, feminista e bissexual, fazia parte de um partido de esquerda. Em março deste ano, completaram-se dois anos sem Marieli. Não se chegou até hoje, à autoria exata do crime.
Pode-se afirmar que a lógica e os valores que impulsionaram o assassinato de Mariele estão ancorados sob uma racionalidade específica que estrutura a necropolítica neoliberal em curso no Brasil. Tal lógica combina: a) uma herança colonizadora de cultura autoritária e portanto padronizante, que tende a apagar a diversidade humana e natural; b) herdeira de uma cultura escravocrata e, portanto, racista; c) eurocentrada e, portanto, xenofóbica; d) patriarcal orientada pela busca em dominar o corpo, a subjetividade e a vida das mulheres, sendo portanto machista e; e) profundamente elitista compreendendo, portanto, o recorte de classe. Ao combinar tais fatores, tendeu a criminalização da pobreza, dos povos indígenas e da negritude, tendo peso maior sobre as juventudes tensionadoras das estruturas de poder cristalizadas no país historicamente. Devido ao avanço do genocídio da juventude preta em várias localidades do país, foram criadas a Rede “Nenhuma Vida a Menos” e a organização “Reaja ou será morto, Reaja ou será morta”, que passaram a realizar o papel de denúncia contra o genocídio em processo de ampliação.
É importante destacar que, assim como Marieli, fora ceifada nos últimos anos a vida de muitos outros jovens anônimos e um conjunto de lideranças populares de representatividade destacada. Segundo o último relatório da Comissão Pastoral da Terra, foram contabilizados no país, 28 assassinatos de lideranças indígenas, quilombolas e de assentados, somente no ano de 2019. O recorte étnico soma-se a esta barbárie. Nesta semana, por exemplo, foi assassinado mais um jovem denominado popularmente como “Guardião da floresta Amazônica”. Zezico Rodrigues da etnia Guajajara deixa seu povo muito jovem. Ele era uma referência importante na luta pela educação indígena. Assim como ele, Paulo Paulino Guajajara, membro da mesma etnia, também foi assassinado no final do ano passado e desempenhava papel semelhante ao de Zezico. Ambos tinham em comum a proteção da floresta amazônica contra a exploração madeireira, mineradora e de agropecuária ilegal que avança a passos largos na região e sob a qual o Estado vem se eximindo. Ao fazê-lo, permite-se o genocídio dos povos originários e da biodiversidade que compõe seus territórios. Realiza através deste processo, a operatividade da necropolitica, que seleciona sentença de genocídio destes povos.
Pode-se afirmar que a lógica e os valores que impulsionaram o assassinato de Mariele estão ancorados sob uma racionalidade específica que estrutura a necropolítica neoliberal em curso no Brasil. Tal lógica combina: a) uma herança colonizadora de cultura autoritária e portanto padronizante, que tende a apagar a diversidade humana e natural; b) herdeira de uma cultura escravocrata e, portanto, racista; c) eurocentrada e, portanto, xenofóbica; d) patriarcal orientada pela busca em dominar o corpo, a subjetividade e a vida das mulheres, sendo portanto machista e;
A carismática fascista como combustível para o avanço da agenda neoliberal e a produção de sucateamento do SUS
Foi por meio da democracia representativa, falseada pela concepção burguesa de Estado democrático de direito (onde, até mesmo quando os eleitores escolhem, eles de fato não escolhem, e da mesma forma, não possuem o controle sobre o produto de sua escolha), que a população brasileira elegeu Bolsonaro. Boa parte dela votou ufanada pela rejeição às demandas não atendidas pelo governo anterior, que se apresentava desgastado até mesmo pelo apoio de diferentes entidades de esquerda, haja vista a relação de conciliação entre classes que havia feito com as elites empresariais e financeira, que produziu nos últimos dez anos o enfraquecimento da garantia de direitos conquistados pelas classes populares até então. Tal elemento somou-se ao aumento progressivo do custo de vida advindo da crise econômica internacional e pelo tensionamento do grande capital pelo avanço das reformas educacional, tributária, trabalhista e previdenciária.
