Coluna Contrarregra
Neste último fim de semana, a Cinemateca de Curitiba exibiu quatro filmes dirigidos por Glauber Rocha. No sábado – 20 de junho de 2015 – Barravento, de 1962. Este filme marca a estreia do diretor em longas. A princípio, Glauber não seria o diretor, e sim Luiz Paulino, mas, por uma série de fatores, assumiu as gravações e o roteiro da obra. As alterações feitas por ele foram um verdadeiro barravento dentro das filmagens.
O termo “barravento” possui alguns significados que valem a pena serem mencionados. Na perspectiva náutica, significa uma mudança do lado dos ventos, péssimo para quem está no mar, pois indica uma transformação radical no tempo. No candomblé é um toque, um dos mais rápidos e quentes, o barravento começa e o terreiro já não é mais o mesmo, comandado pelo Rum (atabaque maior) o toque traz consigo, de outro mundo, os orixás tão velhos quanto o próprio tempo e suas coreografias de caça e de guerra. Os atabaques parecem adquirir vida própria e o transe é quase generalizado, poucos filhos de santo resistem de pé a um bom barravento.
Dadas estas notas preliminares sobre o título, o filme se passa em uma relação dialética entre a realidade social dos pescadores da praia do Buraquinho e a esfera religiosa, no caso o candomblé como religião da comunidade. Esta relação mostra a necessidade de uma ruptura com a tradição, ao mesmo tempo, nas entrelinhas, Glauber coloca esta mudança vinda através da tradição.
A trama central do filme se passa na relação entre o dono da rede e os pescadores que são explorados por ele. A relação de trabalho consiste em: o dono da rede ficar com a maior parte da pesca, enquanto ele mesmo, não pesca. O recado de Glauber é claro para o espectador: de que lado da rede você está? Ainda, o que legitima dar a maior parcela da pesca àquele que não pesca? O paradigma central do capitalismo se dá aí, valores considerados de esquerda são recolocados sob uma ótica de questionamento humano, em outras palavras: precisa ser de esquerda para questionar esta lógica? Os pescadores da comunidade de Buraquinho não são esquerdistas, são gente simples, pobres e, com exceção de dois personagens, todos são negros.
Na mitologia africana, Exú é o mensageiro entre o mundo dos vivos e o dos mortos A tradição cristã teima em pintá-lo como diabo, com direito a chifres, pé de bode e uma asinha de morcego, em contra ponto às alvas asas de anjo não decaído. No âmbito mitológico do filme, Firmino (Antonio Pitanga) é o mensageiro. Nascido na comunidade e crescido em Salvador o personagem trama contra Aruã (Aldo Teixeira) que é o escolhido de Iemanjá. Aruã deve se conservar puro para que o encanto permaneça e a proteção da Mãe das águas salgadas não se acabe. A sutileza de Glauber aparece quando Aruã é seduzido por Cota (Luzia Maranhão), a mando de Firmino. Neste ponto acontece uma jogada de sonoplastia, que vale a pena enaltecer: enquanto Cota se desnuda na beira da praia a câmera corta para Aruã e a trilha de fundo é um toque para Iemanjá, corta novamente, agora para Firmino, que espia atrás das árvores a prática de seu plano para dês sacralizar Aruã e o toque é para Exú. Antes deste plano Firmino ostenta roupas novas, diferente dos moradores de Buraquinho, que usam trapos, quando usam. E tenta outras vezes desmistificar a noção que os moradores têm de Aruã (sagrado) e, desta forma, mostrar que não se deve recorrer aos Deuses para resolver o problema da miséria, fruto da exploração do homem pelo homem. O filme tem final trágico, deixando a brecha para interpretar de maneiras diferentes: por um lado o sacrilégio de Aruã que resulta na morte de dois pescadores, o que reforçaria a crença local, e por outro as armações de Firmino acabam sendo a única saída para mostrar para aquele povo o quão explorado estava sendo, afinal, sem um salvador para mistificar o seu destino os trabalhadores, agora deveriam gerir sua própria sorte. Aruã vai embora e o filme se acaba, vai lutar contra sua própria miséria, e promete voltar para libertar a gente negra “sem princesas Isabéis”.
As alegorias do filme deixam questões: até que ponto confiamos em nossos libertadores para nos salvar daquilo que somente nós mesmos podemos lutar contra? O quanto de Firmino temos em nós, e o quão demonizado é um transgressor? Quando vamos estar preparados para tocar e dançar o nosso próprio Barravento?