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Candeia a frete sentado tocando violão, rodeado de sambistas, como Marinho da Vila

Candeia

Ancestralidade é um conceito que conjura um passado imemorial. Assim como o próprio tempo de Exu, é um conceito que funda o passado. Em conversa com Camila Milek, pensamos alguns motivos para esse passado imemorial. Resgatar um passado ancestral na África é uma maneira de criar para si uma história; uma história que foi silenciada e extirpada da população negra. A conexão com esse passado imemorial só pode ser feita através de conjecturas, pois as conexões materiais se perderam (ou parecem estar perdidas) entre os vários processos de apagamento da cultura negra no Brasil – citando de cabeça alguns, a separação de famílias de escravizados, a perseguição a quilombos e terreiros, o silenciamento e a opressão contra os elementos da cultura negra na necessidade de “civilizar” uma cultura “degenerada”.

Mas vejo um outro processo de ancestralidade; um com bases materiais. Que não lembra de heróis e lendas de além-mar, mas daqueles que lutaram e resistiram na diáspora. Essa ancestralidade material é mais presente no samba que a imemorial; seja na prática dos terreiros das escolas de samba (como um elemento residual dos terreiros de candomblé, onde a música negra começa a se organizar no Brasil), seja em gravações comerciais. Seja em cantores e compositores que tiveram destaque na vida comunitária, ou os que despontaram comercialmente.

Poucos entenderam elaboraram tão bem essa ancestralidade como Antônio Candeia Filho; não à toa fundou a Grêmio Recreativo Arte Negra e Escola de Samba Quilombo justamente para desempenhar esse papel, da preservação da memória e da organização da luta por direitos sociais dos negros no Brasil. Ao Povo em Forma de Arte (1977) (creditada a Wilson Moreira e Nei Lopes, mas que tem também em Candeia um de seus compositores informais) é mais que um samba enredo do primeiro carnaval quilombola, é uma carta de intenção da GRANES Quilombo:

“Em toda cultura nacional
Na arte e até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência

E o negro brasileiro
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas raízes

Por isto o quilombo desfila
Devolvendo em seu estandarte
A histórias de suas origens
Ao povo em forma de arte”

 

Mas para falar da ancestralidade material do samba não precisamos contar a história de Candeia; nem de qualquer outro intérprete ou compositor. Não precisamos porque o próprio samba se encarrega disso. São incontáveis as músicas em homenagem aos feitos, a carreira, a vida dos sambistas. São músicas que cantam sobre à saudade ou em celebração da vida de grandes personagens do samba. Tenho um outro texto sobre essa ancestralidade pronto, logo sairá. Ali os exemplos são mais explorados que mencionados. Mas vai aqui alguns que não poderia deixar de citar: Cartola já em 37 compôs A Vila Emudeceu (que seria gravada somente em 1998 por Arranco de Varsóvia) em memória de Noel. Paulinho da Viola, em choro, homenageia Rosa de Valença com Rosinha Essa Menina (1976). Roque Ferreira e Mauro Diniz com Pagode da Dona Ivone (2003) celebram em vida a força comunitária da primeira-dama do samba; assim como Toninho Geraes, junto a Chico Alves, que compuseram Nelson Sargento (2017) a esse que foi um dos maiores compositores da Estação Primeira de Mangueira.

Os ancestrais no samba são aquelas e aqueles que tiveram papel de destaque na vida comunitária, nas lutas sociais e por direitos, na vivência e preservação da cultura. São pessoas de um passado recente ou longínquo, cujo canto sobre suas vidas fala de uma história real, conectada a formação cultural, política e social do povo brasileiro. E o que motiva a escrita desse texto, é a genialidade de um desses cantos de ancestralidade material, justamente um dedicado Antonio Candeia Filho. A poesia de Luiz Carlos da Vila sempre foi algo excepcional, mas em O Sonho Não Acabou (1980) ele carrega seus versos com todo o sentido da vida de Candeia.

 

Com os versos iniciais faz jogo entre a chama de um candieiro com a chama que foi Candeia, e o símbolo da chama que arde na vela no candomblé; chama da vida, que se apaga ao ir embora, chama do fogo que representa a luta e os sonhos por uma sociedade mais justa, chama que como luz, ilumina os caminhos e as encruzilhadas. Luis Carlos da Vila transforma Candeia em chama, em luz; e sua luta em um sonho, que não acaba enquanto a luta (o samba) continuar viva. E enquanto a chama estiver acessa, o ancestral será sempre lembrado e louvado:

“A chama não se apagou
Nem se apagará
És luz de eterno fulgor
Candeia

O tempo que o samba viver
O sonho não vai acabar
E ninguém irá esquecer
Candeia”

 

Na segunda parte da música, voltam a se misturar os elementos da vida e da luta de Candeia, com os princípios religiosos do candomblé. A lua que encanta o céu, é a luz que ilumina as noites de batucada, lua que embalada a madrugada, que leva o samba pra rua, tal qual cantou o próprio Candeia com Vem É Lua (1971). O canto da sereia é tanto de Iemanjá, mãe-sereia, rainha do mar, quanto de Clara Nunes, para quem Candeia compôs sambas como O Mar Serenou (1975); música que inicia com os versos “O mar serenou quando ela pisou na areia / Quem samba na beira do mar é sereia”, é também lembrada no brincar das ondas do mar com a areia. Assim como tantas outras composições de Candeia lembradas na música.

“Todo tempo que o céu abrigar o encanto
De uma lua cheia
E um pescador afirmar
Que ouviu o cantar da sereia
E as fortes ondas do mar
Sorrindo, brincarem com a areia
A chama não vai se apagar, quem?
Candeia”

 

Na terceira parte entram mais referências a música de Candeia, mescladas as simbologias de suas lutas. Mas nenhum dos versos presentifica a história de Candeia quanto os versos finais: um ex-policial baleado (aqui você lê um pouco dessa história), que passa a viver em uma cadeira de rodas, volta a encontrar no samba a alegria da vida. A liberdade da qual se achava privado, ressurge em seu canto; e seu canto faz ecoar e semear a liberdade:

“Onde houver uma crença, uma gota de fé
Uma roda, uma aldeia
Um sorriso, um olhar que é um poema de fé
Sangue a correr nas veias
Um cantar à vontade, outras coisas
Que a liberdade semeia
O sonho não vai acabar, quem?
Candeia”

 

Assim como o samba, Candeia acaba, pra renascer todo dia; porque enquanto houver samba, Candeia, assim como a alegria, continua (1973, Mauro Duarte e Noca da Portela), e ninguém irá esquecer…

 

(Para quem quiser acompanhar as músicas indicadas por essa coluna, essa é a lista de reprodução no spotify: https://tinyurl.com/QuandooSambaAcabou. Entre parênteses indico os compositores das músicas, junto com o ano da primeira gravação dela. Quando há evidências de data de composição anterior, indicarei no corpo do texto.)

About Lucas Lipka Pedron

Lucas Lipka Pedron Professor de Filosofia e Educador Social, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Coordenador do G-FILO, Grupo de pesquisa em Filosofias Outras do NESEF/UFPR e membro do Grupo de Trabalho e de Pesquisa Histórias das Filosofias/IFPR.