Quanto aos eleitores que assumiram identificação à figura de Bolsonaro, elegendo-o como “messias”, pode-se destacar uma importante identificação destes ao perfil autoritário, machista, elitista, xenofóbico e racista proferido por ele. Isso explica o não estranhamento de uma parcela importante da população aos pronunciamentos do então candidato, que segurou crianças no colo ufanizando o símbolo de arma nas mãos. De fato ele seria o candidato mais indicado para operar a agenda neoliberal no Brasil, assim como a necropolítica necessária ao avanço do capital através da privatização de recursos naturais e de direitos sociais. Pode-se analisar ainda, que o antigo véu do nacionalismo, (ideologia utilizada historicamente para encobrir as diversidades étnicas, raciais, de gênero e de classe), configurou-se como uma importante ferramenta na produção da “cortina de fumaça” que se desenhou para o avanço da política de morte operada até o presente.
Foi sob o estigma de lutar “pelo bem da família brasileira” que as cores da bandeira nacional foram utilizadas para mobilizar atos de diversas pautas privatistas organizadas nos últimos anos. Atos nacionalistas foram utilizados, por exemplo, como ferramenta para mobilizar a sociedade civil contra os estudantes que ocupavam as escolas em resistência ao desmonte do ensino médio; nas mobilizações favoráveis à reforma da previdência; pela volta da ditadura militar; pelo fechamento do congresso nacional; pelo apoio à aprovação da PEC 241 que congelou a ampliação do financiamento em saúde e educação por duas décadas. Esta última, mesmo frente à pandemia e a necessidade de fortalecimento emergencial do SUS, não foi revogada.
A negação da ciência como ferramenta de ampliação da necropolítica em curso
A necropolítica neoliberal, que tinha parte de sua legitimidade alimentada pela carismática fascista, já apresentava um apoio limitado da população brasileira nos últimos meses. O aumento do custo de vida; o aumento do tempo para se aposentar; a ausência de uma política geradora de empregos; o desmonte da ciência nacional através do corte de recursos às universidades; e um conjunto de medidas de criminalização da pobreza, ampliaram o grau de rejeição popular do atual governo.
Com a insegurança coletiva frente à pandemia, somada ao posicionamento de negação de dados científicos realizado por Jair Bolsonaro em seus pronunciamentos, sua impopularidade tornou-se notável. Negar a ciência em seus pronunciamentos configurou-se como uma prática negadora da vida e da saúde coletiva daqueles que, como nos diria o sociólogo Ricardo Antunes, “precisam trabalhar para viver”.
A política de morte, tornou-se ainda mais clara nos discursos e práticas do então presidente, quando encorajou atos de rua em plena expansão do Covid-19; desconsiderando o posicionamento de entidades como a Organização Mundial de Saúde e as estimativas estatísticas produzidas pelos pesquisadores das universidades federais. A necropolítica foi afirmada, sobretudo, com a aprovação da Portaria 34/2020, que produziu corte significativo de recursos das bolsas CAPES, principal fonte de financiamento das pesquisas realizadas no país. O corte surpreendeu pesquisadores que trabalhavam sem descanso por meio de mutirões para descobrir feitos capazes de garantir a vida frente a ameaça do coronavírus. O corte se realizou na mesma semana em que a USP havia conseguido desenvolver um ventilador pulmonar aberto de baixo custo, capaz de ser produzido de forma rápida e de ser distribuído de modo facilitado para todo o Brasil como forma de resolver a ausência de aparelhos adequados ao tratamento da insuficiência respiratória provocada pelo coronavírus.
Em entrevista ao programa Roda-Viva apresentado também nesta semana, Atila Iamarino, destacado biólogo e cientista brasileiro, apontou que com o corte de recursos realizado pela Portaria 34, fora colocado em risco não apenas o conjunto da produção científica nacional, mas também o financiamento de parte dos pesquisadores mais qualificados para encontrar medicamentos específicos para o trato do coronavírus no Brasil, sendo que parte deles tiveram o financiamento de suas pesquisas cortado.
Segundo dados da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG), o corte realizado pela Portaria 34, retirou recursos de mais de 3.000 bolsas de pesquisa de todas as áreas do conhecimento. Somado aos cortes realizados no ano passado, muitos núcleos de pesquisa que já estavam funcionando com recursos limitados, podem ficar inviabilizados de operar.
Neste quadro, a defesa da ciência e do direito inegociável de vida para todos, configura-se como importante ferramentas na luta antifascista. É importante destacar que, sendo o fascismo brasileiro do século XXI, caracterizado pela anti-cientificidade, defender a universidade pública e o financiamento das pesquisas por ela produzido é indispensável para enfrentar a barbárie que vem se delineando no presente.
Contudo, o que vivemos demanda que enfrentemos muito mais do que um governo que mobiliza uma carismática fascista. Bolsonaro não é único, ele se configura como representante de uma elite. Ele mobiliza aquilo que há de autoritário perverso e opressor na cultura que existe em cada um de nós. Ele foi eleito, pois produziu um fenômeno de identificação de massas a seu discurso e a seus valores. Avalio que a disputa do presente se dá pela necessidade de banimento radical de todas as formas de violência que ele representa, assim como a racionalidade neoliberal que defende.
O fascismo do século XXI se combina às políticas neoliberais que negam direitos, configurando-se, portanto, como eficiente veículo produtor da morte. Assume uma racionalidade própria, capaz de exterminar outras racionalidades que são em si, geradoras de vida, tanto individual como coletiva as quais também produzem efeitos de proteger a biodiversidade do país.
O outono deste ano, para além de ser um período destinado ao recolhimento de cada um como forma de resguardar a vida, pode estar sendo também, uma forma de resgate a outras racionalidades contra-hegemônicas capazes de produzir novas formas de viver, de se relacionar e de produzir a política. Uma forma que permita a produção de uma nova racionalidade comum, producente das mais diversas potências de vida e não do seu oposto.
Referências
Projeto Inspire – projeto idealizado por pesquisadores da Escola Politecnica da USP. Disponível em: <https://www.poli.usp.br/inspire>.
Associação Nacional de Pós-graduandos – PORTARIA 34: dados preliminares coletados pela ANPG apontam para a perda de mais de 3.000 bolsas. Disponível em: <http://www.anpg.org.br/30/03/2020/portaria-34-dados-preliminares-coletados-pela-anpg-apontam-para-o-corte-de-mais-de-3000-bolsas/>.
Relatório de assassinatos Comissão Pastoral da Terra – 2019. Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/5-assassinatos/14142-assassinatos-2018?Itemid=0>.
Finalizo compartilhando aos leitores da coluna o poema a seguir, com vista a concluir a reflexão aqui desenvolvida.
Nossa Vida-Morte-Vida silenciosa de outono
Esfriou
E chegou o tempo
De separar o que já está mofado daquilo que está novo
Da roupa que já não veste mais o corpo
Que mudou.
É tempo de ver o aquilo que tanto nos sobra
E que já não nos falta
E mesmo assim carregamos em nossa bolsa pesada
Desde as estações passadas.
É tempo de resgatar as receitas daquilo que nos aquece
De fora para dentro
De dentro para fora
É tempo de olhar para onde estamos
Acolhidos do frio que nos recolhe.
É preciso parar
É tempo de vermos aquilo que muitas vezes não percebemos em nossa casa.
Até mesmo as árvores mais fortes
Começaram a guardar toda a sua seiva no tronco
É tempo de deixar cair as folhas
Em pouco tempo, a casa de muitos bichos estará nua.
É a sutilidade da vida
Anunciando o tempo de deixar morrer o que precisa morrer
Em cada um
E no todo do qual fazemos parte.
São tempos em que precisamos caminhar com uma tocha de fogo nas mãos
Para que possamos queimar o que necessita ser queimado
Nos transmutando
Nos transformando.
A morte de antigos padrões precisa existir
Para podermos sentir o anúncio da nova vida
Logo, ela poderá ser nosso presente
E a verdadeira força, que a todos abriga.